Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Lá embaixo, a busca por materiais ilícitos continuava por
toda a casa e a contagem do material entorpecente terminou em 30 quilos de
cocaína, 50 de maconha e mais os componentes para mistura. Havia até cal,
armazenada nos galões azuis de plástico.
O pessoal do apoio logístico, vindo do batalhão vizinho, não
se decepcionou: além de colher os louros pela co-participação na missão
bem-sucedida, ficou com metade da cocaína desviada e dela faria dinheiro
suficiente para repartir entre a equipe e ainda dar um agradinho ao major e ao
coronel, que eram os “donos” do blindado “arrendado” para a empreitada e jamais
poderiam sair de mãos abanando.
O pessoal do 3º BPM ficou tão feliz que até cedeu uma
pistolinha para servir de “vela” nas mãos de um dos bandidos (não sem antes “fazer”
as mãos dele, para que resquícios de pólvora grudassem na pele).
Os outros 10 quilos ficaram para Livorno (que providenciou
ele mesmo a arma plantada na mão de seu defunto, de forma a lhe justificar o
assassinato), Magalhães e Cia, inclusive ela, a informante, sem a qual
dificilmente dariam um tiro tão preciso.
Na mesma noite da operação, enquanto patrulhavam em comboio
nas proximidades do morro, os traficantes do Macacos, pelo radinho, fizeram uma
proposta de resgate pela mercadoria, oferecendo 5 mil reais por quilo
devolvido. Um deboche; Magalhães ouviu a oferta apenas por curiosidade, pois já
estava acertado que quem faria a negociação seria Medina, o perdulário, que
tinha conexões íntimas com a vagabundagem de Acari, dominada pelo TCP.
O que faz então valorizar um pouquinho o serviço de revenda
promovido pelos policiais é o baixo custo do transporte, que tem até a “sobretaxa”,
quando feito por traficantes comuns, paga a titulo de periculosidade, para o
caso de serem flagrados e presos com o material ilícito. Não há esse risco
quando é a própria viatura da polícia que realiza a entrega, e Medina conseguiu
acertar em 8 mil reais o valor pago por cada quilo da droga desviada.
(...)
Rafael reagiu com grande excitação quando Anselmo lhe chamou
em particular.
- Se liga só, mais tarde vamo dá uma ida lá na Vila (Vila
Mimosa, famoso centro de prostituição no centro do Rio), valeu?
- Qual foi?
- Tem um papo pra gente lá, uma informação... Ela disse que
tem que ser rápido, que não pode passar de hoje porque o bagulho tá pra
acontecer amanhã.
- Ela não adiantou mais ou menos o que é, não?
- Não, mas pelo jeito é coisa boa, acho que é o “bote” que a
gente tava esperando...
(...)
Quando a intenção é mesmo seqüestrar, desde o início da
abordagem o policial deixa claro que tudo será um “desenrolo”, que se o bandido
estiver disposto a pagar pela liberdade sairá ileso e numa boa; a partir de
então, começa a rodada de negociações para estabelecer o valor do resgate, o
local da entrega, so contatos telefônicos a serem feitos, e por aí vai.
Uma coisa incomum é o uso de cativeiros. A regra é esperar
perto da vítima, dentro de uma viatura, um DPO ou qualquer outro lugar,
contanto que possa ser inserido num contexto no qual aleguem, caso sejam
surpreendidos pela corregedoria, que não havia seqüestro algum e que, na
verdade, a pessoa detida estava a caminho de ser conduzida à delegacia.
A prática da extorsão mediante seqüestro se tornou tão
corriqueira entre os policiais que passou a incomodar, e os traficantes
começaram a se movimentar, procurando formas de inibir o crime e refrear os
ânimos dos agentes. Não pagavam mais pela liberdade de bandidos de baixo
escalão, denunciavam os raptos anonimamente pelo telefone, sempre que fosse
conveniente.
No contraponto, alguns PMs refinaram os meandros do ilícito
e, aproveitando-se novamente das engrenagens legais, adotaram uma conduta que
dificultava ainda mais a tipificação do ato criminoso. Melhor do que manter
alguém detido dentro de uma viatura é mantê-lo preso em uma delegacia,
aguardando o dinheiro do resgate chegar pelas mãos do advogado, e essa
sujeirada só é possível quando se tem um conhecimento “bacana” dentro da
Polícia Civil.
Quando o vagabundo era “questão” mesmo, quando era “dono” da
favela, não era incomum que os resgates fossem estipulados em seis dígitos, e
tudo que fosse negociável entrava no “rolo” – cordões de ouro e jóias em geral,
fuzis, carros e motos, o que precisasse para que a quantia exigida fosse
alcançada.
(...)
- Olha só, gente, eu tenho uma parada séria pra falar pra
vocês, uma parada pra se levantar mesmo, tá ligado? Vocês sabem quem é o
Rufinol, não sabem?
- Lá da tua favela? – perguntou Anselmo.
- É, ele mesmo... Então, amanhã ele marcou de sair com uma
amiga minha pra ir pro motel, pra comemorar o aniversário dela, coisa que ele
nunca faz, mas, como tá amarradão, resolveu fazer. Vou te falar, depois que ele
assumiu o morro, ele quase nunca sai de lá, e quando sai é muito escondido,
porque ninguém fica sabendo, mas dessa vez minha amiga ficou tão feliz que não agüentou
e veio me contar. Ela comprou lingerie nova e tudo, o papo é real mesmo.
- Mas e aí, você sabe pra qual motel eles vão?
- Olha, Rafael, eu não sei o motel qual é, mas eu sei como
eles vão. É de taxi, um cara que faz a “correria” pros bandidos lá de vez em
quando, mas que sempre passa batidão. O carro dele é de cooperativa lá da Lapa
e...
(...)
Chegou o momento de planejar a missão. Não poderiam perder
tempo, o seqüestro tinha que ser consumado na próxima noite. O grupo se ocupou de
bolar todos os detalhes da abordagem e os meios a serem empregados.
Dividiram-se em três carros: no Golf “sapão” preto ficou a
equipe de apoio 1, guarnecida por Medina, Vianna e Antônio; em um Megane prata,
a equipe de apoio 2, com Rafael, Juarez e Anselmo; e na viatura Gol branca,
descaracterizada, da Polícia Civil estavam Vidal, Magalhães e Reginaldo, todos
de fuzil, pois seriam os responsáveis pela abordagem do táxi onde estaria o
traficante.
Ao meio-dia se encontraram com o delegado titular da 18ª DP,
na praça de alimentação de um shopping e o colocaram a par da informação.
Estacionado em uma rua de frente para a ladeira, ficou o
Golf com a equipe que tinha a melhor visão do acesso. Não havia como o Meriva
táxi passar por eles sem ser percebido, subindo ou descendo. Por ser o carro
mais potente, o Golf faria a perseguição e o cerco, caso necessário.
O último contato da informante confirmou a saída para o
motel, dando conta de que a namoradinha do chefe estava até no cabeleireiro,
colocando apliques.
Por volta das 20h 40min o táxi passou em frente a eles.
O rádio de Rafael chamou pelo PTT e a voz do outro lado saiu
apressada, urgente.
- Atenção aí, hein? Se liga que ele tá descendo aqui agora,
tá descendo aqui agora... Tá pegando pra esquerda, pode sair, sai, sai... Vamo
na cola dele, me segue, vamo...
Quando viu o táxi crescendo no retorvisor, a viatura
acelerando atrás dele, o Golf bufando por fora, Rafael trincou os dentes e
pensou: “Fudeu! Tomara que valha a pena...”. Deu um maio cavalo de pau, tomando
quase a pista toda com a lateral do Megane.
Som de freadas e os policiais pularam em volta do táxi como
moscas em cima da carniça, gritando: “Abre, porra! Polícia, caralho! Perdeu,
perdeu... Abre essa porra logo, filho da puta...”.
- Calma, senhor! Eu não vi que era polícia, pensei que fosse
um assalto, sei lá! Abaixa a arma, pelo amor de Deus...
- Não viu o caralho, seu arrombado! Desce dessa porra agora,
sai logo, anda...
- Mas, senhor, eu estou trabalhando, eu estou com passageiro
aqui, eles estão assustados...
Magalhães investiu contra a maçaneta da porta, que estava
trancada por dentro, e o taxista tentou se aproximando de novo, gritando: “O
que é isso? Estão assustando meu cliente, isso é abuso de autoridade, alguém
filma, tira foto...”.
Reginaldo veio por trás dele, com o fuzil em bandoleira, e
falou bem baixinho, quase soprando nos ouvidos do safado: “Você tem certeza que
quer ser filmado com o motorista do Rufinol?”.
A porta traseira entreabriu imediatamente, pegando de
surpresa Magalhães, que ainda tentava forçar a maçaneta.
Bingo!
- Perdeu, cumpadi! Viatura agora! Vem, tá agarrado, bota a
mão pra trás!
- Calma aí, peraí, vocês devem tá me confundindo com
alguém...
- Para de cão, Rufinol! A gente tá ligado no teu rastro já
há um tempão, sai logo, sai! Revista ele aí...
Rafael procedeu à revista do traficante, mas nem precisava.
Bandidos desse calibre não levam armas quando saem para curtir a noite. O
cuidadoso Rufinol não era diferente: dispunha inclusive de identidade falsa e
toda uma gama de subterfúgios para tentar ludibriar policiais desatentos. Com
as mãos algemadas, ele ainda conseguiu sacar a carteira de trabalho falsa, onde
constava um emprego de bancário, mas não colou.
- Tá todo mundo olhando aí, ó, não tem necessidade de me
grampear não... Qual é, meu chefe? É um papo ou não é? Vai me levar de dura
mesmo?
- Para de ratear então, porra! Entra logo na viatura e vamo
desenrolar...
- Mas espera aí... Tem que dar um toque no meu advogado,
minha mulher tá ali no carro também, o que vai acontecer com ela?
- Vamo todo mundo pra DP, lá a gente conversa, agora
entra...
- Qual é, meu chefe! Eu tenho que saber pra qual delegacia o
senhor vai me levar...
A delegacia ficava a poucos quarteirões do local do rapto.
Chegaram todos quase simultaneamente ao estacionamento, que ficava nos fundos e
dava acesso a uma porta grossa de aço. Vidal já caminha apressado para dar a
volta e abrir a porta, e assim guardar logo o “pacote”. Mas o traficante estava
assustado.
- Qaul foi, meu chefe? O senhor não disse que era um papo?
Então, tá me guardando aqui pra quê, me trancar? Vamo conversar...
Ofereceram então um café ao traficante e ele aceitou. Depois
se sentaram em frente à cela aberta da carceragem, que estava totalmente vazia.
(...)
- Que é isso!? Olha, senhor, eu não sei quem foi que me “deu”
não, mas vendeu uma parada surreal pra vocês! Não existe, não tem como! A
favela tá quebrada, não tá mais isso tudo que o povo fala na, eu tenho muita
coisa pra administrar que tava errada e que agora eu to consertando. O amifo
que faleceu deixou umas pendências de mercadoria aí, sabe qual é? Parada séria,
que eu to com minha vida empenhada, tá ligado? Coisa de gente grande e que nem
eu sei quem é que manda no bagulho, coisa de político, general e o caralho,
entendeu, não dá pra ficar de “dois papo” com fornecedor, não... Eu tenho minha
reserva, tá ligado? Eu dou tudo pra vocês, é só deixar eu fazer o contato lá
que vem...
- Quanto?
- Cem barão. Tá na mochila já, ta ligado? É a reserva mesmo,
to dando o papo real...
- É o quê? – exalta-se Magalhães. Tu tá ficando maluco?
Porra, eu acho que tu tá confundindo as coisas! Eu não sou nenhum merda que
fica de Golzinho patrulhando, caçando moedas não, rapá! O papo tá dado, o “X”
te vendeu bonitão e tu ainda não se ligou, quer ficar de cão?
- Não, aí, é o senhor que tá me entendendo mal...
- Eu? Não sou eu que tá com a pica no cu não, cheio de PP
(prisão preventiva) pra cumprir, é tu! Se liga, acho que não vai ter papo
não... Tranca ele aí e vamos fazer contato com o doutor...
Fazia parte da negociação.
A menina, que confessou ser menor de idade, havia parado de
chorar e estava emburrada, repetindo o tempo todo com aquele sotaque de
favelada: “Quero ver meu marido... Cadê meu marido? Quero falar com o advogado
dele... Se vocês “bateu” nele, vocês vão vê só uma coisa, eu vô botar tudo no
jornal, vô denunciá vocês... Vocês quer é dinheiro que eu sei, se não tava aqui
de conversinha... Cadê meu marido?”
(...)
Quem chegou logo depois foi Vidal, trazendo um personagem
novo à peça. Quem se pôs a falar foi Vidal.
- Então, doutor, o caso é esse aí, ó. Matéria pra semana
toda no jornal. Já dei o papo nele, mas não vai ter acerto mais não...
- Não, que é isso, senhor! Espera aí... O senhor é que é o
delegado?
- Por quê?
- Não, seu doutor, por nada não... É só que eu já tenho uma
situação lá com o delegado da 6ª DP, certo? Então,s e o senhor vê lá com ele,
ele vai confirmar que eu não tenho mesmo isso que vocês tão pedindo, é muita
coisa...
- Não quero saber não... Conversa entre vocês aí, se não
chegar num acordo, eu vou proceder.
Não demorou muito. O advogado do bandido ciudou de todas as
providências para que o recolhe fosse feito o mais depressa possível e sem
alarde.
O defensor contatou o delegado (que fazia parte da folha de
pagamento do “patrão”) para reportar o acontecido. A autoridade policial não
gostou nada.
Era ele, o advogado, quem cuidava dos acertos feitos com as
autoridades maiores; era ele, inclusive, quem promovia o acordo, nas épocas de
carnaval, para que tudo transcorresse dentro da normalidade nas cercanias do
sambódromo.
(...)
A arrogância dele se abrandou. Percebeu que não conseguiria
intimidar os meganha.
- Então, cadê os fuzil? Primeiro vamos ver eles.
- Eu queria falar com meu cliente primeiro...
- Primeiro as armas! Depois que a gente inspecionar o
armamento, eu te levo lá, e então a gente conta o dinheiro (250 mil reais).
Rapidamente todas as armas foram checadas e aprovadas: dois
fuzis modelo FAL 7.62, um Parafal, dois AK-47 e um G-3.
- Podemos ir ate ele agora? – perguntou o defensor.
- Agora sim, pode vir comigo.
(...)
Resignado, o doutor escondia um profundo inconformismo
diante de toda aquela situação degradante (quanta hipocrisia...).”
Rubem L. de F. Auto
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