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terça-feira, 15 de novembro de 2016

SOBRE HUMANZÉS NATURAIS E ARTIFICIAIS

Nós somos primatas. E o somos há 60 milhões de anos. Os primeiros primatas tinham no máximo meio quilo e vivam até os seis anos. A linhagem em que nos encontrávamos se dividiu quando surgiu um primata com um esquisito dedo opositor e se pôs sobre os dois pés, numa savana da África.

Ao longo da história, cientistas tentaram fazer combinações entre seres humanos e animais. Talvez o mais famoso tenha sido o cientista russo Ilya Ivanovich Ivanov, na década de 1920, com aprovação de Stalin. Ele planejava unir humanos e chimpanzés.

Ivanov trabalhava no Departamento de Estado para Criação de Cavalos, órgão responsável por fornecer os melhores animais para o Czar, e era especialista em inseminação pecuária (gerava vacas e bodes geneticamente melhores). Trabalhava usando uma esponja, para embeber no esperma, e um cateter de borracha, para inseminar as fêmeas.

Os cientistas da época sofriam com a oposição que as diversas religiões faziam à prática da inseminação artificial. Uma técnica que “substituía” o ato sexual tradicional era considerada pecado. O Vaticano a proibiu em 1897, assim como a Igreja Ortodoxa.

Porém Ivanov não apenas se dedicava a essa tarefa, como ainda pretendia fazer cruzamentos entre diferentes espécies. Desde 1910, Ivanov refletia acerca da comprovação final da evolução de Darwin: o humanzé. Em meados de 1920, requisitou ao governo recursos para essa experiência.

Para se ter uma ideia do ambiente internacional pelo qual a biologia passava, nessa mesma época, em 1925, ocorria nos EUA o julgamento de John T. Scopes. Esse caso, conhecido como “julgamento do macaco”, um professor foi processado pelo estado em que morava por ensinar teoria da evolução a seus alunos. Porém, na URSS, o governo adiantou o equivalente a U$ 130 mil a Ivanov para criar seu ser híbrido.

A enorme semelhança entre o sangue de humanos e de primatas já era razoavelmente conhecida. Outro russo, o cientista Serge Voronoff, já fazia transplantes de órgãos sexuais de primatas em humanos, para restaurar a virilidade sexual. Um dos seus pacientes foi o poeta irlandês William B. Yeats.

Ivanov já havia misturado antílopes e vacas; porquinhos-da-índia e coelhos; zebras e jumentos (zumento, ou zeedonk, como Ivanov batizara). Assim, ele mostrara que animais cujas linhagens divergiram há milhões de anos podiam gerar filhotes.

Em algum lugar do mundo algum cientista realizou alguma experiência bizarra: leões com tigres; ovelhas com bodes; golfinhos com orcas. Alguns desses híbridos era estéreis. Mas não todos. Cerca de um terço gerava descendentes férteis.

Ivanov teve uma certa vantagem por estar na URSS comunista, cujo materialismo marxista somado ao ateísmo característico expurgava muitas das limitações baseadas em crenças religiosas – como a existência de alma em humanos, mas não em chimpanzés, o que seria um obstáculo intransponível pela ciência.

O espermatozoide humano pode penetrar óvulos de alguns primatas, primeiro passo da fertilização. Os cromossomos são muito parecidos. Uma fita de DNA humano pode se enrolar em uma fita de chimpanzé.

Já os geneticistas têm uma história bem mais bizarra para contar. Dizem que nossos ancestrais procriavam com chimpanzés muito depois da nossa separação em linhagem distinta. Isto é, humanos e chimpanzés copularam por 1 milhão de anos!

A partir daí segue-se uma teoria bem difícil de digerir. Sete milhões de anos atrás, um evento dramático porém ainda desconhecido, separou uma pequena população de primatas. Enquanto separados, mutações foram os tornado distintos com o passar do tempo. No entanto, muito e muito tempo depois, dois desses grupos se reencontraram, por uma circunstância eventual.

A partir daí, segue-se o comportamento lógico. Os proto-humanos, produto da separação dos chimpanzés por 1 milhão de anos, podem ter trocado carícias com proto-chimpanzés. A separação de espécies por um milhão de anos não as torna tão mais distintas que muitas das espécies hoje entrecruzadas normalmente. Talvez alguns descendentes do cruzamento dos proto-humanos com proto-chimpanzés tenham nascido estéreis, mas muitos podem ter sido híbridos férteis.

A ciência sabe que cromossomos X de diferentes espécies não se combinam muito bem. Portanto o cruzamento se deu num período em que esses cromossomos eram semelhantes. E até hoje, entre humanos e chimpanzés, os cromossomos mais parecidos são os sexuais, como que indicando que se mantiveram assim por mais tempo para permitir os cruzamentos entre as espécies. E esse mesmo cromossomo foi capaz de eliminar qualquer outro X com que tivesse que competir na natureza, somente restando um tipo, semelhante nas duas espécies.

Quanto ao Y, especializado na produção de espermatozoide e muito curto, resumido a um pequeno trecho de DNA, este se desenvolveu em um ambiente ultracompetitivo. Teve de se adaptar. O cromossomo Y luta contra o Y de outros indivíduos, haja vista ser normal a fêmea fazer sexo com diversos machos, ao menos nas espécies mais “libertinas”. Portanto a luta é feroz no interior da vagina. A estratégia de sobrevivência é soltar muitos espematozoides a cada ejaculação. Portanto, o processo de copiar e colar DNA é ininterrupto e acelerado, inderindo-se uma cópia em cada esperma. 

E quanto mais cópias ... mais mutações ocorrerão, inquestionavelmente.

O X, por sua vez, sofre menos mutações. Essa seria uma explicação que descartaria a explicação por meio do cruzamento sexual. A semelhança entre os X seria uma manutenção do padrão do X, por causa do menor número de mutações.

Mas, para o Y, não tem jeito. Os cromossomos Y são muito diferentes, e isso se deve à maior competição entre chimpanzés, que fazem mais sexo com amis parceiras. Os Y deles são mais velozes e resistentes, e têm melhor senso de direção. Temos que admitir isso com certa dose de humildade. Esqueça arte e ciência: a natureza preza pela sobrevivência, antes de tudo.

Bom, voltando ao russo. Ivanov decidiu que seu experimento era viável e seguiu em frente. Por meio de um contato em Paris, foi para uma estação de pesquisa na Guiné Francesa (atual Guiné). As condições eram tão ruins que metade dos 700 chimpanzés que adquiriu de caçadores locais morreu. Ivanov ainda pediu ajuda a seu filho.

Inicialmente, Ivanov esperava que as fêmeas entrassem no período fecundo, buscando sinais de menstruação nas fêmeas. Ivanov tinha que guardar segredo dos detalhes dos habitantes locais, que conviviam até com mitos de monstros como os que Ivanov queria gerar.

Duas fêmeas menstruaram. Pegaram o esperma de um morador da região e inseminaram as fêmeas. Foi quase um estupro e ele não alcançou o útero, só a vagina. Todos os outros experimentos, mesmo com uso de drogas, foram mal sucedidos e ele nada tinha a mostrar para o governo soviético.

Teve de se dedicar a outros projetos. Abriu um local de pesquisa de primatas na Geórgia, onde nasceu Stalin. Também se aproximou de uma cubana proprietária de um santuário de primatas em Cuba. Ela aceitou ajuda-lo nos experimentos, porém desistiu após o New York Times revelar a história. Membros da Ku Klux Klan enviaram carta ameaçadora a Ivanov, dizendo que aquilo era “abominável para o Criador” e o matariam se atravessa o Atlântico.

Diante das dificuldades enfrentadas nas experiências anteriores, mudou a abordagem do problema. Resolveu usar um chimpanzé macho para engravidar fêmeas humanas!

Inicialmente usaria pacientes de um médico no Congo, sem que elas soubessem. O governo local soube pouco antes da primeira tentativa e interferiu de maneira a inviabilizá-la.

Decidiu continuar os trabalhos na URSS, na estação que projetara. Conseguiu também convencer mulheres soviéticas a se voluntariarem. Conseguiu o financiamento. Mas não conseguiu fazer os chimpanzés de adaptarem à temperatura local, quente para os russo, mas muito frio para os primatas.

Conseguiu manter um orangotango: o Tarzan, de 26 anos. Precisava da recruta. O governo disse que elas não poderiam ser remuneradas. Depois de muito procurar, achou “G”, que escreveu a Ivanov solicitando a oportunidade. Contudo, Tarzan morreu antes de se iniciarem os trabalhos.

Tentou replicá-lo em 1930, mas foi preso e levado ao Cazaquistão. A acusação foi a repetitiva “atividades contrarrevolucionárias”. Foi absolvido em 1932, mas já tinha bem mais de 70 anos, estava muito abatido e morreu.

O número de cientistas que dominavam as técnicas de Ivanov e as muito cabíveis questões éticas inerentes a esses experimentos fizeram com que não haja registros de tentativas semelhantes desde então. Afinal, quem teria a frieza necessária para inseminar espermas de chimpanzés em mulheres hospitalizadas e sem o conhecimento delas?

Resta sem resposta o questionamento de Ivanov: G e Tarzan teriam gerado um filho? Em 1997 um biólogo de Nova York entrou com um pedido de patente de um processo de misturar células embrionárias de humanos e chimpanzés para gestação em barriga de aluguel. Seu pedido foi negado em 2005. Entendeu-se que violaria a 13ª Emenda, que proíbe a escravidão e a posse de outro ser humano.

Esse processo se diferenciava do de Ivanov pois os DNA não se misturariam. As células embrionárias só entrariam em contato após a fertilização. A criatura seria um mosaico de células humanas e de chimpanzés. Também é possível inserir material genético de humanos em células de primatas e vice-versa.

Mas a hibridização clássica, a mistura meio a meio de material genético de um com o material genético do outro, nessa ninguém crê. Pois a regulação do DNA feita por ambas as espécies é muito distinta. Ainda que houvesse a geração de um zigoto humanzé, este não geraria um organismo apropriado, que ligasse e desligasse seus genes coordenadamente.

O outro obstáculo é a conhecida diferença no número de cromossomos: 48 neles, 46 em nós. Após a morte de milhares de macacos e do roubo de centenas de criminosos enforcados, os cientistas conseguiram chegar a esses números, pelas amostras frescas de seus sêmens. Esse número – 46 – é conhecido desde 1955.

A redução do número de cromossomos na passagem de primatas a humanos foi causada por uma mutação genética iniciada no cromossomo Filadélfia – assim batizado em homanegam à cidade onde foi descoberto. OS cromossomos 12º e 13º juntaram suas pontas para trocar material genético, porém não conseguiram se separar mais. Essa fusão gerou o cromossomo humano 2.

As fusões de cromossomos têm uma frequência de um a cada mil nascimentos e, em geral, não causam qualquer problema. As extremidades dos cromossomos costumam não conter genes. Ok, agora temos 47 cromossomos. Essa pessoa só conseguirá se reproduzir se achar outra com a mesma mutação – a fusão dos cromossomos 12 e 13.

A probabilidade de encontrar uma é muito pequena, mas aumenta no interior das famílias. Matematicamente, mostra-se que a cada 36 nascimentos, os filhos de um casal portador da mutação gera um filho com 46 cromossomos. Seu filho seria saudável e a mutação se espalha pelo mundo.

Esse fato não foi único na história. Uma família na China, com largo histórico de casamentos na mesma família, gerou integrantes com 44 cromossomos. Novamente: isso não necessariamente gera problemas de saúde. Mas o passado da família apresentava recorde de natimortos e abortos espontâneos.

Embora seja possível o cruzamento, por exemplo, de cavalos, com 64 cromossomos com jumentos, que apresentam 62 cromossomos, essa experiência não costuma ser bem sucedida.

Stalin era conhecido pelo desprezo que nutria pela genética. Seu “czar das ciências”, Lysenko, era lamarckiano, rejeitava efusivamente Mendel, e terminou por arrasar toda a agricultura soviética por sua ignorância em termos de melhoramentos genéticos quando era ministro da agricultura. Por que então apoiou Ivanov? Para gerar humanzés soldados ou escravos? Alguns arriscam essa resposta. Não deixa de ser interessante a semelhança com o que se diz acerca da inteligência artificial em robôs. 

Para tanto, também se diz que Stalin esperava humanzés de cérebro reduzido, para não se revoltarem com sua condição na sociedade ...

De qualquer maneira, os recursos não eram tão altos, não há provas sobre o que pretendia exatamente com aquilo.

E essa foi uma pequena parte da nossa história, embora possa parecer bem repugnante.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O polegar do violinista”.

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