Em maio de 1960, um senhor
conhecido como Ricardo Klement foi seqüestrado em uma rua nos subúrbios de
Buenos Aires. Reapareceu depois, a milhares de quilômetros dali, no papel de
acusado de cometer crimes contra a humanidade.
Adolf Eichmann, tenente-coronel
das SS, era sua identidade verdadeira. Viveu 15 anos na clandestinidade.
Somente foi reconhecido quando um antigo preso de um campo de concentração o
viu e avisou o serviço de segurança israelense. Foi raptado por ordem de Bem Gurion,
chefe de Estado de Israel. Seu julgamento se iniciou em abril de 1961, em
Jerusalém.
Esteve o tempo todo protegido por
um vidro a prova de balas, tinha em frente de si um monte de documentos e usava
um aparelho auricular por onde ouvia a tradução das falas em hebraico, além de
um microfone. Em finais de 1961, foi condenado à morte, que foi consumada seis
meses depois, na forca. Suas cinzas foram lançadas no Mediterrâneo, em área
fora da jurisdição de qualquer país.
A partir de 1963, a revista New
Yorker passou a publicar uma série de artigos sobre o processo. O título desses
artigos era “Eichmann em Jerusalém”. Pouco tempo depois foi publicado o livro
homônimo. Sua autora era a filósofa judia Hannah Arendt. Saíra em 1933 da Alemanha.
Arendt começou a se sentir
ameaçada quando o Reichstag foi incendiado por um anarquista holandês e o
governo nazista de então usou esse episódio para suprimir uma série de direitos
civis. Arendt chegou a ser presa, mas conseguiu escapar da prisão em direção a
Paris, após cruzar a Suíça. Quando, em 1940, a Alemanha invadiu a França,
Arendt foi declarada cidadão estrangeira inimiga e foi encaminhada ao campo de
concentração de Gurs, de onde escapou novamente. Em maio de 1941 chegou a Nova
York, depois de uma escala em Lisboa.
Tornou-se redatora da revista
judaica Aujbau, depois foi diretora da editora Schoken. Estudara filosofia com
os professores Edmund Husserl, Karl Jaspers e Martin Heidegger, com quem teve
um breve relacionamento. Escreveu uma tese cujo tema era o totalitarismo: “As
origens do autoritarismo”, de 1951. Neste, comparava as estruturas do
stalinismo e do fascismo. Acreditava que o poder político não podia se apoiar
na violência. Ela não via o poder como propriedade de alguém, mas como algo que
surgia a partir da cooperação das pessoas, em liberdade.
Com sua reportagem sobre o
julgamento de Eichmann fez desmoronar a opinião comum sobre o Holocausto. Em
1942, na Conferência de Wansee, concluíram os dirigentes nazistas que a solução
final a ser empreendida contra os judeus seria o seu extermínio. Eichmann foi o
encarregado de redigir a ta da sessão.
Arendt conseguira que a revista
New Yorker a enviasse a Jerusalém para fazer a cobertura do processo. O título
completo da cobertura era: “Eichmann em Jerusalém: uma reportagem sobre a
banalidade do mal”. Esse título, por si só, foi capaz de desencadear uma
avalanche de debates inflamados. Judeus se sentiram ofendidos, indignados e
ofendidos.
Inicialmente, Arendt desferiu
críticas quanto à legitimidade do tribunal e do procedimento judicial. Ela se
referiu a todo o julgamento como um imenso teatro. Depois, Arendt desferiu
críticas ferinas aos conselhos judeus europeus na Solução Final. Ela os acusou
de terem sido passivamente tolerantes; no caso de alguns, chegou a acusá-los de
colaboração com os assassinos nazistas. Finalmente, Arendt ouviu críticas por
ter se referido ao acusado como “banal”.
Eichmann, pessoalmente, nunca
matou ninguém. Contudo, do seu gabinete, ordenou a morte de seis milhões de
judeus, idealizou e ordenou a construção dos campos de concentração e organizou
minuciosamente a transferência de milhões de judeus para tais campos. Durante o
julgamento, em momento algum se comportou com ódio ou virulência. Ninguém viu
ali um monstro sanguinário. Qualquer um poderia ver ali alguém comum, como seu
chefe ou seu vizinho. Parecia até uma pessoa bem simpática.
Mas como? Suas ações eram tão
cruéis, desapiedadas, mostruosas ... como poderia o responsável ser uma pessoa
tão banal? Arendt forneceu uma nova dimensão do mal, da crueldade. O mal
deixava de ser o resultado de uma vontade diabólica, manifestada num ser
monstruoso, e passava a ser, de fato, a incapacidade de alguém refletir sobre o
alcance de suas ações.
Num programa de televisão, Arendt
disse: “Realmente acreditava que Eichmann era um brincalhão, e digo-lhe que li,
e me detive particularmente nas declarações que prestou no interrogatório
policial, 3.600 páginas, e que não sei quantas vezes cheguei a rir ...
gargalhar! As pessoas me levaram a mal por ser esta minha reação! Mas não pude
evitar”.
Por suas palavras, Arendt foi
acusada de desalmada. Os ataques eram pessoais. Cada vez se discutia mais sobre
os dois tipos de males identificados até então: o mal diabólico de Hitler; e o
mal banal de Eichmann e de milhares de outros alemães exerceram algum papel
naquela atrocidade.
Muitos a acusaram de retirar a
devida importância aos crimes de Eichmann. Em Israel foi declarada persona non
grata. Somente em 2000 surgiu uma versão hebraica de sua obra. Entretanto, por
meio de suas palavras, Arendt traçou o perfil de todos aqueles que negam
responsabilidade pelos seus atos, alegando apenas que cumpriam ordens. O banal
é materializado na falta de motivos ideológicos, que os levem a refletir e
criticar aquilo que fazem.
Eichmann nunca se arrependeu do
que fez: “O arrependimento é próprio das crianças”. Alegava simples cumprimento
de ordens com a intenção clara de retirar
a importância de suas ações.
Independente da solidez acadêmica
de suas teses e de seus argumentos, a maior contribuição de Arendt foi tirar o
mal do plano diabólico em que se encontrava e trazê-lo para a vida cotidiana,
onde se manifesta em todos os nossos congêneres, em nós mesmos, bastando apenas
que deixemos de nos responsabilizar pelas conseqüências de nossos atos.
Rubem L. de F. Auto
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