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segunda-feira, 20 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 20


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“- Caralho! Tu viu, Vicente? Que é que esse merda tá fazendo com a família aqui perto do Borel a uma hora dessas?
- Deve ser morador da Usina, essas porras não têm noção não! E... caralho, olha aí...
Um carro fez a curva a toda velocidade. Estava com os faróis apagados, só sendo possível perceber sua aproximação quando já estava bem perto do local da emboscada. Rafael acompanhava a saída da família, que ainda estava próxima a ele, e se virou instintivamente, com o fuzil já em posição de tiro, mas viu tratar-se de um Polo preto, não de um Bora. Por um segundo, relaxou a posição. Foi o suficiente.
Não era culpa dos companheiros que deram o alarme. No calor dos acontecimentos, é fácil confundir modelos de carros tão parecidos. Os vagabundos vinham desesperados de vontade de conseguir chegar logo ao morro.
Pelo pára-brisa dianteiro, o carona deu uma rajada com seu AK-47 a poucos metros de distância de Rafael. Alguns marginais são sagazes no combate urbano; muitos têm treinamento militar, serviram nas brigadas paraquedistas, nos corpos de fuzileiros e, após tomarem um pé na bunda dos quartéis, alistam-se nos exércitos dos traficantes de drogas. Sorte que a maioria é estúpida e só entra para o crime porque é onda, porque é maneiro, para ganhar dinheiro fácil e rápido. Aprendem a atirar dentro da favela, instruídos por esses que citei antes, mas sem a disciplina dos quartéis, rapidamente abandonam o que foi ensinado e passam a agir como nos filmes de ação.
Atirar em rajadas é uma das grandes idiotices dos marginais (principalmente os 157); o tiro perde precisão e, mesmo perto, pode errar o alvo. Mas que Rafael sentiu o zumbido da morte sussurrando em seus ouvidos, isso ele sentiu!
O carro da família, que seguia mais adiante, parou e ficou, atordoado pela chuva de balas que furou parte da lataria, e o Polo os ultrapassou. O marginal se virou para trás, para continuar o fuzilamento ao soldado caído; só não contava que houvesse mais um policial, acobertado pela forquilha de uma árvore, com 25 munições calibre 5.56, tremendo de ansiedade para interromper pelo quebra-chamas. U espetáculo de estratégia!
Vicente começou pela porta do carona e, já nos dois primeiros tiros, a risada nefasta do AK silenciou. Depois distribuiu por toda a lateral, dois a dois.
Rafael assistiu a tudo deitado no chão, enfurecido; quando conseguiu se reerguer, fez sua divisada e engrossou o coro. As portas do lado direito se abriram e deu para ver dois bandidos fugindo, capengando, para os cantos impossíveis de se alcançar da São Miguel, por causa da contenção que fica no alto do morro.
Vicente concentrou os tiros restantes nos marginais que ficaram no interior do carro.
- Pega, Rafael! Dá neles, não deixa ele correrem não!
Rafael estala cinco tiros de seu fuzil (mais potente que o do cabo) na direção da janela do carona. O vidro se desmancha já no segundo tiro, e é possível visualizar o momento em que, ao ser atingido por um dos disparos, o topo da cabeça do vagabundo (já morto), sentado no carona, salta até encostar no teto, terminando por cair, separado do resto do corpo, em cima do banco do motorista.
- Caralho! Tu viu?
- Vi! Mas ele já estava morto, tá... nem vem que esse é meu! Dá mais uns no banco de trás!
- Tem um fodido aqui atrás, Vicente!
Deitado, um jovem de menos de dezoito anos agonizava ao longo do banco. Como não estava na altura dos vidros, escapou da saraivada de 7.62 aplicada por Rafael. Tinha sido atingido por dois tiros de Vicente, ambos na parte direita do corpo, um na perna e um no braço, o segundo transfixando-se e saindo pelo ombro.  
Quanto ao atirador, caiu no primeiro disparo de Vicente, que pegou abaixo da clavícula esquerda e explodiu seu coração.
- Olha a porra do fuzil deles lá! Palmeia esse maluco aí que eu vou pegar.
O cabo entra pela janela da frente e arrecada a principal peça do espólio.
- Filho da puta!
Com uma voz baixa e sofrida, o jovem pede que lhe socorram. Não há misericórdia.
- Se vai fazer, faz logo, Rafael! Se não, a gente socorre.
Rafael dá um passo atrás e Vicente entende e acompanha. O bandido está deitado de lado, com os pés voltados para o soldado e a cabeça apontando para a porta aberta, por onde os outros marginais haviam fugido.
- Vai logo, Peu! Daqui a pouco vai estar cheio de gente aqui!
O baleado estava em francas condições de ser socorrido e percebe que o PM quer matá-lo; então, começa a gritar e tenta reunir forças para levantar e sair do carro. A meia levantada que ele dá coloca sua cara de frente para o 7.62 e daí já toma o primeiro.
Rafael se contém pois a regra é clara: muitos tiros podem render suspeição de legitimidade da morte. “Mas espera aí?! Se é um bonde, e eu vu dizer que atirei nele passando, qual o problema de eu entupir esse filho da puta?” Era sua chance de vislumbrar o estrago que um fuzil poderia fazer em uma pessoa. Não podia desperdiçá-la. O zumbi mexia o que lhe restou de queixo em um movimento reflexo, como se estivesse mastigando, só esperando o apagar das luzes. Rafael então dispara o que ainda sobrava no carregador, seis ou sete tiros, todos acertando o corpo e dilacerando-o como monstruosos cães selvagens.
Debaixo dele aparecia a Glock .45 que escapara de suas mãos quando foi baleado por Vicente. O cabo se apressa em recolher a última peça do butim e agora ambos se preparam: hora da limpeza.
- Toa aqui! Leva o AK e esconde lá na mala da viatura, debaixo do estepe, coloca as mochilas por cima também. Traz a “vela” (arma implantada, de forma a simular uma troca de tiros que não ocorreu) e estaciona aqui do lado.
Antes de alcançar a viatura, Rafael passa pelo carro da família, que assistira aos três minutos de horrorosa ação policial. Poderia ser uma complicação, testemunhas da execução e do excesso perpetrado por ele. Pede que abram a janela:
- Senhor, se o senhor continuar aqui, vou ter que conduzi-lo para a delegacia como testemunha dos fatos. O senhor quer testemunhar?
O homem sacode vigorosamente a cabeça, dizendo que não, quer apenas sair dali o mais rápido possível.
- Eu não vou te obrigar a ir não, mas então vou pedir que, já que vamos não proceder daqui, que o senhor esqueça o que viu. Tudo bem?
- Meu rapaz, por mim você pode matar todos eles que eu não to nem aí!
De onde estavam, não dava para ver o estrago feito nos bandidos, era mais fácil falar deles assim, de longe, sem sentir o cheiro de sangue. Mas é isso mesmo que a sociedade quer, que eles morram, todos eles, desde que não seja ela a responsável por recolher os restos fedorentos.

(...)”


Rubem L. de F. Auto

      

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