Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Durante três anos, o aluno é testado ao limite na mais pura
e idiota rigidez militar. Três anos em que tudo, tudo mesmo, gira em torno dos
costumes de um regime absolutamente retrógrado e incompatível com as peculiaridades
do serviço policial. Chegam ao ponto de dormir no chão para não desarrumar as
próprias camas, feitas a régua, e inspecionadas por outro aluno “veterano”. Um
milímetro fora da medida é o suficiente para que o aluno fique impedido de ir
para casa nos finais de semana.
(...)
Os oficiais instrutores incentivam a segregação do convício
dos futuros aspirantes com os demais praças, dizendo que poracá é raça ruim,
ladra, burra. Desde o início aprendem que não devem se misturar, não devem dar
brecha para intimidade. Tudo deve ser encarado com desconfiança, e a principal
missão depois de formados seria coibir os atos dessa corja que insiste em sujar
o nome da instituição. Marchas, desfiles e cerimônias são frequentes e
ensaiadas ao extremo.
(...)
Ao contrário das Forças Armadas, de onde a PM tirou os
moldes de sua academia, o oficial da Polícia não tem uma especialidade, uma
função definida. No Exército, temos o intendente, o infante, o engenhyeiro e
outros. E na PM? Temos o PM. Mas quem é que cuida da folha de pagamentos? O
oficial. E quem determina a rotina do rancho? Ele também. Quem faz o estuda das
regiões a serem patrulhadas? Quem faz o cálculo quantitativo de armas e
munições? Quem pede para comprá-las? Quem manda no serviço reservado? E no
trânsito? Tudo ele.
Sempre na base do improviso, vai dando um jeito de fazer de
tudo, sem ser especialista me nada. Desde a formação até assumir o cargo, o
oficial foi treinado para swer oficial, e só. Repreender o praça é o principal,
o resto vem por tabela.
(...)
No sistema administrativo das polícias estaduais de vários
países, como França, Inglaterra e Estados Unidos, há a função de tenente, mas
ela é dada de acordo com o merecimento do policial durante sua carreira. Não há
uma escola de tenentes, um curso para formá-los, e sim um reconhecimento
oriundo da própria instituição, que, por meio de procedimentos internos
pautados na meritocracia, designa a alguns a função de mando sobre os outros.
Não há a imperatividade da farda, usada apenas em ocasiões específicas, mas a
hierarquia está implícita no cargo.
Pensar em um sistema semelhante vigorando as polícias
brasileiras faz parte do sonho compartilhado pela maioria dos estudiosos da
problemática da segurança pública. Mas é um terreno tortuosos esse de tentar
mudar a ordem das coisas. Muitos interesses estão envolvidos na manutenção da
estrutura feudal à qual estamos submetidos. Odedecemos aos xoguns cariocas e às
suas milícias particulares em todos os nossos movimentos pela cidade: Pare;
abra o vidro; acenda a luz interna. Encosta; mãos na cabeça; documEnto. Onde
mora? Eles mandam, e aI de você se não obedecer.
(...)
Bombeiros insatisfeitos com o governador e sua evidente
inépcia para o cargo invadiram o quartel-general da corporação para exigir uma
reunião com o seu comandante-geral. Era uma reivindicação por melhorias
salariais e das condições de trabalho, só que o coronel dos bombeiros, com o cu
na mão, ligou para o governador e deve ter dito: “Chefe, fudeu!” Então, a
solução foi chamar o BOPE para jogar bombas e disparar balas de borracha contra
os invasores e suas famílias, que pacificamente os acompanhavam durante o
protesto.
(...)
O sujeito fica três anos em internato, aprendendo a “ser
oficial da Polícia Militar”, torna-se capitão, major, coronel, e não tem
discernimento ou peito para fizer “NÃO” a uma ordem absurda dessas? Será que
quem obedeceu a essa ordem covarde não percebeu que se trata de um ato de pura
politicagem fascista?
(...)
Policial tem de medir, analisar, pesar. Não é culpa dele se
o governador é prepotente demais com um grupo de servidores, se ele não tem
habilidade política para contornar o caso.
(...)
Será que um jovem que se preocupasse menos em passar sua
farda e mais em estudar ciências políticas, que tivesse lido ao menos trechos
da República, de Platão, será que esse jovem obedeceria a tal ordem absurda
dada pelo governador?
Lógico que não!
(...)
A Academia D. João VI funciona, assim como o CFAP, como uma
fábrica, uma linha de montagem, só que de peças mais caras. Mesmo assim, mesmo
sendo mais trabalhadas, continuam sendo peças e somente isso. Descartáveis e
substituíveis. Só peças.”
Rubem L. de F. Auto
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