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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A ÉTICA NOS GENES


O fato seguinte se deu na Universidade de Leiden, na Holanda. Médicos do serviço de diagnóstico pré-natal atenderam Ingrid, uma advogada em início de gravidez. Seu pai tinha hemofilia e ela sabia ser portadora assintomática da doença.

A hemofilia é um distúrbio no processo de coagulação sanguínea. Ela é provocada por mutação genética, que afeta os genes responsáveis pela produção das proteínas que regulam os fatores VIII e IX do sangue. Nos casos mais graves, evolui para hemorragias internas. Essas hemorragias podem deixar sequelas físicas.

A preocupação de Ingrid era saber se seu filho tinha herdado a doença, por meio de diagnóstico pré-natal. Na Holanda, assim como em quase toda a Europa, é permitido interromper a gravidez quando o motivo for relacionado a doença genética, desde que o casal manifeste a vontade.

Interessante notar que um dos obstáculos a serem superados pelas equipes médicas, ao informarem sobre uma eventual doença de fundo genético, é convencer o cônjuge que a transmitiu não é “culpado” pela doença do filho. Trata-se de simples loteria da natureza.

A hemofilia ocorre no organismo por meio da transmissão de um gene que se liga a um dos pares do cromosssomo sexual X. As mulheres, que possuem o par cromossômico XX, podem herdar o gene “hemofílico” em um dos X, porém o outro, idêntico, raramente terá o mesmo problema, e assim este segundo produzirá todas as proteínas necessárias, não permitindo assim o desenvolvimento da doença. Diz-se que as mulheres são portadoras assintomáticas.

O mesmo não ocorre nos homens, que possuem um par de cromossomos sexuais XY. O cromossomo Y não terá os mesmos genes do cromossomo X, não podendo, portanto, compensar a falha do primeiro,

Se o pai hemofílico tiver filha, ele transmitirá a doença, mas suas filhas não a manifestarão. Por outro lado, tendo filho, este terá 50% de chances de herdar a doença. O diagnóstico pré-natal pode investigar se o feto é portador da doença quando realizado entre a oitava e a décima semana de gestação. Analisa-se aí o DNA do feto, a partir da coleta de vilosidades coriônicas retiradas na região intravaginal. Esta secreção é que forma a placenta.

Os resultados da análise do feto são comparados com a análise sanguínea e do DNA da gestante e dos pais da gestante. Essa análise revelará qual a mutação genética que afeta a família.

A análise genética descrita não é um teste de paternidade, mas revela o vínculo genético entre as pessoas testadas. Muitas vezes os resultados são reveladores de não filiação paterna em uma proporção chocante: acima de 10% das famílias testadas nos EUA revelam que o pai “documentado” não é o pai biológico da criança.

Embora haja conseqüências sociais colaterais não desejadas pelos médicos, esse resultado é muito importante para traçar os riscos de doenças genéticas da gravidez atual e de futuras. O fato de o pai apresentado não ser pai biológico pode alterar completamente o diagnóstico do filho.

Uma pesquisa realizada sobre esse assunto, nos EUA, mostrou que 96% dos médicos consultados não revelariam o resultado “inesperado” referente à paternidade, com vistas a manter o vínculo familiar sem traumas. 13% diriam que mentiriam ou ocultariam a informação, revelando apenas os resultados diretamente relacionados à doença pesquisada.

O exame de Ingrid revelou que seu pai hemofílico não era seu pai biológico: Ingrid não corria o risco de ter um bebê hemofílico, mas é quanto à outra informação?

Doenças neurodegenerativas, como coréia de Huntington, têm a mesma causa e seu diagnóstico pode revelar filiações familiares biológica e socialmente contraditórias. Seria ético que a mãe, consciente da falsa paternidade em que a família crê, deixe que o teste genético revele um resultado que ela mesma poderia revelar? É ético evitar esse trauma em nome de uma família unida.

Um paciente portador de leucemia – doença sanguínea curável por meio de transplante de medula óssea, ou por meio do sangue do cordão umbilical de um doador – precisa de máxima afinidade sanguínea entre si e o doador. Utiliza-se a sigla HLA: antígeno leucocitário humano, em inglês. Esse sistema faz parte do sistema imunológico principal MHC: glicoproteínas localizadas na membrana de células do sistema imunológico reconhecem corpos alienígenas (antígenos) e acionam suas defesas.

Quanto maior a compatibilidade dos HLA, maior a probabilidade de êxito do transplante. A compatibilidade total ocorre entre gêmeos idênticos. Entre irmãos, a semelhança ocorre com probabilidade de 25%. A identificação do doador compatível ocorre após se testarem todos os membros da família.

Após tais testes, identificado um membro da família cujo teste genético contradiz sua filiação “oficial”, deve-se revelá-lo. Em um caso real, após tornar pública a informação de que um dos filhos não era pai de quem pensava ser, e de quase terminar o casamento do casal frente ao pai inconformado, investigações adicionais revelarem que o babe havia sido trocado na maternidade.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “GenÉtica: escolhas que nossos avós não faziam ...”  

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