Durante a era das grandes
navegações, alguns navegadores holandeses acreditavam ser possível chegar à
China e ao Oriente seguindo uma rota para nordeste, desafiando toda a camada de
gelo ao norte da Rússia.
Um dos mais famosos desses
navegadores foi Willem Barentsz. Sua primeira viagem, que explorou o mar hoje
chamado Mar de Barents, ao norte da Noruega, foi em 1594. Seguiu o esquema
mercenário de então: comerciantes juntavam recursos, enchiam um navio de mercadorias
e indicavam um capitão para a expedição. As terras ao norte da Sibéria eram
conhecidas como Novaya Zemlya.
Durante semanas as embarcações
enfrentaram continentes de gelo, viajaram por mais de 2 mil quilômetros, mas
seus homens temeram por suas vidas e as embarcações retornaram. Porém, sabia-se
agora que era possível navegar pelo Ártico.
Seus relatos inspiraram cartógrafos
de todo o mundo, que imaginavam monstros, ciclopes e árvores exóticas, povoando
terras até recentemente desconhecidas.
Nossos DNA também possui
cartógrafos, genes cartográficos. Eles mapeiam nosso corpo como verdadeiros
GPS. Essa tarefa é executada pelos genes conhecidos como Hox. Praticamente
todos os animais da natureza possuem esses genes, e é isso que explica o plano
corporal único: tronco cilíndrico, cabeça numa ponta, ânus na outro e vários
apêndices no meio do caminho.
Os genes Hox se localizam muito
próximos um do outro e surgem em trechos contínuos de DNA. Cada posição do Hox
corresponde a mais ou menos à sua função no corpo. O primeiro corresponde ao
alto da cabeça, o seguinte corresponde à região logo abaixo, e assim por
diante. O último corresponde ao à parte mais baixa do tronco. O mesmo ocorre em
todos os animais.
Esses genes são tão importantes
que a exclusão de um deles pode causar o surgimento de animais com duas
mandíbulas, por exemplo. Em animais alados, a exclusão de um Hox pode causar o
desaparecimento das asas. Talvez nasçam três olhos. Mas a maioria não
sobreviveria.
Porém, para seu funcionamento, é
necessário Vitamina A. Esta, na verdade, corresponde a um conjunto de
moléculas. As plantas armazenam vitamina A na forma de betacarotenos, que dão a
cor característica das cenouras. Os animais a armazenam no fígado, de onde são convertidas
em outras substâncias, que mantêm nossa acuidade visual, qualidade dos
espermas, produção de mitocôndrias etc. Pensando em aumentar a disposição de
vitamina A, foi desenvolvido o arroz dourado (geneticamente modificado), fonte
barata dessa substância.
Em humanos, a vitamina A somada
aos genes Hox produzem o cérebro fetal, pulmões, olhos, coração, membros etc.
Contudo, como quase tudo nessa vida, em excesso pode levar a doenças
seriíssimas, inclusive defeitos de nascença. Embora nosso corpo possua
reguladores, esses podem ser ineficazes dependendo do excesso.
O responsável por produzir as
imperfeições causadas pelo excesso de vitamina A é um gene com nome de
personagem de jogos de videogame: Sonic Hedgehog.Um estudante chamado Robert
Riddle, nos anos 1990, depois de descobri-lo, resolveu batizá-lo com o nome de
seu personagem favorito. Esse gene produz pelos em moscas-das-frutas, lembrando
um porco-espinho. Problemas nesse gene podem levar a cânceres, defeitos de
nascença múltiplos etc.
Genes Hox controlam os padrões do
corpo, enquanto o SHH – ou Sonic Hedgehog – ajuda a controlar a simetria
corpórea. O SHH trabalha assim: quando ainda comos uma bolinha de protoplama, a
nascente coluna dorsal começa a excretar a proteína produzida pelo SHH. As
células ao redor absorvem uma quantidade mais elevada dessas proteínas; as
células mais distantes absorvem menos. Baseadas na quantidade de proteínas
absorvidas, as células sabem sua localização em relação à linha média da coluna
dorsal. Portanto, sabem em que tipo de célula elas se transformarão.
O perigo do excesso de vitamina A
é que a quantidade que serve de marcador fica alterada. Isso pode produzir
defeitos monstruosos. O cérebro não se divide em hemisférios, os membros inferiores
podem se fundir (defeito chamado sirenomelia, ou síndrome da sereia). Já ouve
casos de galinhas que nasceram com dois bicos. Outros nasceram com dois narizes;
nariz na testa. Falta de SHH também pode levar ao surgimento de um só nariz com
uma narina enorme. SHH de menos também leva ao nascimento dos olhos foram do
meridiano facial.
Estimulados pelo príncipe Maurício
de Nassau, comerciantes holandeses fretaram sete navios com linho, tapeçarias e
despacharam Barentsz de volta ao mar. Tomaram um rumo mais ao sul. Encontraram
uma ilha cujas praias estavam cheias de pedras que lembravam diamantes.
Desembarcaram e começaram a encher os bolsos.
Nesse momento, o que ocorreu
ficou bem registrado: um esquivo urso branco surgiu do nada e agarrou um marinheiro
pelo pescoço. Pensando que era uma brincadeira, gritou: “Quem é que está me
puxando pelo pescoço?”. Somente então seus colegas levantaram os olhos dos
diamantes ... e quase desmaiaram.
Esse episódio levou a séculos de
caçada indiscriminada aos ursos polares. Histórias de marujos que enfiaram um
machado em suas costas e levaram seis tiros sem cair se espalhavam pelo mundo.
Ursos foram mutilados para servirem de mascotes. Ursos chegaram a matar
tripulantes de navios, antes de serem abatidos. Carcaças eram encontradas
espalhadas pelo Ártico inteiro.
A tripulação de Barentsz
conseguiu abater o urso branco após ter matado dois marinheiros. O resto da
viagem foi de um sofrimento quase indescritível. As placas de gelo flutuante se
avolumavam cada vez mais, a vuiagem ficava perigoso. Um motim a bordo levou ao
enforcamento de cinco marinheiros. Barentsz ordenou o retorno das naus com as
mercadorias com que tinham partido. Os diamantes eram, na verdade, vidro sem
valor.
Em 1596, reembarcou. Agora tinha
outro capitão consigo: capitão Rijp, de quem se separou imprudentemente. Foi
bem ao norte de Novaya Zemlya e iniciou seu contorno. Porém uma onda de frio
intenso o obrigou a se dirigir ao sul. O gelo cerrava o caminho e o obrigou a
aportar. A tripulação desceu e procurou abrigo naquele continente de gelo.
Acharam troncos congelados que juntaram à madeira retirada do navio.
Construíram um abrigo de madeira de 8 X 12 m, a que chamaram Het Behouden Huys,
ou Casa da Salvação. Tinham agora uma defesa contra o frio, mas não contra
ursos polares.
Embora a falta de sol, por meses,
ou o frio que congelava a roupa e terminavam por queimá-la quando tentavam
descongelá-la na fogueira, ou o quase envenenamento na cabana pelo monóxido de
carbono da fogueira, nada se comparava aos ataques de ursos, tanto ao estoque
de alimentos quanto aos próprios marujos.
Um dia, após um ataque quase
mortal, os homens resolveram caçar o urso responsável pelo susto que tomara.
Nos dias seguintes, conseguiram abater mais dois ursos. Exaltados, resolveram
se banquetear com os animais. Separaram os músculos, cartilagens, vísceras e
... fígado. Este último órgão rendeu uma lição muito importante. No nível
molecular, o fígado dos ursos-polares é altamente concentrado de vitamina A.
As células podem se transformar
em partes de quaisquer partes do corpo, bastando apenas desligar os genes que
não serão necessários na sua nova função. A vitamina A age como um “fator de
transcrição”, que se liga ao DNA e recruta moléculas, que o transcrevem. A
vitamina A estimula o crescimento e ajuda a converter células imaturas em ossos
e músculos desenvolvidos rapidamente. Na pele, a vitamina A expulsa células em
direção ao exterior do corpo. Altas doses de vitamina A pode causar sérios
prejuízos à pele.
A tripulação, após se deliciar
com o fígado de urso-polar, ficou seriamente doente. Dores de barriga, febre,
suor, uma praga quase bíblica. Um deles escreveu em seu diário, recordando da
ursa morta: “Sua morte machucou mais que sua vida”. Após algum tempo, a pele
dos homens começou a descamar nos lábios e na boca, onde entraram em contato
com o fígado. Depois, toda a pele do corpo começou a cair.
Somente no século XX os
cientistas descobriram o porquê do excesso de vitamina A no fígado dos
ursos-polares. Sua alimentação é à base de focas e pingüins, que precisam
desenvolver grandes quantidades de gordura muito rapidamente. Para isso é
necessário vitamina A em grande concentração. Os ursos, após milhares de anos,
desenvolveram um organismo capaz de lidar com esses animais.
Quanto aos homens, tiveram de
aprender: não se come carne de animais de topo da cadeia alimentar. Mas levamos
muito tempo para aprender isso ...
Rubem L. de F. Auto
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