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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

SOBRE A CARTOGRAFIA DO CORPO HUMANO, URSOS POLARES E VITAMINA A


Durante a era das grandes navegações, alguns navegadores holandeses acreditavam ser possível chegar à China e ao Oriente seguindo uma rota para nordeste, desafiando toda a camada de gelo ao norte da Rússia.
Um dos mais famosos desses navegadores foi Willem Barentsz. Sua primeira viagem, que explorou o mar hoje chamado Mar de Barents, ao norte da Noruega, foi em 1594. Seguiu o esquema mercenário de então: comerciantes juntavam recursos, enchiam um navio de mercadorias e indicavam um capitão para a expedição. As terras ao norte da Sibéria eram conhecidas como Novaya Zemlya.

Durante semanas as embarcações enfrentaram continentes de gelo, viajaram por mais de 2 mil quilômetros, mas seus homens temeram por suas vidas e as embarcações retornaram. Porém, sabia-se agora que era possível navegar pelo Ártico.

Seus relatos inspiraram cartógrafos de todo o mundo, que imaginavam monstros, ciclopes e árvores exóticas, povoando terras até recentemente desconhecidas.

Nossos DNA também possui cartógrafos, genes cartográficos. Eles mapeiam nosso corpo como verdadeiros GPS. Essa tarefa é executada pelos genes conhecidos como Hox. Praticamente todos os animais da natureza possuem esses genes, e é isso que explica o plano corporal único: tronco cilíndrico, cabeça numa ponta, ânus na outro e vários apêndices no meio do caminho.

Os genes Hox se localizam muito próximos um do outro e surgem em trechos contínuos de DNA. Cada posição do Hox corresponde a mais ou menos à sua função no corpo. O primeiro corresponde ao alto da cabeça, o seguinte corresponde à região logo abaixo, e assim por diante. O último corresponde ao à parte mais baixa do tronco. O mesmo ocorre em todos os animais.

Esses genes são tão importantes que a exclusão de um deles pode causar o surgimento de animais com duas mandíbulas, por exemplo. Em animais alados, a exclusão de um Hox pode causar o desaparecimento das asas. Talvez nasçam três olhos. Mas a maioria não sobreviveria.

Porém, para seu funcionamento, é necessário Vitamina A. Esta, na verdade, corresponde a um conjunto de moléculas. As plantas armazenam vitamina A na forma de betacarotenos, que dão a cor característica das cenouras. Os animais a armazenam no fígado, de onde são convertidas em outras substâncias, que mantêm nossa acuidade visual, qualidade dos espermas, produção de mitocôndrias etc. Pensando em aumentar a disposição de vitamina A, foi desenvolvido o arroz dourado (geneticamente modificado), fonte barata dessa substância.

Em humanos, a vitamina A somada aos genes Hox produzem o cérebro fetal, pulmões, olhos, coração, membros etc. Contudo, como quase tudo nessa vida, em excesso pode levar a doenças seriíssimas, inclusive defeitos de nascença. Embora nosso corpo possua reguladores, esses podem ser ineficazes dependendo do excesso.

O responsável por produzir as imperfeições causadas pelo excesso de vitamina A é um gene com nome de personagem de jogos de videogame: Sonic Hedgehog.Um estudante chamado Robert Riddle, nos anos 1990, depois de descobri-lo, resolveu batizá-lo com o nome de seu personagem favorito. Esse gene produz pelos em moscas-das-frutas, lembrando um porco-espinho. Problemas nesse gene podem levar a cânceres, defeitos de nascença múltiplos etc.

Genes Hox controlam os padrões do corpo, enquanto o SHH – ou Sonic Hedgehog – ajuda a controlar a simetria corpórea. O SHH trabalha assim: quando ainda comos uma bolinha de protoplama, a nascente coluna dorsal começa a excretar a proteína produzida pelo SHH. As células ao redor absorvem uma quantidade mais elevada dessas proteínas; as células mais distantes absorvem menos. Baseadas na quantidade de proteínas absorvidas, as células sabem sua localização em relação à linha média da coluna dorsal. Portanto, sabem em que tipo de célula elas se transformarão.

O perigo do excesso de vitamina A é que a quantidade que serve de marcador fica alterada. Isso pode produzir defeitos monstruosos. O cérebro não se divide em hemisférios, os membros inferiores podem se fundir (defeito chamado sirenomelia, ou síndrome da sereia). Já ouve casos de galinhas que nasceram com dois bicos. Outros nasceram com dois narizes; nariz na testa. Falta de SHH também pode levar ao surgimento de um só nariz com uma narina enorme. SHH de menos também leva ao nascimento dos olhos foram do meridiano facial.

Estimulados pelo príncipe Maurício de Nassau, comerciantes holandeses fretaram sete navios com linho, tapeçarias e despacharam Barentsz de volta ao mar. Tomaram um rumo mais ao sul. Encontraram uma ilha cujas praias estavam cheias de pedras que lembravam diamantes. Desembarcaram e começaram a encher os bolsos.

Nesse momento, o que ocorreu ficou bem registrado: um esquivo urso branco surgiu do nada e agarrou um marinheiro pelo pescoço. Pensando que era uma brincadeira, gritou: “Quem é que está me puxando pelo pescoço?”. Somente então seus colegas levantaram os olhos dos diamantes ... e quase desmaiaram.

Esse episódio levou a séculos de caçada indiscriminada aos ursos polares. Histórias de marujos que enfiaram um machado em suas costas e levaram seis tiros sem cair se espalhavam pelo mundo. Ursos foram mutilados para servirem de mascotes. Ursos chegaram a matar tripulantes de navios, antes de serem abatidos. Carcaças eram encontradas espalhadas pelo Ártico inteiro.

A tripulação de Barentsz conseguiu abater o urso branco após ter matado dois marinheiros. O resto da viagem foi de um sofrimento quase indescritível. As placas de gelo flutuante se avolumavam cada vez mais, a vuiagem ficava perigoso. Um motim a bordo levou ao enforcamento de cinco marinheiros. Barentsz ordenou o retorno das naus com as mercadorias com que tinham partido. Os diamantes eram, na verdade, vidro sem valor.

Em 1596, reembarcou. Agora tinha outro capitão consigo: capitão Rijp, de quem se separou imprudentemente. Foi bem ao norte de Novaya Zemlya e iniciou seu contorno. Porém uma onda de frio intenso o obrigou a se dirigir ao sul. O gelo cerrava o caminho e o obrigou a aportar. A tripulação desceu e procurou abrigo naquele continente de gelo. Acharam troncos congelados que juntaram à madeira retirada do navio. Construíram um abrigo de madeira de 8 X 12 m, a que chamaram Het Behouden Huys, ou Casa da Salvação. Tinham agora uma defesa contra o frio, mas não contra ursos polares.

Embora a falta de sol, por meses, ou o frio que congelava a roupa e terminavam por queimá-la quando tentavam descongelá-la na fogueira, ou o quase envenenamento na cabana pelo monóxido de carbono da fogueira, nada se comparava aos ataques de ursos, tanto ao estoque de alimentos quanto aos próprios marujos.

Um dia, após um ataque quase mortal, os homens resolveram caçar o urso responsável pelo susto que tomara. Nos dias seguintes, conseguiram abater mais dois ursos. Exaltados, resolveram se banquetear com os animais. Separaram os músculos, cartilagens, vísceras e ... fígado. Este último órgão rendeu uma lição muito importante. No nível molecular, o fígado dos ursos-polares é altamente concentrado de vitamina A.

As células podem se transformar em partes de quaisquer partes do corpo, bastando apenas desligar os genes que não serão necessários na sua nova função. A vitamina A age como um “fator de transcrição”, que se liga ao DNA e recruta moléculas, que o transcrevem. A vitamina A estimula o crescimento e ajuda a converter células imaturas em ossos e músculos desenvolvidos rapidamente. Na pele, a vitamina A expulsa células em direção ao exterior do corpo. Altas doses de vitamina A pode causar sérios prejuízos à pele.

A tripulação, após se deliciar com o fígado de urso-polar, ficou seriamente doente. Dores de barriga, febre, suor, uma praga quase bíblica. Um deles escreveu em seu diário, recordando da ursa morta: “Sua morte machucou mais que sua vida”. Após algum tempo, a pele dos homens começou a descamar nos lábios e na boca, onde entraram em contato com o fígado. Depois, toda a pele do corpo começou a cair.

Somente no século XX os cientistas descobriram o porquê do excesso de vitamina A no fígado dos ursos-polares. Sua alimentação é à base de focas e pingüins, que precisam desenvolver grandes quantidades de gordura muito rapidamente. Para isso é necessário vitamina A em grande concentração. Os ursos, após milhares de anos, desenvolveram um organismo capaz de lidar com esses animais.

Quanto aos homens, tiveram de aprender: não se come carne de animais de topo da cadeia alimentar. Mas levamos muito tempo para aprender isso ...



Rubem L. de F. Auto

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