Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“O sujeito estava indo para o trabalho, ou voltando dele; de
repente, uma cantada de pneu, uma gritaria e tiros. O carro dos bandidos mete
bala nos policiais que queriam abordá-los, e foge. No revide, quem é que vocês
acham que é atingido? Ah, pobre José...
Por isso os “ratrulheiros” (patrulheiros “ratos”) viviam no
limite. Podiam tudo e ao mesmo tempo, não podiam nada. Era só talento! Viviam
basicamente dos “pedrinhos” (blitz pirata, armada sem conhecimento do comando,
com o intuito de arrecadar dinheiro de motoristas com documentação irregular) e
dos botes nos viciados da grande Tijuca.
Quando chegava a noite, os ratos iam para a cozinha. Um dos
pontos preferidos para os pedrinhos era debaixo do viaduto da Mangueira,
principalmente em dia de baile. Todo mundo ia para o baile com algum
probleminha na documentação do carro: “mas já tá marcada a vistoria...”, ou
então: “esqueci habilitação em casa...”,
ou simplesmente: “meu chefe, to todo errado, vamo desenrolar?”. Nesse joguinho
de interpretação, os artistas do estado atuavam brilhantemente, ensaiando a
polidez do policial sério em contraponto ao jogo de cintura do mais malandro.
Era um espetáculo! (...) Uma simples direção sem habilitação poderia,
dependendo do local, hora ou possibilidades do cliente, variar entre 5 e 500
reais.
(...)
Em média, por noite, os dois policiais de cada guarnição
saíam com no mínimo 100 e no máximo 300 reais cada um, com a possibilidade do
bingo! (prender um criminoso, de preferência de modo a tomar sua arma). Aí era
questão de sorte, e as vezes ela vinha também.
As vias de acesso às favelas eram constantemente patrulhadas
no intuito de achar um gansinho (usuário de drogas) dando sopa. Grande parte
deles era xexelento e ia à favela a pé, para comprar só uma maconha de cinco,
ou um pó de dez. Tirando alguns manes das coberturas da avenida Maracanã, que
negociavam IPods, celulares e até laptops, mais o dinheiro para não tomarem o
flagrante. (...) Mas no morro do São João não era assim. O fato de ele estar na
área de outro batalhão (3º BPM) não impedia os ataques dos meganhas do 6º, que
usavam a rua Barão do Bom Retiro, principal acesso à favela, como “área de retorno”.
Eles passavam como quem não quer nada pela via principal, na velocidade padrão
de patrulhamento de 20 km/h, espreitando a escuridão que cobria principalmente
a rua Açaré e suas vizinhas, na busca por uma lanterna ou um farol longínquo
que estivesse estacionado ou saindo de uma das bocas. Ao avistar o pontinho
luminoso, começava o frenesi. (...) O ideal era pegá-lo por trás, quando já
estivesse no caminho da serra Grajaú-Jacarepaguá, ou na direção do Méier. Com a
presa na trilha da armadilha, só faltava dar o bote! Uma sirenada, mais uma
piscada de faróis da viatura que vem logo atrás, é a ordem de parada que o
ganso, já suando frio dentro do carro, relutantemente trata de obedecer. (...)
Com o veículo devidamente abordado, era feita a revista padrão
em seu interior e em todos os seus ocupantes. Caso o flagrante não fosse
encontrado, começava mais um ato da encenação da peça “Miséria Carioca”. Uma
obra de: “Todos Nós”. Direção: “Governo do Estado”.
Policial 1:
“Aí cumpadi, é o seguinte: eu sei que você tava na
sacanagem, que você tava na boca. Você tem duas opções: ou você me dá logo e a
gente desenrola essa parada pra você meter o pé e ir embora tranqüilo, dormir
na sua cama quentinha, ou você continua mentindo e me deixa aqui, igual a um babaca,
procurando. Já te adianto que eu vou achar, eu vou achar! E aí, mermão, não tem
mais papo, é dura. E vou te avisando, você vai apanhando daqui até a delegacia,
seu viciado filho da puta! Vai continuar mentindo? Então fala, fala, seu arrombado,
fala onde é que tá! Dá logo, porra, bota aqui na minha mão...”
Policial 2:
“Dá logo, rapaz, senão vai ficar ruim pra você...”
Motorista maconheiro:
“Mas, seu policial, eu não tava em boca nenhuma não, eu fui
na casa da minha tia...”
Nesse momento, o cidadão abordado na altura da Cabana da
Serra tenta inventar uma desculpa qualquer que justifique sua saída do interior
da comunidade. Os policiais percebem que ele não irá se entregar facilmente;
então o separam de sua namorada, que estava no banco do carona, para uma
conversa em particular.
Policial 2:
“Olha só, bonitinha, esse seu namorado é um merda! Sabe por
quê? Porque eu sei que está com você! Ele veio com você lá de Jacarepaguá pra
comprar uma maconhazinha aqui, com você, só pra te usar como mula. Ele sabe que
a gente não vai revistar MULHER. Mas sabe o que eu vou fazer? Vou levar vocês
dois para a delegacia. Vou levar, e lá vou pedir a uma policial feminina para
te revistar todinha, e lá quem vai se fuder é você! Quem você acha que vai segurar o flagrante? Ele? Porra, para
de chorar! Tá de palhaçada? Não interessa que você é estudante, então, diz
logo, tá com você? Tá? Então já é! Tá onde? Na calcinha? Mas enfiado na boceta?
Puta que o pariu... Então entra aí no carro desse otário e fecha a porta, tira
logo que agora a conversa é com ele”.
O maconheiro olha a namoradinha entrar no carro e fica
assustado, leva um tapão do policial 2 e admite que sim, o flagrante está com
ela. Só uma maconha de dez, para curtir uma festinha. A menina coloca a
trouxinha enrolada numa camisinha em cima do capô da viatura, mas nenhum dos
dois policiais quer analisar o material apreendido, obviamente em face de suas
condições anteriores de transporte e armazenamento.
Pois é, senhores leitores, nesse ato começa a rodada de
negociações em que o casal, estudante de Direito, tenta negociar sua ficha
livre de passagens pela delegacia. Embora tenham demonstrado uma certa
petulância ao anunciar sua dileta ocupação acadêmica, na tentativa de
constranger o trabalho dos policiais, é evidente a precariedade de seu ensino
em matéria penal, pois não haveria
problema algum em ir à delegacia por causa de um baseadinho daqueles, talvez
nem assinassem.
(...)
O jovem casal só pôde perder 200, então é 200 e fechou. Mas
os habitués das bocas do São João eram bem ecléticos e proporcionavam as mais
variadas surpresas. Empresários bem-sucedidos, pais de família e já passados
dos 40 eram cascudos demais para serem enganados com uma lorotinha qualquer de
um PM com idade para ser seu filho. Mas, se estivesse com a amante no carro, ou
doidão demais para pensarem direito, pagavam bem para passarem batidos. Se
estivessem sem grana na hora, iam todos juntos, viatura e carro abordado, até o
caixa eletrônico mais próximo para o acerto final. Quinhentos, mil, dependia
das condições do cliente. Médicos, advogados, os doutores em geral eram ótimos
corruptores, pois elevavam o passe proporcionalmente à carreira de respeito
estabelecida. Quando não era possível achar um caixa eletrônico aberto durante
a madrugada, usavam de outro artifício. Iam até um posto de gasolina, onde o
frentista já estivesse adequadamente sintonizado com os propósitos dos
meganhas, e lá passavam o cartão de crédito do ganso na quantia acertada pela
soltura. O frentista safadinho ficava com uma comissão de 30% do total
extorquido e, em troca, devolvia o valor descontado da conta do “cliente” em
dinheiro vivo na mão dos policiais, uma sacanagem só!
(...)
Apesar da quantia em dinheiro não ter sido lá essas coisas,
ainda dava pra levantar uma prata com o relógio e a aliança que o ganso fez
questão de jogar sobre o pano verde: “Eu sou divorciado, preciso me esquecer
daquela piranha... ela acabou comigo... estou assim nesse estado por causa
dela... me abandonou pra ficar com outro e ainda quer pensão... me dá meu
pozinho, soldado, por favor, eu preciso...”.
Rubem L. de F. Auto
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