Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“- Caralho! Tu viu, Vicente? Que é que esse merda tá fazendo
com a família aqui perto do Borel a uma hora dessas?
- Deve ser morador da Usina, essas porras não têm noção não!
E... caralho, olha aí...
Um carro fez a curva a toda velocidade. Estava com os faróis
apagados, só sendo possível perceber sua aproximação quando já estava bem perto
do local da emboscada. Rafael acompanhava a saída da família, que ainda estava
próxima a ele, e se virou instintivamente, com o fuzil já em posição de tiro,
mas viu tratar-se de um Polo preto, não de um Bora. Por um segundo, relaxou a
posição. Foi o suficiente.
Não era culpa dos companheiros que deram o alarme. No calor
dos acontecimentos, é fácil confundir modelos de carros tão parecidos. Os
vagabundos vinham desesperados de vontade de conseguir chegar logo ao morro.
Pelo pára-brisa dianteiro, o carona deu uma rajada com seu
AK-47 a poucos metros de distância de Rafael. Alguns marginais são sagazes no
combate urbano; muitos têm treinamento militar, serviram nas brigadas paraquedistas,
nos corpos de fuzileiros e, após tomarem um pé na bunda dos quartéis,
alistam-se nos exércitos dos traficantes de drogas. Sorte que a maioria é estúpida
e só entra para o crime porque é onda, porque é maneiro, para ganhar dinheiro fácil
e rápido. Aprendem a atirar dentro da favela, instruídos por esses que citei
antes, mas sem a disciplina dos quartéis, rapidamente abandonam o que foi
ensinado e passam a agir como nos filmes de ação.
Atirar em rajadas é uma das grandes idiotices dos marginais
(principalmente os 157); o tiro perde precisão e, mesmo perto, pode errar o
alvo. Mas que Rafael sentiu o zumbido da morte sussurrando em seus ouvidos,
isso ele sentiu!
O carro da família, que seguia mais adiante, parou e ficou,
atordoado pela chuva de balas que furou parte da lataria, e o Polo os
ultrapassou. O marginal se virou para trás, para continuar o fuzilamento ao
soldado caído; só não contava que houvesse mais um policial, acobertado pela
forquilha de uma árvore, com 25 munições calibre 5.56, tremendo de ansiedade
para interromper pelo quebra-chamas. U espetáculo de estratégia!
Vicente começou pela porta do carona e, já nos dois
primeiros tiros, a risada nefasta do AK silenciou. Depois distribuiu por toda a
lateral, dois a dois.
Rafael assistiu a tudo deitado no chão, enfurecido; quando
conseguiu se reerguer, fez sua divisada e engrossou o coro. As portas do lado
direito se abriram e deu para ver dois bandidos fugindo, capengando, para os
cantos impossíveis de se alcançar da São Miguel, por causa da contenção que
fica no alto do morro.
Vicente concentrou os tiros restantes nos marginais que
ficaram no interior do carro.
- Pega, Rafael! Dá neles, não deixa ele correrem não!
Rafael estala cinco tiros de seu fuzil (mais potente que o
do cabo) na direção da janela do carona. O vidro se desmancha já no segundo
tiro, e é possível visualizar o momento em que, ao ser atingido por um dos
disparos, o topo da cabeça do vagabundo (já morto), sentado no carona, salta
até encostar no teto, terminando por cair, separado do resto do corpo, em cima
do banco do motorista.
- Caralho! Tu viu?
- Vi! Mas ele já estava morto, tá... nem vem que esse é meu!
Dá mais uns no banco de trás!
- Tem um fodido aqui atrás, Vicente!
Deitado, um jovem de menos de dezoito anos agonizava ao
longo do banco. Como não estava na altura dos vidros, escapou da saraivada de
7.62 aplicada por Rafael. Tinha sido atingido por dois tiros de Vicente, ambos
na parte direita do corpo, um na perna e um no braço, o segundo transfixando-se
e saindo pelo ombro.
Quanto ao atirador, caiu no primeiro disparo de Vicente, que
pegou abaixo da clavícula esquerda e explodiu seu coração.
- Olha a porra do fuzil deles lá! Palmeia esse maluco aí que
eu vou pegar.
O cabo entra pela janela da frente e arrecada a principal
peça do espólio.
- Filho da puta!
Com uma voz baixa e sofrida, o jovem pede que lhe socorram.
Não há misericórdia.
- Se vai fazer, faz logo, Rafael! Se não, a gente socorre.
Rafael dá um passo atrás e Vicente entende e acompanha. O
bandido está deitado de lado, com os pés voltados para o soldado e a cabeça
apontando para a porta aberta, por onde os outros marginais haviam fugido.
- Vai logo, Peu! Daqui a pouco vai estar cheio de gente
aqui!
O baleado estava em francas condições de ser socorrido e
percebe que o PM quer matá-lo; então, começa a gritar e tenta reunir forças
para levantar e sair do carro. A meia levantada que ele dá coloca sua cara de
frente para o 7.62 e daí já toma o primeiro.
Rafael se contém pois a regra é clara: muitos tiros podem
render suspeição de legitimidade da morte. “Mas espera aí?! Se é um bonde, e eu
vu dizer que atirei nele passando, qual o problema de eu entupir esse filho da
puta?” Era sua chance de vislumbrar o estrago que um fuzil poderia fazer em uma
pessoa. Não podia desperdiçá-la. O zumbi mexia o que lhe restou de queixo em um
movimento reflexo, como se estivesse mastigando, só esperando o apagar das
luzes. Rafael então dispara o que ainda sobrava no carregador, seis ou sete
tiros, todos acertando o corpo e dilacerando-o como monstruosos cães selvagens.
Debaixo dele aparecia a Glock .45 que escapara de suas mãos
quando foi baleado por Vicente. O cabo se apressa em recolher a última peça do
butim e agora ambos se preparam: hora da limpeza.
- Toa aqui! Leva o AK e esconde lá na mala da viatura, debaixo
do estepe, coloca as mochilas por cima também. Traz a “vela” (arma implantada,
de forma a simular uma troca de tiros que não ocorreu) e estaciona aqui do
lado.
Antes de alcançar a viatura, Rafael passa pelo carro da família,
que assistira aos três minutos de horrorosa ação policial. Poderia ser uma
complicação, testemunhas da execução e do excesso perpetrado por ele. Pede que
abram a janela:
- Senhor, se o senhor continuar aqui, vou ter que conduzi-lo
para a delegacia como testemunha dos fatos. O senhor quer testemunhar?
O homem sacode vigorosamente a cabeça, dizendo que não, quer
apenas sair dali o mais rápido possível.
- Eu não vou te obrigar a ir não, mas então vou pedir que,
já que vamos não proceder daqui, que o senhor esqueça o que viu. Tudo bem?
- Meu rapaz, por mim você pode matar todos eles que eu não to
nem aí!
De onde estavam, não dava para ver o estrago feito nos
bandidos, era mais fácil falar deles assim, de longe, sem sentir o cheiro de
sangue. Mas é isso mesmo que a sociedade quer, que eles morram, todos eles,
desde que não seja ela a responsável por recolher os restos fedorentos.
(...)”
Rubem L. de F. Auto
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