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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

BUCKLAND E CUVIER: OS EXCÊNTRICOS QUE DESMENTIRAM O GÊNESIS

Na casa de William Buckland, em Oxford, qualquer pessoa poderia ser surpreendida pelo impensável. Para comer, poderia ser servido: rato à milanesa, costeleta de pantera, torta de rinoceronte, tromba de elefante, crocodilo, língua de cavalo, presunto de canguru.

Passeando pelos corredores ou no jardim, você poderia se deparar com: crânios de animais indescritíveis, macacos balançando pelo corredor, ursinho de quepe e toga, porquinhos-da-índia, uma hiena.

Numa primavera, Buckland escreveu “G-U-A-N-O” no gramado de sua residência, com fezes de morcego, como demonstração de seu poder como fertilizante. A palavra ficou brilhando por meses.

Um dia, visitando uma igreja, o vigário disse-lhe que naquela igreja o “sangue de Cristo” pingava do teto. Buckland abaixou-se, provou o líquido e respondeu ao vigário: “É urina de morcego”.

Uma característica fantástica do corpo humano é sua capacidade de processar quase todo tipo de alimento. Nenhum outro primata sobreviveria a essa experiência. Símios e macacos são basicamente vegetarianos. Uma dieta com muita gordura e colesterol acaba com as entranhas de nossos primos. Laticínios têm o mesmo efeito sobre o organismo deles (o colesterol vai a 300).

Os proto-humanos se alimentavam de carne – provado por artefatos cortantes de pedra encontrados em grande quantidade nos locais onde havia restos de animais, ossos grandes. Porém, é difícil não aceitar que eles devem ter sofrido para digeri-la, a despeito do prazer que tal alimento devesse causar em seus cérebros. O nível de colesterol no sangue deve ter ido às alturas naqueles primeiros-humanos.

A grande mudança ocorreu em nosso DNA. O gene APOE foi o grande diferencial entre humanos e chimpanzés. Ele nos transformou em seres “comedores de carne”. A primeira mutação incrementou a capacidade de nossos glóbulos vermelhos, permitindo que atacassem micróbios que vivem na carne. Há 220 mil anos sofremos outra mutação, que permitiu que nosso corpo processasse a gordura e o colesterol em excesso, limpando nossas veias e artérias. A liberação da toxina da dieta melhorou nosso organismo, tornando-o mais resistente, especialmente na meia-idade.

Contudo, essa história não foi tão suave assim. Existem registros de ossos com marcas de dentes que indicam que comíamos carne há pelo menos 2,5 milhões de anos atrás. Portanto, muito antes de desenvolvermos os genes APOE por mutação. Isso significa que tivermos muitos problemas de saúde e tivemos a nossa expectativa de vida reduzida em função de comermos um alimento para o qual nosso organismo ainda não se adaptara. Embora fornecesse as calorias de que necessitávamos, era um veneno no longo prazo.

Entretanto, ao compararmos o comportamento daqueles nossos antepassados com o comportamento dos humanos atuais, com relação aos excessos alimentares e de bebidas alcoólicas, fica fácil entendê-los e perdoá-los.

As primeiras ferramentas para caça, como lanças afiadas, datam de 400 mil anos atrás. Considerando que o gene APOE surgiu inicialmente para combater os microorganismos da carne, que, portanto, já estava apodrecendo, indicam que a carne de que nos alimentávamos inicialmente era carniça, ou restos de caça de outro animal, que abandonava os restos.

Atualmente muitos cientistas têm desenvolvido a mesma tese com relação aos Tiranossauro Rex. Provavelmente não caçava, mas comia carniças.

Atualmente, parece muito lógica a noção de que animais podem desaparecer da terra, sendo completamente extintos. Mas nem sempre foi assim. A primeira pessoa a dar contornos científicos a essa noção foi o francês Jean Léopold Nicolas Frédéric Cuvier, em 1796. O barão Cuvier, cientista favorito de Napoleão, descobriu o esqueleto de um paquiderme, enterrado numa pedreira próxima de Paris. Cuvier decretou que esse ser não tinha descendentes vivos. Esse esqueleto era chamado até então “Homo diluvii testis”, isto é, era representante dos homens corrompidos expulsos por Deus da Arca de Noé ... Cuvier verificou que era uma salamandra gigante extinta há milhões de anos.

A descoberta desse esqueleto ancestral causou algumas conseqüências interessantes. Thomas Jefferson, além de founding founder e de ter sido um dos primeiros presidentes dos EUA, também se dedicava nas horas vagas ao naturalismo. Consta que instruiu os famosos exploradores Lewis e Clarck a ficarem atentos a preguiças-gigantes e mastodontes na América do Norte. Ossos desses dois animais já haviam sido encontrados em Nova York, em 1801. Parecia a Jefferson que os naturalistas europeus faziam referências pejorativas à fauna e flora da América, fazendo-a parecer mais pobre que a da Europa. No entanto, caso encontrasse um desses seres vivo, valorizaria a natureza do lado de cá do Atlântico e, de quebra, provaria que as espécies não se extinguem.

Buckland também contribuiu para esse debate. Notou que havia toda uma história contida em excrementos fossilizados, os coprólitos. Aproveitou sua lua-de-mel para viajar em busca de fósseis, junto com sua esposa, recolheu e doou diversos desses cocos a museus.

Em outra escavação, Buckland encontrou ossos do que parecia ser uma hiena das cavernas, em Yorkshire, Inglaterra. Nesse local, Buckland também descobriu ossos de répteis gigantes: foi o primeiro de registros fósseis de dinossauros. Buckland o chamou de megalossauro.

Ao refletir sobre seus achados, Buckland ficou curioso acerca da possibilidade de existência de linhagens humanas antigas. Ao especular sobre e existência de Eras Geológicas anteriores ao Gênesis, esse ministro ordenado levantou dúvidas sobre o Velho Testamento. Mas contrarias crenças religiosas naquela época era muito difícil.

Em 1823, foi desenterrado um esqueleto conhecido como a Dama Vermelha de Paviland: era um esqueleto coberto de jóias de conchas marítimas, com maquiagem ocre. Buckland disse que teria sido uma bruxa ou prostituta da Antiga Roma. Na verdade era um homem e tinha mais de 30 mil anos. Também não conseguiu acreditar num sítio arqueológico que continha ferramentas de sílex na mesma camada de ossos anteriores ao Gênesis – contemporâneas de mamutes e tigres dentes-de-sabre.

Buckland também atrapalhou bastante uma das maiores descobertas arqueológicas da história. Em 1829, Philippe-Charles Schmerling desenterrou ossos que pareciam de humanos, mas eram um tanto diferentes, na Bélgica. Achou tratar-se de algum hominídeo já extinto. Sua tese foi ridicularizada por Buckland. Apesar disso, muitos paleontólogos ficaram coma tese de Schmerling nas suas cabeças.

Em 1848, em Gibraltar, foram achados ossos ainda mais estranhos. Alguns anos após, outros ossos igualmente estranhos foram achados no vale do rio Neander, na Alemanha. Alguém disse tratar-se de ossos de um cossaco morto pelo exército de Napoleão. Porém, cientistas, dessa vez, confirmaram: eram ossos de hominídeos de uma linhagem há muito extinta: eram Neandertais.

Poucos anos depois, em 1859, Charles Darwin publicava sua obra “A origem das espécies” e, desde então, ossos de hominídeos passaram a ser encontrados com enorme freqüência, na África, Oriente Médio e na Europa. Fácil imaginar a confusão de questionamentos que tais descobertas levantaram. São todos os hominídeos nossos ancestrais? Se não, o que os diferenciaria exatamente? Foi aí que a genética surgiu em socorro da paleontologia.

Essa experiência foi marcante para os palentólogos. Não era necessário fazer escavações, se sujar de musgos, usar pás e escavar nas pedras ... era só jogar uma proteínas num aparelho moderno, chacoalhar e pronto: surgem respostas para as perguntas mais desafiadoras.

Não se imagine que estudar DNA de seres vivos ancestrais é algo óbvio. A instabilidade termodinâmica do DNA é um obstáculo. Com o passar do tempo, C tende a se desintegrar em T; G em A. Mesmo preservadas no gelo, amostras tendem a se tornar uma linguagem inarticulada. Para completar, grande parte do fragmento analisado é lixo. Fungos e bactérias também podem poluir o DNA.

Aliás, o medo de se estar analisando um DNA contaminado chegou às barras da paranóia. Os locais de escavação passaram o obrigar o uso de luvas e a guardar as amostras em sacos esterilizados. O cabelo é o melhor material genético para analisar. Em segundo lugar, dá-se preferência a fósseis os menos manipulados possíveis.

O seqüenciamento feito pelos paleogeneticistas funciona assim. Determina-se a sequência de bases: A-C-G-T de cada fragmento de DNA. O equipamento usado junta os diversos fragmentos.

O melhor trabalho ocorreu em Neardertais. Esses trabalhos mostraram não apenas a real capacidade cognitiva dos Neandertais, como os colocou como antigos habitantes da Eurásia, que deixou muitos genes nos cromossomos dos atuais europeus e asiáticos. Eram 99% geneticamente iguais a nós, e seu sistema imunológico baseava-se nos genes MHC, praticavam o canibalismo na mesma razão que os Homo Sapiens o faziam. Não digeriam leite após adultos.

Enfim, desde o auxílio da genética, não são apenas artefatos e pedras que contam a história de nossos antepassados mais distantes.



Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro "O polegar do violinista". 

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