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sexta-feira, 31 de março de 2017

GOLPE DE 1964: OS ENVOLVIDOS


Jânio fora eleito, em outubro de 1960, com um discurso ambíguo, articulando um leque de forças: oligarcas liberais, classes médias, amplos contingentes de trabalhadores. Estavam todos, por diferentes razões, descontentes com os rumos da sociedade. A euforia provocada pelo crescimento da segunda metade dos anos 50, que de fato abrira amplos horizontes, cedera lugar à apreensão face às contradições que se acumulavam.

Os 50 anos em 5 de JK conservaram algumas heranças essenciais dos tempos varguistas: o intervencionismo estatal, os pesados investimentos em infra-estrutura (Planos de Metas) e a incorporação dos trabalhadores (afrouxamento da tutela ministerial sobre o movimento sindical e gestão associada da Previdência Social).

Não por acaso fora possível manter de pé a aliança articulada por Getúlio Vargas entre o Partido Social-Democrata (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o apoio, nas margens, dos próprios comunistas.

O ritmo de crescimento diminuíra, crescera a inflação, intensificara-se o cortejo de desajustes próprios de épocas de transformações aceleradas.

Desgastaram-se as forças e os partidos que haviam até então comandado o país.

Jânio, líder carismático por excelência, soube encarnar esses anseios pelo “novo”, tão próprios da cultura política brasileira. Com uma vassoura, símbolo da campanha eleitoral, saberia “varrer” as dificuldades e os problemas. Elegendo-se com quase 6 milhões de votos (cerca de 48% do total dos votantes), assumiu o poder com força considerável, alimentando as expectativas de um “novo começo”.

Mas o novo governo decepcionou muito. A política econômica, na linha da ortodoxia monetarista, desagradava o setor industrial acostumado ao crédito fácil, sem conseguir segurar a inflação. A política externa independente irritava os setores conservadores sem angariar os apoios das esquerdas, desprezadas por Jânio.

Quanto aos trabalhadores, frente à inflação crescente, recebiam promessas de austeridade... Enquanto isso, as reformas vagamente anunciadas e tão desejadas não se concretizavam.

O presidente parecia apostar apenas no diálogo direto com a sociedade, exercitando seu inegável carisma. Reclamava de restrições e alegava carecer de plenos poderes. Renunciou em agosto de 1961, provavelmente planejando criar uma comoção social tal que, ao fim, entregaria a ele tais poderes supremos.
Seja como for, seu plano foi pessimamente executado. O país esteve à beira de uma guerra civil por quase duas semanas.

Depois de uma crise política, orquestrada pelos ministros militares que queriam impedir a posse do vice, João Goulart, do PTB, que foi enfrentada por movimentos de resistência, encabeçados por Leonel Brizola, houve um acordo que permitiu a posse de Jango em 7 de setembro de 1961. O varguismo estava de volta, a plenos pulmões.

Nesse caldeirão foi gestado o programa das Reformas de Base.

A reforma agrária, que pretendia criar uma classe média rural de pequenos proprietários de terras; a reforma urbana, para planejar o crescimento das cidades; a reforma bancária, objetivando verter capitais para as reais necessidades de investimentos nacionais; a reforma tributária, que pretendia reduzir o papel dos tributos indiretos e aumentar o dos diretos, especialmente o imposto de renda progressivo; reforma eleitoral, que garantiu o voto dos analfabetos, na época metade da população adulta.

Além dessas, a reforma do estatuto do capital estrangeiro, que pretendia disciplinar os investimentos estrangeiros no país, além de olhar com mais cuidado para a questão das remessas de lucros para o exterior. A reforma universitária almejava a fazer com que o ensino e a pesquisa fossem mais focadas nos problemas do país.

Apesar de tantos plenos de progresso, as eleições de 1962 se mostraram um banho de água fria, pois as forças oposicionistas demonstraram um apetite enorme, abocanhando grande parte da Câmara e do Senado. No Congresso, PSD e UDN perfilavam ampla maioria conservadora.

O mesmo se deu nos cargos de governador. Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Estado da Guanabara exibiam grandes lideranças conservadoras nos seus postos máximos.

Como se sabe, o acordo que garantiu a posse de Jango passou pela restrição dos poderes presidenciais, criando-se um exótico parlamentarismo híbrido, típico das insanas confusões de conceitos que não conseguem impregnar a parca inteligência de nossos líderes. Após as alterações propostas, tinha-se um presidente e um parlamento igualmente fracos.

Pois bem, a redução da base de apoio ao presidente levou à necessidade de se restabelecer o poder presidencial. O plebiscito, já previsto quando dos acordos de 1961, foi antecipado para janeiro de 1963. Jango ganhou com ampla margem, porém deve-se ter em mente que a própria oposição estava preocupada com as eleições gerais seguintes. Também não lhes interessava manter o “parlamentarismo tupiniquim” por mais tempo.

Três meses depois, o Plano Trienal de Celso Furtado foi abortado. No fim do primeiro semestre de 1963 as reformas todas estavam atoladas.

O país estava dividido.

De um lado: trabalhadores urbanos e rurais, estudantes de universidades públicas e muitos graduados de escolas militares. Do outro: elites tradicionais, grupos empresariais. Além destes, nasceu uma “frente social”: grande parte da classe média e até setores populares: pequenos proprietários, profissionais liberais, homens engravatados, empregados do “colarinho branco” (ocupantes de cargos elevados), oficiais militares, professores e estudantes, jornalistas, trabalhadores autônomos.

Estes últimos eram, em geral, pessoas que se enriqueceram no período de maisop dinamismo econômico. Tudo o que temiam era a perda do patrimônio que amealharam. E o ambiente confuso da época criava temores, especialmente face a uma política distributiva realmente profunda.

Tornava-se assim muito cômodo incutir medo de uma eventual derrocada da civilização ocidental e cristã pelo espectro do comunismo ateu... Recorde-se igualmente da conjuntura internacional da guerra fria. Não se olvide do sucesso contemporâneo dos “barbudinhos da ilha caribenha”...

De fato, o acirramento dos ânimos levou diversas lideranças sociais a abandonarem os movimentos legalistas, nascidos da necessidade de garantir a posse de Jango, para uma linha revolucionária e armada.
O fato acima citado levou a uma interessante reação daqueles que eram, até então, os reacionários do dia. Frente à radicalização das esquerdas, as direitas adotaram um tom legalista, constitucionalista, seus discursos clamavam por ordem e razoabilidade. A religião também era usada como mote em seus discursos.
Mas o bote estava armado – ou se armando progressivamente -, aguardando o momento ideal.

E ele chegou: março de 1964.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedades”

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