A vitória do movimento civil-militar que derrubou João
Goulart em abril de 1964 desferiu um golpe no projeto político
nacional-estatista que o líder trabalhista encarnava e encerrou a experiência
republicana iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945.
Mas não foi um raio que desceu de um céu azul. Ao contrário,
resultou de uma conjunção complexa de condições, de ações e de processos, cuja
compreensão permite elucidar o que deixou então surpresos e perplexos não
apenas os vencidos, mas também os próprios vencedores.
Desde a 2ª Revolução Industrial, de fins do século XIX,
frente às grandes potências capitalistas, colocou-se para uma série de
sociedades o desafio de construir uma inserção autônoma no mercado capitalista internacional.
A I Guerra e as convulsões subseqüentes dos críticos anos 20
e 30 (emergência da revolução russa, surgimento dos fascismos, crise geral das
economias liberais) abriram brechas nesses laços de dependência, permitindo a
estruturação de projetos autonomistas, assumindo, quase sempre, um caráter
nacional-estatista. A proposta republicana de Sun Yat-sem na China, a
modernização da Turquia, liderada por Mustapha Kemal, o Partido do Congresso da
Índia, o nacionalismo mexicano de Ernesto Cardenas, o Estado Novo varguista tinham
esse sentido: explorar os espaços criados pelo enfraquecimento das potências,
ou/e rivalidade entre elas, para lograr margens de autonomia.
Essas diferentes iniciativas esboçaram o projeto ambicioso
de construir um desenvolvimento nacional autônomo no contexto do capitalismo
internacional, baseado nos seguintes elementos principais: um Estado
fortalecido e intervencionista; um planejamento mais ou menos centralizado; um
movimento, ou um partido nacional, congregando as diferentes classes em torno
de uma ideologia nacional e de lideranças carismáticas, baseadas em uma íntima
associação, não apenas imposta, mas também concertada, entre Estado, patrões e
trabalhadores. Era aí disseminada a crítica aos princípios do capitalismo
liberal e à liberdade irrestrita dos capitais.
Em oposição, defendia-se a lógica dos interesses nacionais e
da justiça social, que um Estado intervencionista e regulador trataria de
garantir.
No transcurso da II Guerra Mundial, as circunstâncias
obrigariam as grandes potências a se conciliarem com esses projetos, que
tiveram então um de seus melhores momentos para solicitar auxílios diversos,
barganhas apoios e exercer margens de soberania.
As potências européias aliadas estavam fragilizadas para
manter suas colônias. Em muitas regiões, o crescimento dos movimentos de
libertação nacional, articulado com o próprio programa político de Grande Aliança
contra o nazi-fascismo, comprometido com a democracia e autodeterminação dos
povos, conduziu à aceitação ou ao reconhecimento da independência política de
uma série de povos: Filipinas (1946), Índia e Paquistão (1947), Birmânia e
Ceilão (1948), Indonésia (1949). Em alguns casos, a reação das velhas potências
coloniais, ou disputas ideológicas acirradas, retardariam ou imporiam
limitações ou partilhas à independência nacional, como nos casos do Vietnã e da
Coréia.
Na África negra, a partir da segunda metade dos anos 50
registraram-se os primeiros êxitos significativos (por exemplo, a independência
de Ghana, em 1957) do que viria ser uma grande onda de independências.
Na América Latina, entretanto, as coisas tomaram outros
rumos. Em virtude da maior presença – política e econômica – dos EUA, do pouco
peso exercido pela URSS, das opções definidas pela maior parte das elites
dominantes da área e de certas tradições culturais, os projetos autonomistas
construídos com algum êxito até 1945 tenderam a perder fôlego e vigor,
definharam, entraram em crise.
Houve resistências, sem dúvida.
O peronismo na Argentina, a revolução boliviana, o aprismo
no Peru, o movimento democrático-popular na Venezuela, o nacionalismo mexicano,
o varguismo e o trabalhismo no Brasil, além de uma série de movimentos e
experimentos na América Central, como o liderado por J. Arbenz na Guatemala,
atestam a força acumulada e as raízes sociais e históricas, em nosso
continente, do programa nacional-estatista, em luta pela conquista da
autonomia.
Entretanto, a proposta de um desenvolvimento dependente e
associado aos capitais internacionais tendeu a ganhar força, sobretudo nos anos
50, quando novas reestruturações da divisão internacional do continente –
Brasil, Argentina, México – estabelecer políticas de atração e incentivos aos
capitais internacionais e dispor de condições para empreender surtos
industrializantes.
O enfrentamento entre Cuba e os poderosos Estados Unidos da
America, a sobrevivência da revolução cubana em meio a pressões de toda ordem,
empolgava as correntes nacionalistas, que se reconheciam como parte de “nuestra
America”, um sonho de José Martí que muito se assemelhava, nas condições
específicas da América Latina, ao “espírito” afro-asiático formulado em Bandung
(local da Conferência para os povos do terceiro mundo).
O passo seguinte foi a interferência de Washington no
processo político brasileiro, de modo a afastar qualquer vã possibilidade de
contaminação pelo espírito livre e democrático que levou à Revolução cubana, ou
qualquer outra que pudesse lembrar, ainda que distantemente, desvarios
independentistas.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedades”
Nenhum comentário:
Postar um comentário