Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
"Tirando os fechos, o patrulheiro tem que correr atrás se
quiser arrumar alguma coisa. Era um jogo de gato e rato constante, em que os
bandidos eram os atores principais – sem eles, nada acontecia.
Há várias maneiras de lidar com o estresse caótico provocado
pelo trabalho de policiar as ruas: praticar esportes durante as folgas,
aproveitar a família e passear são boas opções, ou, durante o serviço, dar uma
paradinha para uma soneca e (a preferida de Rafael ) comer. Pena que tinha PM
que, para relaxar e se sentir bem, precisava cheirar.
Mais uma doença crônica que se abate nas fileiras da
corporação: a dependência química. A quantidade de PMs viciados trabalhando na
área do 6º Batalhão era tão grande q1ue eles não precisavam mais nem se
esconder dos demais companheiros: passaram a ser regra. (...) Depois de um
tempo, as máscaras foram caindo e até quem ele menos imaginava se revelou com “ganseníase”
(doença dos gansos, ou viciados). Beiçola, o sargento velho, foi um desses.
Esse tipo de viciado tinha um perfil bem específico: só
cheirava quando estava de serviço, tinha raiva de viciados “PI”, tinha vergonha
do vício e só conseguia trabalhar bem quando estava “trincado”. Muitas das
vezes, o primeiro roteiro a ser cumprido por certas guarnições era bordear os
morros, mas não à procura de bandidos. Ficavam à espreita até um viciado passar
e tomavam-lhe toda a carga que havia acabado de comprar. Não exigiam dinheiro
para liberá-lo, apenas ficavam com a droga para consumirem depois. Uma das
cenas mais horripilantes já presenciadas por Rafael se deu quando, ao atender
um pedido para acautelamento de local de 932 (encontro de cadáveres), pegou a
dupla que iria render cheirando em cima do capô do Gol bolinha (viatura).
Quem vai trabalhar na patrulha sabe que vai trabalhar para
as estatísticas. Funciona da seguinte forma: cada setor de patrulha é formado
por quatro duplas (alas), e a cada mês uma delas fica encarregada de apresentar
uma ocorrência de vulto. Essa ocorrência tem que ter arma apreendida, material
entorpecente e, de preferência (mas não obrigatoriamente), um pobre-diabo
algemado e açoitado (sendo irrelevante se era ou não dono do material
apresentado). Cada guarnição tinha o seu kit “gol de mão” pronto para ser
colocado nas costas do primeiro otário, aspirante a criminoso, que fosse a bola
da vez; na falta dele, simpatizantes e usuários de drogas ou simples jovens
moradores de favelas davam conta do recado. Com isso, o batalhão assegura a sua
postura de enfrentamento ao crime perante as autoridades políticas, e o comando
se fortalece, facultando ao todo-poderoso coronel mais tempo para desfrutar as
benesses de comandar sua horda particular de mercenários estúpidos.
Uma das formas de burlar o esquema imposto pelo comando, que
exigia a apresentação de ao menos uma arma apreendida por mês, eram os chamados
“canos de piscina”: dois tubos de ferro (como os de armação de piscina), um
colocado por dentro do outro, com uma haste soldada em cada um para fazer o
papel de empunhadura.
Embora rudimentar, de acordo com a legislação penal a peça é
considerada arma de fogo, gera apreensão e responsabilidade criminal para quem
a portar e, consequentemente, números para estatísticas. Havia um suboficial
que trabalhava como oficial de dia, que fabricava e vendia os artefatos a 70
reais; sempre que a pista dava uma esfriada. Rafael recorria a ele.
Acontece que ninguém mais apresentava armas de verdade, todo
mundo estava comprando os canos de piscina do sub! Quem pagava uma pistola ou
um revólver na rua guardava para si, ou vendia, e as delegacias saturaram-se de
registrar aquelas mesmas historinhas fajutas de sempre.
(...)
Sempre tinha alguém oferecendo uma arma velha para ser usada
nas apreensões. Eram armas de baixo calibre, .22, .635, enferrujadas e
obsoletas, mas que não podiam ser ignoradas pelas autoridades policiais. Os PMs
então separavam um pouco do dinheirinho obtido e as compravam para a hora em
que fosse preciso apresentá-las.
(...)
Em um dos episódios mais tristes de toda a história do 6º
Batalhão, ao receber um pedido de prioridade semelhante, uma patrulha atirou
contra um carro que havia sido reportado como envolvido numa troca de tiros com
outros policiais. (...) Abriram fogo contra um carro parado, enquanto em seu
interior uma mãe e os dois filhos sentiam o calor do chumbo fumegante passando
por eles. O saldo não poderia ser mais trágico: um menino inocente morreu
vitima dos tiros disparados pelos policiais, a mãe foi ferida e,
milagrosamente, um bebê de colo saiu ileso fisicamente.
(...)
A forma como os PMs são incentivados pela sociedade e pelos
comandantes a matar, somada à presença cada vez mais intensa de bandidos
despudorados pelas ruas da cidade, fruto das ineficazes políticas de segurança
pública e de desenvolvimento social, gera um sem-número de vítimas inocentes.
A Guerra dos Jumentos! Coalhada de balas perdidas e sangue
derramado pelo asfalto, ela aterroriza a todos e faz dos inocentes alvos cada
vez mais comuns. Perissodáctilos armados até os dentes e em lados opostos,
matando mais do que a guerra do Iraque, por dinheiro, por diversão e, às vezes,
até mesmo por engano."
Rubem L. de F. Auto
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