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sexta-feira, 31 de março de 2017

GOLPE DE 1964: PRECEDENTES


A vitória do movimento civil-militar que derrubou João Goulart em abril de 1964 desferiu um golpe no projeto político nacional-estatista que o líder trabalhista encarnava e encerrou a experiência republicana iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945.

Mas não foi um raio que desceu de um céu azul. Ao contrário, resultou de uma conjunção complexa de condições, de ações e de processos, cuja compreensão permite elucidar o que deixou então surpresos e perplexos não apenas os vencidos, mas também os próprios vencedores.

Desde a 2ª Revolução Industrial, de fins do século XIX, frente às grandes potências capitalistas, colocou-se para uma série de sociedades o desafio de construir uma inserção autônoma no mercado capitalista internacional.

A I Guerra e as convulsões subseqüentes dos críticos anos 20 e 30 (emergência da revolução russa, surgimento dos fascismos, crise geral das economias liberais) abriram brechas nesses laços de dependência, permitindo a estruturação de projetos autonomistas, assumindo, quase sempre, um caráter nacional-estatista. A proposta republicana de Sun Yat-sem na China, a modernização da Turquia, liderada por Mustapha Kemal, o Partido do Congresso da Índia, o nacionalismo mexicano de Ernesto Cardenas, o Estado Novo varguista tinham esse sentido: explorar os espaços criados pelo enfraquecimento das potências, ou/e rivalidade entre elas, para lograr margens de autonomia.

Essas diferentes iniciativas esboçaram o projeto ambicioso de construir um desenvolvimento nacional autônomo no contexto do capitalismo internacional, baseado nos seguintes elementos principais: um Estado fortalecido e intervencionista; um planejamento mais ou menos centralizado; um movimento, ou um partido nacional, congregando as diferentes classes em torno de uma ideologia nacional e de lideranças carismáticas, baseadas em uma íntima associação, não apenas imposta, mas também concertada, entre Estado, patrões e trabalhadores. Era aí disseminada a crítica aos princípios do capitalismo liberal e à liberdade irrestrita dos capitais.

Em oposição, defendia-se a lógica dos interesses nacionais e da justiça social, que um Estado intervencionista e regulador trataria de garantir.

No transcurso da II Guerra Mundial, as circunstâncias obrigariam as grandes potências a se conciliarem com esses projetos, que tiveram então um de seus melhores momentos para solicitar auxílios diversos, barganhas apoios e exercer margens de soberania.

As potências européias aliadas estavam fragilizadas para manter suas colônias. Em muitas regiões, o crescimento dos movimentos de libertação nacional, articulado com o próprio programa político de Grande Aliança contra o nazi-fascismo, comprometido com a democracia e autodeterminação dos povos, conduziu à aceitação ou ao reconhecimento da independência política de uma série de povos: Filipinas (1946), Índia e Paquistão (1947), Birmânia e Ceilão (1948), Indonésia (1949). Em alguns casos, a reação das velhas potências coloniais, ou disputas ideológicas acirradas, retardariam ou imporiam limitações ou partilhas à independência nacional, como nos casos do Vietnã e da Coréia.

Na África negra, a partir da segunda metade dos anos 50 registraram-se os primeiros êxitos significativos (por exemplo, a independência de Ghana, em 1957) do que viria ser uma grande onda de independências.
Na América Latina, entretanto, as coisas tomaram outros rumos. Em virtude da maior presença – política e econômica – dos EUA, do pouco peso exercido pela URSS, das opções definidas pela maior parte das elites dominantes da área e de certas tradições culturais, os projetos autonomistas construídos com algum êxito até 1945 tenderam a perder fôlego e vigor, definharam, entraram em crise.

Houve resistências, sem dúvida.

O peronismo na Argentina, a revolução boliviana, o aprismo no Peru, o movimento democrático-popular na Venezuela, o nacionalismo mexicano, o varguismo e o trabalhismo no Brasil, além de uma série de movimentos e experimentos na América Central, como o liderado por J. Arbenz na Guatemala, atestam a força acumulada e as raízes sociais e históricas, em nosso continente, do programa nacional-estatista, em luta pela conquista da autonomia.

Entretanto, a proposta de um desenvolvimento dependente e associado aos capitais internacionais tendeu a ganhar força, sobretudo nos anos 50, quando novas reestruturações da divisão internacional do continente – Brasil, Argentina, México – estabelecer políticas de atração e incentivos aos capitais internacionais e dispor de condições para empreender surtos industrializantes.

O enfrentamento entre Cuba e os poderosos Estados Unidos da America, a sobrevivência da revolução cubana em meio a pressões de toda ordem, empolgava as correntes nacionalistas, que se reconheciam como parte de “nuestra America”, um sonho de José Martí que muito se assemelhava, nas condições específicas da América Latina, ao “espírito” afro-asiático formulado em Bandung (local da Conferência para os povos do terceiro mundo).

O passo seguinte foi a interferência de Washington no processo político brasileiro, de modo a afastar qualquer vã possibilidade de contaminação pelo espírito livre e democrático que levou à Revolução cubana, ou qualquer outra que pudesse lembrar, ainda que distantemente, desvarios independentistas.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedades”

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