Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Os preparativos para o baile que aconteceria dali a algumas
horas estavam a todo vapor. Ao redor da piscina, construída em uma quadra no
meio da comunidade, caixas de som gigantescas eram instaladas, os freezers eram
abastecidos com muita cerveja e a carne do churrasco estava sendo temperada.
Todos os morros controlados pela ADA foram convidados para a festividade que
comemoraria o aniversário de 30 anos de um dos principais bandidos do local. A
festa contaria ainda com o show de um famoso cantor de pagode e a aparelhagem
de som da maior equipe organizadora de bailes do Rio de Janeiro, tudo bancado
com o dinheiro do tráfico.
Tamanha ostentação só seria possível, obviamente, com a
conivência do comando do batalhão, que fora chamado de lado, previamente, para
ter o seu preço negociado. Não é possível dar a cifra exata de quanto o major
P-1 acertou (em nome do coronel) par fingir que não via os caminhões adentrando
o morro, abarrotados com caixas de som, o comércio de entorpecentes a torto e a
direito, o desfile de armas de guerra e o trânsito de elementos foragidos da justiça,
mas não deve ter sido pouca coisa. Depois do acerto, a ordem para os GATs foi
explícita: ninguém entra no Macacos no dia do aniversário do “Bebezão”.
Como o morro fechado por cima, a festa aconteceria de
qualquer maneira, mas Magalhães estava disposto a atrapalhar no que pudesse.
Mais até do que isso: estava contrariado com a goela do major, que queria o boi
com chifre e tudo e repartir apenas com os oficiais (quando repartia); se
percebesse que a vagabundagem não lhe mandaria nada, nem um calaboca,
prevalecendo-se do contrato estrelado guardado debaixo do braço, tocaria fogo
no “puteiro”!
- ... e fala mais uma coisa pro teu patrão: quem está na
pista somos nós! A nossa parte tem que vir, se não, não tem festa...
- Mas o comandante de vocês autorizou a associação a fazer a
festividade. É uma festa comunitária...
- Comunitário é o caralho! Tá achando que eu sou o quê?
Otário? Eu trabalho aqui há amis de vinte anos,seu moleque, vai enrolar a puta
que o pariu! Acabou o papo. Dez mil até as sete horas, manda o mototáxi
entregar lá na entrada do “cocô”, ou ent~~ao paga pra ver. É com vocês mesmos.
Não demora muito, seu rádio toca.
- Pois não, chefe, mandou chamar?
- Mandei sim, Magalhães... Teve uma ligação aqui pro
batalhão agora, uma denúncia, dizendo que uma Blazer ameaçou impedir o baile
que vai ter no Macacos hoje se a associação não pagar dez mil de arrego...
- Hum... e aí?
- Foi a guarnição de vocês?
- Não.
- Olha, Magalhães, eu conheço você há muito tempo, eu sei
que foram vocês... Você vai me complicar se der um “baque” no morro hoje! Tem
uma ordem do CPA (Comando de Policiamento de Área) dizendo que as operações
noturnas estão proibidas, não dá pra fazer nada...
- É, mas o “pedaço” do senhor tá garantido, não tá?
- Isso não vem ao caso...
- Major, me desculpe, mas já que o senhor me chamou aqui,
vou lhe falar francamente. Conheço o senhor desde que era aspirante, a primeira
vez que o senhor matou alguém foi com a minha guarnição, muitos anos atrás, me
parece que o senhor esqueceu como as coisas funciona... Não existe esse negócio
de o comando ficar acertando por cima e largar o GAT de lado, sem nada! Todas
as guarnições estão insatisfeitas, a vagabundagem só falta dar risada na nossa
cara, e, antes que isso aconteça, eu vou fazer uma merda tão grande que até o
coronel cai! Se o Bebezão quer fazer a festa dele, que faça, foda-se! Mas se a
parte da minha guarnição não vier, eu vou entrar lá e acabar com o baile, vai
ser tiro pra caralho, pode escrever!
- Magalhães... você vai se prejudicar...
- Não tem problema, major, eu já tô em fim de carreira,
faltam dois anos pra me reformar. Mas já estou avisando de agora: se quiser me
prender, pode prender, porque daqui eu vou reunir meus homens e começar a
trabalhar.
- Espera aí, também não precisa ser assim... Porra, que
situação que tu me deixa...
- Chefe, isso é mole! Dinheiro pra perder eles têm de
sobra... É só esperar o safado lá ligar e dizer pra ele que eu to maluco, que
se não pagarem, meu GAT vai lá mesmo, e vai dar merda, só isso!
- É, mas aí meu elo com ele é que vai enfraquecer, né... Ah,
deixa essa porra pra lá, sabe? Eu tava vendo a hora que isso ia dar merda
mesmo, esse arrombado ficar me ligando toda hora pra reclamar! Vocês que sabem,
é com vocês mesmos, se quiser entrar, entra, mas arruma uma desculpa. Diz que
tava perseguindo alguém, porque a proibição das operações noturnas existe mesmo
e vaio de lá do Estado-Maior. Já sabe que depois de hoje a voga vai mudar, vai
voltar a ter guerra direto, já sabe, né?
- É, major... uma guerrinha de vez em quando pode ser bom
pra gente também, vamos ver...
Mas dessa vez não houve confronto.
Não porque, ciente de que o GAT estava em ebulição, a vagabundagem
resolveu pagar direitinho.
Acontece que alguns traficantes pagavam o arrego do GAT
independentemente de pagarem ao comando também; e algumas comunidades menores,
como Chacrinha e Casa Branca não tinham acerto com o coronel, por terem pouco
movimento nas bocas.
Rafael sabia mais ou menos o que esperar do itinerário a ser
seguido. Por semna, a Chacrinha pagava míseros 600 reis! Para dividir entre
oito; era por isso que as guarnições não completavam seu efetivo, porque o
arrego em geral estava pouco.
A parada seguinte foi o Turano na mesma rua, centenas de
metros adiante. O Turano estava “sofrido” e o arrego também era caidinho, mil
reais, fora o que pagavam ao comando mensalmente.
Seis da tarde, os recolhes estavam só começando. Seguiram
para o Borel.
Passaram pela entrada da Casa Branca e a cena se repetiu, assim
como no Andaraí. O absurdo é o quão baixo pode chegar um PM na sua dignidade;
mesmo a favela tendo perpetrado recentemente os homicídios de dois
companheiros, o GAT se vendeu por 400 reais.
De novo, rumo ao Salgueiro. Contato no radinho, dez minutos,
de espera e a formiguinha vem – não de moto, mas a pé – pela rua dos Araújos.
Era a melhorzinha das propinas semanais: 1.200 reais. Mesmo assim, merreca
perto do que batiam os GATs do 9º BPM ou do 16º BPM, que recolhiam por semana,
facilmente, de 20 a 35 mil reais.
Antônio mandou voltar para a serra. Não precisariam passar
por ela de novo, só iriam até a C6/10, a cabine que fica no começo da subida. É
que o primeiro passeio foi só para avisar que estava na hora do pagamento.
Mandavam o dinheiro ara ser entregue ao cabineiro que, de lambuja, ficava com ”um
galo” (50 reais) por segurar o flagrante.”
Rubem L. de F. Auto
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