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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

TSUTOMU YAMAGUCHI: UM BUNKER HUMANO CONTRA BOMBAS ATÔMICAS


Manhã do dia 6 de agosto de 1945, Tsutomu Yamaguchi desceu do ônibus, próximo à sede da Mitsubichi, em Hirochima, onde trabalhava. Percebeu que esquecera seu inkan (uma espécie de selo que os japoneses usavam para carimbar documentos). Teria de voltar à pensão onde morava, mas não ficou chateado. Havia acabado de projetar um navio-tanque de 5 mil toneladas.

Ao chegar à pensão, aproveitou para provar uma xícara de chá com alguns moradores mais idosos. Depois, pegou seu inkan e tomou outro ônibus para o trabalho.

Quando já havia descido e caminhava em direção ao prédio da Mitsubichi, ouviu o barulho de um avião bombardeio se aproximando. Eram 8h15min da manhã.

Devido às suas características, Yamaguchi viu a bomba piscando no céu e inchando em silêncio. Foi ficando cada vez mais quente. Lembrou-se das táticas que aprendera nesse período de guerra: abaixou-se, cobriu os olhos e tapou os ouvidos.

Meio segundo depois da luz, veio o estrondo. Após, a onda de choque. Yamaguchi sentiu uma ventania vindo por debaixo do seu corpo. Foi jogado para o alto e caiu no chão desacordado.
Acordou segundos, ou horas depois, numa cidade escura. A nuvem em forma de cogumelo tinha sugado toneladas de pó e cinza. Sua pele ardia. Os braços pareciam gravemente queimados – ele tinha arregaçado as mangas da camisa.

Levantou-se e camabaleou, parando de metro em metro para descansar. Deparou-se com muitas outras vítimas. Voltou à Mitsubichi, encontrou uma pilha de escombros e colegas mortos. Bebeu água de canos estourados, mordiscou um biscoito, vomitou tudo. Dormiu aquela noite debaixo de um bote emborcado na praia.

Sabe-se que o DNA dele sofreu muito. A bomba liberou uma chuva de raios X supercarregados: os raios gama. Esses raios separam e danificam o DNA, perfuram moléculas de água por meio de elétrons que voam como lâminas. A perda de elétrons leva à formação de radicais livres. Esse processo leva à cessação da produção de proteínas e à conseqüente morte das células.

Quando recebeu seu Prêmio Nobel, em 1946, Hermann Muller disse: “se os sobreviventes de uma bomba atômica pudessem prever os resultados mil anos à frente ... talvez eles se considerassem mais afortunados se a bomba os tivesse matado”.

Entretanto, a profecia acima não levava em conta os reais efeitos genéticos passados para a prole. Esses ainda eram desconhecidos para a ciência à época. Muitos geneticistas achavam que uma pessoa sobreviveria milionésimos de segundos após uma carga de radiação como a que sofreu Yamaguchi. Por exemplo, a estrutura em dupla-hélice, do DNA, só foi descoberta em 1953.

Yamaguchi teve de atravessar uma “ponte de cadáveres” que boiavam em um rio, para conseguir chegar à estação ferroviária. Conseguiu cumprir o caminho escalando em ferros retorcidos de uma ponte destruída. Conseguiu achar vaga em um trem e, milagrosamente, escapou em direção a ... Nagasaki.

Doente e quase desfalecido, Yamaguchi chegou a seu destino na manhã de 8 de agosto de 1945. Precisou convencer sua esposa de que ele não era um fantasma. Segundo a mitologia japonesa, fantasmas não têm pés. Yamaguchi mostrou os seus, e sua esposa se convenceu. Também recebeu uma carta da companhia solicitando que se apresentasse em seus escritórios, em Nagasaki.

Chegou lá depois das 11h. Com o rosto e o braço enfaixados, tentou explicar a seus colegas a destruição incomensurável causada na cidade pela bomba. Seu chefe era cético quanto A`capacidade de uma única bomba destruir toda uma cidade. Achou-a fantasiosa. Vociferou a Yamaguchi: “Você é um engenheiro. Faça os cálculos!”. Foram suas últimas palavras.

Uma luz branca lampejou no céu. O calor pinicou a pele e Yamaguchi se atirou ao chão. Pensou: “Acho que a nuvem de cogumelo me seguiu desde Hirochima.”

Oitenta mil pessoas morreram em Hirochima. Setenta mil, em Nagasaki.A primeira bomba era de urânio. A segunda, mais forte, era de plutônio.

Os sobreviventes eram chamados de “nijyuu hibakusha”. Um deles escavou sua casa, em Hirochima, conseguiu retirar os ossos calcinados da esposa e guardou-os numa pia, para devolver aos pais dela, em Nagasaki.No caminho da casa dos pais dela, a outra explosão o atingiu. Contudo, oficialmente, apenas Yamaguchi é considerado sobrevivente das duas bombas.

Após aquela segunda explosão, Yamaguchi conseguiu encontrar mulher e filho num abrigo antiaéreo.
Apesar do incrível sofrimento por que passou no período seguinte, os geneticistas achavam que o pior ainda 
viria, após as mutações em seu DNA.

Em geral, as células conseguem corrigir erros de cópia. Isso é possível por que, em geral, carregamos cópias de DNA: um vindo do pai, outro da mãe. Se o problema ocorrer um uma das fitas, a outra consegue inserir moléculas A, C, G ou T em cada ponto. O problema é maior quando há rompimentos nas duas fitas. Considerando que estamos falando de seres humanos, o DNA tem 2 metros lineares, entulhados dentro de um espaço de 2,5 milésimos de centímetro. A quantidade de dobras e nós faz com que pequenos rompimentos causem enormes estragos. Um raio gama quebrando um nó de DNA provoca muitas pontas soltas e a célula pode não saber como consertar esse erro.

A célula pode acionar seu mecanismo de suicídio. Sobreviventes notaram unhas caindo, pedaços do corpo se soltando. Um deles falou de um “carvão humano” que se movia sobre dois tocos de pernas.

No caso de Yamaguchi, ele se recuperou dos ferimentos, voltou a trabalhar na Mitsubichi, depois trocou o emprego pelo cargo de professor universitário. Mas o medo de doenças, como câncer, ainda o acompanhava. Ele recebera uma quantidade de radiação cem vezes maior, e de uma vez, que a radiação de fundo que todos nós absorvemos em um ano.

O Japão experimentou um aumento imediato nos casos de leucemia. Outros tipos de câncer tiveram aumento nos anos seguintes. Embora os adultos tenham sofrido, os fetos sofreram mais. Aqueles com menos de quatro meses de gestação, sofreram aborto espontâneo. Aqueles nascidos entre 1945 e 1946, o QI mais alto alcançava 68. Desnecessário dizer que m,uitos desses sobreviventes tiveram filhos nos anos seguintes.   

DNA canceroso não passa para o descendente, pois está fora dos espermatozóides e dos óvulos. No entanto, a real extensão dos danos somente seria estudada agora.

Yamaguchi e sua esposa tiveram outro filho. A filha nasceu sem defeitos ou deformidades. Outra filha veio, também saudável. Entretanto, ambas sofreram de doenças na adolescência, provavelmente por terem um sistema imunológico comprometido, provavelmente herdado do pai.

Mas não houve a epidemia que muitos esperavam. Em geral, a geração seguinte não sofreu danos pela radiação das bombas.

O filho de Yamaguchi viveu até os 58 anos. Morreu de câncer. Sua esposa, Hisako, morreu aos 88 anos, de câncer no fígado e no rim. Quanto a Yamaguchi, viveu até os 93 anos e morreu de câncer no estômago.

Conclusão científica: depois de 3 bilhões de anos de exposição aos raios cósmicos e à radiação solar, a natureza tem suas salvaguardas, seus métodos de corrigir e preservar a integridade do DNA.


Rubem L. de F. Auto
   

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