Na casa de William Buckland, em
Oxford, qualquer pessoa poderia ser surpreendida pelo impensável. Para comer,
poderia ser servido: rato à milanesa, costeleta de pantera, torta de rinoceronte,
tromba de elefante, crocodilo, língua de cavalo, presunto de canguru.
Passeando pelos corredores ou no
jardim, você poderia se deparar com: crânios de animais indescritíveis, macacos
balançando pelo corredor, ursinho de quepe e toga, porquinhos-da-índia, uma
hiena.
Numa primavera, Buckland escreveu
“G-U-A-N-O” no gramado de sua residência, com fezes de morcego, como
demonstração de seu poder como fertilizante. A palavra ficou brilhando por
meses.
Um dia, visitando uma igreja, o
vigário disse-lhe que naquela igreja o “sangue de Cristo” pingava do teto.
Buckland abaixou-se, provou o líquido e respondeu ao vigário: “É urina de
morcego”.
Uma característica fantástica do
corpo humano é sua capacidade de processar quase todo tipo de alimento. Nenhum
outro primata sobreviveria a essa experiência. Símios e macacos são basicamente
vegetarianos. Uma dieta com muita gordura e colesterol acaba com as entranhas
de nossos primos. Laticínios têm o mesmo efeito sobre o organismo deles (o
colesterol vai a 300).
Os proto-humanos se alimentavam
de carne – provado por artefatos cortantes de pedra encontrados em grande
quantidade nos locais onde havia restos de animais, ossos grandes. Porém, é
difícil não aceitar que eles devem ter sofrido para digeri-la, a despeito do
prazer que tal alimento devesse causar em seus cérebros. O nível de colesterol
no sangue deve ter ido às alturas naqueles primeiros-humanos.
A grande mudança ocorreu em nosso
DNA. O gene APOE foi o grande diferencial entre humanos e chimpanzés. Ele nos
transformou em seres “comedores de carne”. A primeira mutação incrementou a
capacidade de nossos glóbulos vermelhos, permitindo que atacassem micróbios que
vivem na carne. Há 220 mil anos sofremos outra mutação, que permitiu que nosso
corpo processasse a gordura e o colesterol em excesso, limpando nossas veias e
artérias. A liberação da toxina da dieta melhorou nosso organismo, tornando-o
mais resistente, especialmente na meia-idade.
Contudo, essa história não foi
tão suave assim. Existem registros de ossos com marcas de dentes que indicam
que comíamos carne há pelo menos 2,5 milhões de anos atrás. Portanto, muito
antes de desenvolvermos os genes APOE por mutação. Isso significa que tivermos
muitos problemas de saúde e tivemos a nossa expectativa de vida reduzida em função
de comermos um alimento para o qual nosso organismo ainda não se adaptara. Embora
fornecesse as calorias de que necessitávamos, era um veneno no longo prazo.
Entretanto, ao compararmos o
comportamento daqueles nossos antepassados com o comportamento dos humanos
atuais, com relação aos excessos alimentares e de bebidas alcoólicas, fica
fácil entendê-los e perdoá-los.
As primeiras ferramentas para
caça, como lanças afiadas, datam de 400 mil anos atrás. Considerando que o gene
APOE surgiu inicialmente para combater os microorganismos da carne, que,
portanto, já estava apodrecendo, indicam que a carne de que nos alimentávamos
inicialmente era carniça, ou restos de caça de outro animal, que abandonava os
restos.
Atualmente muitos cientistas têm
desenvolvido a mesma tese com relação aos Tiranossauro Rex. Provavelmente não
caçava, mas comia carniças.
Atualmente, parece muito lógica a
noção de que animais podem desaparecer da terra, sendo completamente extintos.
Mas nem sempre foi assim. A primeira pessoa a dar contornos científicos a essa
noção foi o francês Jean Léopold Nicolas Frédéric Cuvier, em 1796. O barão
Cuvier, cientista favorito de Napoleão, descobriu o esqueleto de um paquiderme,
enterrado numa pedreira próxima de Paris. Cuvier decretou que esse ser não tinha
descendentes vivos. Esse esqueleto era chamado até então “Homo diluvii testis”,
isto é, era representante dos homens corrompidos expulsos por Deus da Arca de
Noé ... Cuvier verificou que era uma salamandra gigante extinta há milhões de
anos.
A descoberta desse esqueleto
ancestral causou algumas conseqüências interessantes. Thomas Jefferson, além de
founding founder e de ter sido um dos primeiros presidentes dos EUA, também se
dedicava nas horas vagas ao naturalismo. Consta que instruiu os famosos exploradores
Lewis e Clarck a ficarem atentos a preguiças-gigantes e mastodontes na América
do Norte. Ossos desses dois animais já haviam sido encontrados em Nova York, em
1801. Parecia a Jefferson que os naturalistas europeus faziam referências
pejorativas à fauna e flora da América, fazendo-a parecer mais pobre que a da
Europa. No entanto, caso encontrasse um desses seres vivo, valorizaria a
natureza do lado de cá do Atlântico e, de quebra, provaria que as espécies não
se extinguem.
Buckland também contribuiu para
esse debate. Notou que havia toda uma história contida em excrementos
fossilizados, os coprólitos. Aproveitou sua lua-de-mel para viajar em busca de
fósseis, junto com sua esposa, recolheu e doou diversos desses cocos a museus.
Em outra escavação, Buckland
encontrou ossos do que parecia ser uma hiena das cavernas, em Yorkshire,
Inglaterra. Nesse local, Buckland também descobriu ossos de répteis gigantes:
foi o primeiro de registros fósseis de dinossauros. Buckland o chamou de
megalossauro.
Ao refletir sobre seus achados,
Buckland ficou curioso acerca da possibilidade de existência de linhagens
humanas antigas. Ao especular sobre e existência de Eras Geológicas anteriores
ao Gênesis, esse ministro ordenado levantou dúvidas sobre o Velho Testamento. Mas
contrarias crenças religiosas naquela época era muito difícil.
Em 1823, foi desenterrado um
esqueleto conhecido como a Dama Vermelha de Paviland: era um esqueleto coberto
de jóias de conchas marítimas, com maquiagem ocre. Buckland disse que teria
sido uma bruxa ou prostituta da Antiga Roma. Na verdade era um homem e tinha
mais de 30 mil anos. Também não conseguiu acreditar num sítio arqueológico que
continha ferramentas de sílex na mesma camada de ossos anteriores ao Gênesis –
contemporâneas de mamutes e tigres dentes-de-sabre.
Buckland também atrapalhou
bastante uma das maiores descobertas arqueológicas da história. Em 1829,
Philippe-Charles Schmerling desenterrou ossos que pareciam de humanos, mas eram
um tanto diferentes, na Bélgica. Achou tratar-se de algum hominídeo já extinto.
Sua tese foi ridicularizada por Buckland. Apesar disso, muitos paleontólogos
ficaram coma tese de Schmerling nas suas cabeças.
Em 1848, em Gibraltar, foram
achados ossos ainda mais estranhos. Alguns anos após, outros ossos igualmente
estranhos foram achados no vale do rio Neander, na Alemanha. Alguém disse
tratar-se de ossos de um cossaco morto pelo exército de Napoleão. Porém,
cientistas, dessa vez, confirmaram: eram ossos de hominídeos de uma linhagem há
muito extinta: eram Neandertais.
Poucos anos depois, em 1859,
Charles Darwin publicava sua obra “A origem das espécies” e, desde então, ossos
de hominídeos passaram a ser encontrados com enorme freqüência, na África, Oriente
Médio e na Europa. Fácil imaginar a confusão de questionamentos que tais descobertas
levantaram. São todos os hominídeos nossos ancestrais? Se não, o que os
diferenciaria exatamente? Foi aí que a genética surgiu em socorro da
paleontologia.
Essa experiência foi marcante
para os palentólogos. Não era necessário fazer escavações, se sujar de musgos,
usar pás e escavar nas pedras ... era só jogar uma proteínas num aparelho
moderno, chacoalhar e pronto: surgem respostas para as perguntas mais
desafiadoras.
Não se imagine que estudar DNA de
seres vivos ancestrais é algo óbvio. A instabilidade termodinâmica do DNA é um
obstáculo. Com o passar do tempo, C tende a se desintegrar em T; G em A. Mesmo
preservadas no gelo, amostras tendem a se tornar uma linguagem inarticulada.
Para completar, grande parte do fragmento analisado é lixo. Fungos e bactérias
também podem poluir o DNA.
Aliás, o medo de se estar
analisando um DNA contaminado chegou às barras da paranóia. Os locais de
escavação passaram o obrigar o uso de luvas e a guardar as amostras em sacos
esterilizados. O cabelo é o melhor material genético para analisar. Em segundo
lugar, dá-se preferência a fósseis os menos manipulados possíveis.
O seqüenciamento feito pelos
paleogeneticistas funciona assim. Determina-se a sequência de bases: A-C-G-T de
cada fragmento de DNA. O equipamento usado junta os diversos fragmentos.
O melhor trabalho ocorreu em
Neardertais. Esses trabalhos mostraram não apenas a real capacidade cognitiva
dos Neandertais, como os colocou como antigos habitantes da Eurásia, que deixou
muitos genes nos cromossomos dos atuais europeus e asiáticos. Eram 99%
geneticamente iguais a nós, e seu sistema imunológico baseava-se nos genes MHC,
praticavam o canibalismo na mesma razão que os Homo Sapiens o faziam. Não
digeriam leite após adultos.
Enfim, desde o auxílio da
genética, não são apenas artefatos e pedras que contam a história de nossos
antepassados mais distantes.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro "O polegar do violinista".
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