O fato seguinte se deu na
Universidade de Leiden, na Holanda. Médicos do serviço de diagnóstico pré-natal
atenderam Ingrid, uma advogada em início de gravidez. Seu pai tinha hemofilia e
ela sabia ser portadora assintomática da doença.
A hemofilia é um distúrbio no
processo de coagulação sanguínea. Ela é provocada por mutação genética, que
afeta os genes responsáveis pela produção das proteínas que regulam os fatores
VIII e IX do sangue. Nos casos mais graves, evolui para hemorragias internas.
Essas hemorragias podem deixar sequelas físicas.
A preocupação de Ingrid era saber
se seu filho tinha herdado a doença, por meio de diagnóstico pré-natal. Na
Holanda, assim como em quase toda a Europa, é permitido interromper a gravidez
quando o motivo for relacionado a doença genética, desde que o casal manifeste
a vontade.
Interessante notar que um dos
obstáculos a serem superados pelas equipes médicas, ao informarem sobre uma
eventual doença de fundo genético, é convencer o cônjuge que a transmitiu não é
“culpado” pela doença do filho. Trata-se de simples loteria da natureza.
A hemofilia ocorre no organismo
por meio da transmissão de um gene que se liga a um dos pares do cromosssomo
sexual X. As mulheres, que possuem o par cromossômico XX, podem herdar o gene “hemofílico”
em um dos X, porém o outro, idêntico, raramente terá o mesmo problema, e assim
este segundo produzirá todas as proteínas necessárias, não permitindo assim o
desenvolvimento da doença. Diz-se que as mulheres são portadoras
assintomáticas.
O mesmo não ocorre nos homens,
que possuem um par de cromossomos sexuais XY. O cromossomo Y não terá os mesmos
genes do cromossomo X, não podendo, portanto, compensar a falha do primeiro,
Se o pai hemofílico tiver filha,
ele transmitirá a doença, mas suas filhas não a manifestarão. Por outro lado,
tendo filho, este terá 50% de chances de herdar a doença. O diagnóstico
pré-natal pode investigar se o feto é portador da doença quando realizado entre
a oitava e a décima semana de gestação. Analisa-se aí o DNA do feto, a partir
da coleta de vilosidades coriônicas retiradas na região intravaginal. Esta
secreção é que forma a placenta.
Os resultados da análise do feto
são comparados com a análise sanguínea e do DNA da gestante e dos pais da
gestante. Essa análise revelará qual a mutação genética que afeta a família.
A análise genética descrita não é
um teste de paternidade, mas revela o vínculo genético entre as pessoas
testadas. Muitas vezes os resultados são reveladores de não filiação paterna em
uma proporção chocante: acima de 10% das famílias testadas nos EUA revelam que
o pai “documentado” não é o pai biológico da criança.
Embora haja conseqüências sociais
colaterais não desejadas pelos médicos, esse resultado é muito importante para
traçar os riscos de doenças genéticas da gravidez atual e de futuras. O fato de
o pai apresentado não ser pai biológico pode alterar completamente o diagnóstico
do filho.
Uma pesquisa realizada sobre esse
assunto, nos EUA, mostrou que 96% dos médicos consultados não revelariam o
resultado “inesperado” referente à paternidade, com vistas a manter o vínculo
familiar sem traumas. 13% diriam que mentiriam ou ocultariam a informação,
revelando apenas os resultados diretamente relacionados à doença pesquisada.
O exame de Ingrid revelou que seu
pai hemofílico não era seu pai biológico: Ingrid não corria o risco de ter um
bebê hemofílico, mas é quanto à outra informação?
Doenças neurodegenerativas, como coréia
de Huntington, têm a mesma causa e seu diagnóstico pode revelar filiações
familiares biológica e socialmente contraditórias. Seria ético que a mãe,
consciente da falsa paternidade em que a família crê, deixe que o teste
genético revele um resultado que ela mesma poderia revelar? É ético evitar esse
trauma em nome de uma família unida.
Um paciente portador de leucemia –
doença sanguínea curável por meio de transplante de medula óssea, ou por meio
do sangue do cordão umbilical de um doador – precisa de máxima afinidade
sanguínea entre si e o doador. Utiliza-se a sigla HLA: antígeno leucocitário
humano, em inglês. Esse sistema faz parte do sistema imunológico principal MHC:
glicoproteínas localizadas na membrana de células do sistema imunológico
reconhecem corpos alienígenas (antígenos) e acionam suas defesas.
Quanto maior a compatibilidade
dos HLA, maior a probabilidade de êxito do transplante. A compatibilidade total
ocorre entre gêmeos idênticos. Entre irmãos, a semelhança ocorre com
probabilidade de 25%. A identificação do doador compatível ocorre após se
testarem todos os membros da família.
Após tais testes, identificado um
membro da família cujo teste genético contradiz sua filiação “oficial”, deve-se
revelá-lo. Em um caso real, após tornar pública a informação de que um dos filhos
não era pai de quem pensava ser, e de quase terminar o casamento do casal
frente ao pai inconformado, investigações adicionais revelarem que o babe havia
sido trocado na maternidade.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “GenÉtica: escolhas
que nossos avós não faziam ...”
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