Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“A moto dos fugitivos ficou para trás e, ao fazer a manobra
que derrubou os bandidos, surge na frente dos policiais um morro pontilhado por
pequenas luzes, uma viela e um monte de gente boquiaberta, esfregando os
próprios olhos. “Para Rafael, para que essa porra é entrada de fave...”. Nem
chegou a terminar a frase. A “contenção”, que se ligou quando a primeira moto
caiu, se intimidou quando viu os dois “vermes” invadindo sozinhos (era muita
maluquice!) o local, e atirou de qualquer jeito só para conseguir espaço para
retrair. Rafael derrapou e os dois caíram, mas, como já tinha freado ao
perceber que estavam entrando na boca do leão, não se machucaram. Gouveia se
abrigou atrás de um carro, e Rafael correu mais para a frente, sob protestos do
parceiro: “Volta, porra! Volta, volta, caralho!”. Rafael estava dominado pelo
desejo de matar os bandidos.
(...)
Um cargueiro do vagabundo, desesperado com a sandice do
Mike, passou longe das pernas de Rafael, mas lampejou bonito conforme
ricocheteava no asfalto. (...) Rafael hesitou por um instante, teve receio de
continuar e se ver sozinho, perdido no interior da comunidade. Não restava mais
nada a fazer a não ser descarregar sua pistola. (...) Ao vê-la travar com a
culatra aberta, automaticamente desativou o retém e mandou o último carregador
para o combate, mas sua vista turva pelos clarões provenientes da percussão dos
cartuchos (...) ao se restabelecer, não havia mais sinal dos fugitivos.
(...)
Do seu canto na escadaria, respirou fundo e olhou ao redor,
todo encolhidinho com medo de mais rajadas da contenção, que não iria
retroceder por muito tempo e já deveria estar providenciando o revide. (...)
O silêncio era entrecortado por um arrulhar esquisito ainda
longínquo e indefinido, mas que com certeza não era bom sinal. “HOP? HOP?”,
chamou Rafael, na esperança de ser respondido por Gouveia. Má ideia!
“Pá... Tum... Pá, pá, pá, Tum...”, o fim dos disparos era
seguido por uma oca e cadenciada explosão de gases dentro do obturador do G3
(fuzil), o que torna muito mais aterrorizante a idéia de se imaginar como o
único alvo canteirado! Os projéteis acertaram a coluna superior à cabeça de
Rafael, que, infantilmente, denunciou sua própria posição, dando aos bandidos a
vantagem e precisão. Mas o vagabundo se empolga, mete o pé pelas mãos, quer
aparecer: “Vai morrer, pé-preto filho da puta!”, “bota a cara, cu azul”, e toma-lhe
bala!
(...)
Todo encolhido, Rafael abaixa a cabeça enquanto chove reboco
em cima dele, e pensa: “Caralho, fudeu! Tô fudido, vou morrer! Vou morrer igual
ao Neves, cheio de tiro... puta que o pariu, fudeu!”. Empunha a Glock e ensaia
uma tímida reação, mas o tirinho da .380 parece até estalinho perto das
trovoadas incessantes do “sete meiota” (Tum-tum-tum!). O rádio tinha ficado com
Gouveia naquele dia (era apenas um para cada dupla); sem outro recurso
disponível, aproveitou o hiato para a recarga dos vagabundos e pegou o celular:
- Polícia Militar, para sua segurança esta ligação está
sendo gravada – diz uma gravação, seguida por uma musiquinha e um pedido para
aguardar uns “instantes que já iremos atendê-lo”. Polícia Militar – agora sim uma
atendente – novo 190, boa noite?
- Caralho, olha só, eu sou polícia aqui no 6º, soldado
Rafael, RG 102.502, to encurralado aqui dentro do Macacos, liga pro batalhão,
pede prioridade, senão eu vou morrer!
- Calma, senhor, quem está falando?
- Calma o caralho, você tá surda? Eu sou soldado aqui do 6º,
to encurralado dentro do morro dos Macacos, minha munição tá acabando e eles
tão chegando perto...
- Eles quem, senhor?
- Porra, você tá de sacanag...
Os novos disparos, mais próximos que os anteriores,
confirmaram a impressão do policial, que largou o telefone no chão e
descarregou o que tinha na Glock, cessando por mais um breve período o avanço
dos marginais. (...)
- Senhor? Senhor... Tem alguém aí? ...
- Manda reforço, pelo amor de Deus!
- Mas, senhor onde exatamente o senhor está?
- Ô, filha da puta, eu to no Macacos, não sei exatamente
onde, mas é só escutar o “salseiro” que vão me achar...
- Senhor, agüenta aí, só um segundo que eu vou chamar o
sargento pra falar com o senhor...
“Fudeu, eu vou morrer mesmo!”. (...) Só restava aguardar o
resgate ou a morte, e mais uma vez a bala comeu, mas, para surpresa do acuado
kamikaze, não eram os bandidos atirando, e sim o GAT de maré meia que havia
acabado de chegar.
Quando olhou para trás, para o caminho que tinha percorrido
até a escadaria, avistou em todos os postes e pontos de cobertura os contornos
dos policiais que vieram em auxílio, e não eram poucos! Patrulheiros,
supervisão, até as guarnições de moto-patrulha se apresentaram o recruta maluco
que tinha invadido o “Cocô” (esse era o nome da localidade onde Rafael tinha
entrado sem saber) sozinho, só de pistola.
(...)
- Vem!
Gritou o sargento Lucas.
- Vem, sai daí!
Rafael meteu o telefone de qualquer jeito no bolso, e com
raiva deu os dois derradeiros disparos de seu carregador para o local onde os
outros agentes miravam, correndo mais que boi ladrão o pedaço que compreendia a
escadaria até o posicionamento do esforço.
(...)
O GAT tinha poucos, por vezes um, motivo para invadir o
Macacos, visto a proibição absurda do comando de efetuar operações noturnas nas
comunidades, e o resgate do policial das linhas inimigas era ótima oportunidade
para dar um baque naqueles abusados que, com a conivência dos tratados firmados
na penumbra dos gabinetes estrelados...
(...)
Não posso deixar de mais uma vez pulverizar, em minha
própria e afetada concepção, a idéia do militarismo policial, que é o câncer a
ser combatido pela mais alta dose de radiação de pensamentos evolutivos por
parte dos seres sociais. Se não fosse por essa anomalia funcional, o oficial
encarregado de dar rumo à operação não precisaria da opinião de ninguém para
dar continuidade à ocorrência e capturar os autores dos crimes. Tomem nota:
homicídio, tentativa de homicídio (atiraram contra Rafael também), formação de
quadrilha, porte ilegal de arma, receptação (a moto era roubada) e associação
para o tráfico de drogas. Precisa alguém autorizar alguma coisa? Pelo
contrário, não proceder com a ocorrência ultrapassaria os limites da esfera
administrativa e incorreria na criminal, pois não seria nada menos que
prevaricar. Mas essa cadeia de comando absurda e desnecessária, essa
centralização imbecil de poderes, que só quem é beneficiado por ela é capaz de
defender, propicia aos detentores dos balaústres da paz e da segurança coletiva
os mais sórdidos acertos em troca de dinheiro, de poder, que são as únicas
coisas que realmente lhes apetecem.
(...)
Só o fato de ter tido tiroteio nas imediações poderia ser
usado como cláusula contratual de rescisão do pagamento semanal, que dirá uma invasão!
O major foi específico: ir embora e tchau.
Pelo menos não mandou punir os recrutas que estavam
arribados, pois houve uma apreensão de arma e o batalhão estava precisando de
alguma coisa para as estatísticas, que estavam no vermelho.
Rubem L. de F. Auto
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