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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

LIVRAI-NOS DE TODO O MAL OU LIVRAI-NOS DE TODAS AS PESSOAS?


Em maio de 1960, um senhor conhecido como Ricardo Klement foi seqüestrado em uma rua nos subúrbios de Buenos Aires. Reapareceu depois, a milhares de quilômetros dali, no papel de acusado de cometer crimes contra a humanidade.

Adolf Eichmann, tenente-coronel das SS, era sua identidade verdadeira. Viveu 15 anos na clandestinidade. Somente foi reconhecido quando um antigo preso de um campo de concentração o viu e avisou o serviço de segurança israelense. Foi raptado por ordem de Bem Gurion, chefe de Estado de Israel. Seu julgamento se iniciou em abril de 1961, em Jerusalém.

Esteve o tempo todo protegido por um vidro a prova de balas, tinha em frente de si um monte de documentos e usava um aparelho auricular por onde ouvia a tradução das falas em hebraico, além de um microfone. Em finais de 1961, foi condenado à morte, que foi consumada seis meses depois, na forca. Suas cinzas foram lançadas no Mediterrâneo, em área fora da jurisdição de qualquer país.

A partir de 1963, a revista New Yorker passou a publicar uma série de artigos sobre o processo. O título desses artigos era “Eichmann em Jerusalém”. Pouco tempo depois foi publicado o livro homônimo. Sua autora era a filósofa judia Hannah Arendt. Saíra em 1933 da Alemanha.

Arendt começou a se sentir ameaçada quando o Reichstag foi incendiado por um anarquista holandês e o governo nazista de então usou esse episódio para suprimir uma série de direitos civis. Arendt chegou a ser presa, mas conseguiu escapar da prisão em direção a Paris, após cruzar a Suíça. Quando, em 1940, a Alemanha invadiu a França, Arendt foi declarada cidadão estrangeira inimiga e foi encaminhada ao campo de concentração de Gurs, de onde escapou novamente. Em maio de 1941 chegou a Nova York, depois de uma escala em Lisboa.

Tornou-se redatora da revista judaica Aujbau, depois foi diretora da editora Schoken. Estudara filosofia com os professores Edmund Husserl, Karl Jaspers e Martin Heidegger, com quem teve um breve relacionamento. Escreveu uma tese cujo tema era o totalitarismo: “As origens do autoritarismo”, de 1951. Neste, comparava as estruturas do stalinismo e do fascismo. Acreditava que o poder político não podia se apoiar na violência. Ela não via o poder como propriedade de alguém, mas como algo que surgia a partir da cooperação das pessoas, em liberdade.

Com sua reportagem sobre o julgamento de Eichmann fez desmoronar a opinião comum sobre o Holocausto. Em 1942, na Conferência de Wansee, concluíram os dirigentes nazistas que a solução final a ser empreendida contra os judeus seria o seu extermínio. Eichmann foi o encarregado de redigir a ta da sessão.

Arendt conseguira que a revista New Yorker a enviasse a Jerusalém para fazer a cobertura do processo. O título completo da cobertura era: “Eichmann em Jerusalém: uma reportagem sobre a banalidade do mal”. Esse título, por si só, foi capaz de desencadear uma avalanche de debates inflamados. Judeus se sentiram ofendidos, indignados e ofendidos.

Inicialmente, Arendt desferiu críticas quanto à legitimidade do tribunal e do procedimento judicial. Ela se referiu a todo o julgamento como um imenso teatro. Depois, Arendt desferiu críticas ferinas aos conselhos judeus europeus na Solução Final. Ela os acusou de terem sido passivamente tolerantes; no caso de alguns, chegou a acusá-los de colaboração com os assassinos nazistas. Finalmente, Arendt ouviu críticas por ter se referido ao acusado como “banal”.

Eichmann, pessoalmente, nunca matou ninguém. Contudo, do seu gabinete, ordenou a morte de seis milhões de judeus, idealizou e ordenou a construção dos campos de concentração e organizou minuciosamente a transferência de milhões de judeus para tais campos. Durante o julgamento, em momento algum se comportou com ódio ou virulência. Ninguém viu ali um monstro sanguinário. Qualquer um poderia ver ali alguém comum, como seu chefe ou seu vizinho. Parecia até uma pessoa bem simpática.

Mas como? Suas ações eram tão cruéis, desapiedadas, mostruosas ... como poderia o responsável ser uma pessoa tão banal? Arendt forneceu uma nova dimensão do mal, da crueldade. O mal deixava de ser o resultado de uma vontade diabólica, manifestada num ser monstruoso, e passava a ser, de fato, a incapacidade de alguém refletir sobre o alcance de suas ações.

Num programa de televisão, Arendt disse: “Realmente acreditava que Eichmann era um brincalhão, e digo-lhe que li, e me detive particularmente nas declarações que prestou no interrogatório policial, 3.600 páginas, e que não sei quantas vezes cheguei a rir ... gargalhar! As pessoas me levaram a mal por ser esta minha reação! Mas não pude evitar”.

Por suas palavras, Arendt foi acusada de desalmada. Os ataques eram pessoais. Cada vez se discutia mais sobre os dois tipos de males identificados até então: o mal diabólico de Hitler; e o mal banal de Eichmann e de milhares de outros alemães exerceram algum papel naquela atrocidade.

Muitos a acusaram de retirar a devida importância aos crimes de Eichmann. Em Israel foi declarada persona non grata. Somente em 2000 surgiu uma versão hebraica de sua obra. Entretanto, por meio de suas palavras, Arendt traçou o perfil de todos aqueles que negam responsabilidade pelos seus atos, alegando apenas que cumpriam ordens. O banal é materializado na falta de motivos ideológicos, que os levem a refletir e criticar aquilo que fazem.

Eichmann nunca se arrependeu do que fez: “O arrependimento é próprio das crianças”. Alegava simples cumprimento de ordens  com a intenção clara de retirar a importância de suas ações.

Independente da solidez acadêmica de suas teses e de seus argumentos, a maior contribuição de Arendt foi tirar o mal do plano diabólico em que se encontrava e trazê-lo para a vida cotidiana, onde se manifesta em todos os nossos congêneres, em nós mesmos, bastando apenas que deixemos de nos responsabilizar pelas conseqüências de nossos atos.



Rubem L. de F. Auto 

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