Quando os europeus viraram o jogo contra os turcos otomanos,
evitando assim que estes últimos tomassem toda a região dos Bálcãs, por volta
de 1600, o comandante turco fez um pequeno relato das dificuldades que
enfrentava: “a maioria dos soldados desses malditos (ou seja, os cristãos)
estão a pé e de arcabuz. A maioria dos soldados do Islã é da cavalaria, e seus
homens de infantaria, além de poucos, raramente têm alguma experiência com
arcabuzes. Por essa razão, existe uma grande dificuldade nas batalhas e cercos.”
Pouco depois, os espanhóis deram um salto adiante na
revolução armamentista. Por volta de 1550, criaram o mosquete, que disparava
uma bala de chumbo de 50 gramas com força suficiente para perfurar armaduras.
O desenvolvimento foi de tal forma acelerado que os chineses,
que tinham o melhor exército do mundo por volta de 1415, haviam sido superados
já em meados do século XVI por pequenos reinos na Europa.
Olhando em perspectiva, as primeiras armas de fogo eram lentas,
disparavam pouca munição por minuto e só funcionavam bem contra alvos lentos ou
imóveis, como muradas de fortalezas. A revolução por elas provocada ocorreu nas
ações em cercos a cidades.
Por volta de 1368, as principais batalhas tiveram como palco
as estepes do norte da China. Isto é, não havia muralhas nem fortalezas, apenas
cavaleiros se movendo a altíssima velocidade, tornando os canhões e as armas de
fogo existentes completamente obsoletos. O resultado foi o completo abandono do
enfrentamento pelos generais chineses, que logo lançaram mão de imensas cavalarias
e de muralhas enormes para conter os inimigos.
Contudo, os europeus se inseriam num ambiente geograficamente
diverso. A Europa se parecia com o sul da China: cheia de fortes e preenchida
por relevos que reduziam a velocidade da infantaria. Esses fatores incentivaram
melhorias em canhões e armamentos mais pesados.
Por volta de 1600, as melhorias cumulativas tornaram os
exércitos europeus quase hegemônicos. Como as armas de fogo foram criadas na
Ásia e chegaram á Europa por meio de mercadores, seu retorno ao leste, após as
melhorias significativas imprimidas pelos europeus, foi o contrafluxo do intercâmbio
secular ao longo das estradas da Eurásia.
O simples contato com soldados europeus poderia ser de um
didatismo inédito. Após enfrentar os exércitos polonês e sueco em guerras
sangrentas, fazendo uso das novas tecnologias mortíferas, o imperador russo
Ivan, o Terrível, usou toda a experiência adquirida para exterminar os mongóis
que tanto lhe renderam dores de cabeça. Quando morreu, o império russo que
legara tinha o dobro da extensão que herdara.
A partir de 1598, mercadores de peles russos usaram os
mosquetes para cruzar os montes Urais e levar as fronteiras do império até o
Oceano Pacífico.
Assim como a pólvora e as armas de fogo, os barcos oceânicos,
capazes de realizar longíssimas jornadas pelos oceanos, foram uma invenção
chinesa. Na realidade é inexato falar em barcos (ou navios) oceânicos, pois se
tratam de diversas invenções agrupadas numa única construção – como o automóvel.
A bússola, componente importante nessas construções, era
usada por comandantes chineses desde 1119, pelo menos. Mercadores árabes as
adquiriram e fizeram-nas chegar em mãos européias por meio dos italianos, em
1180. Os avanços realizados pelos construtores navais chineses incluíam
melhorias no cordame, no leme, nos cascos etc. As primeiras docas secas do
mundo surgiram na China, por volta de 1403. De lá saíram os maiores veleiros do
mundo. Centenas desses navios fizeram parte da esquadra do almirante Zheng He,
em suas jornadas pelos Oceanos Índico e Pacífico.
De novo, a invenção chinesa sofreu incrementos europeus, incentivados
por necessidades e desafios distintos daqueles que motivaram seus inventores. Nesse
momento, é importante ter em mente como se encontravam os atores dessa história,
naqueles tempos.
No século XV, a Europa ocidental representava a pare pobre,
marginal, da Eurásia. Pobre e distante do palco onde se desenrolavam os fatos
mais importantes, a leste. Os europeus não apenas tinham consciência dessa
inferioridade, como procuravam com freqüência novas rotas comerciais, por onde
vinham os produtos do engenho oriental, que tanto valorizavam.
E aquilo que era ruim estava ficando ainda pior. Após 1400,
os reinos mongóis entraram em declínio, o que levou ao desmantelamento das Rotas
da Seda (conjunto de estradas que cumpriam aquela função). Somente restou uma,
que cruzava a Síria até o Golfo Pérsico, controlada pelos turcos otomanos, que
cobravam impostos altíssimos dos comerciantes. Esses impostos altos praticamente
a inviabilizaram comercialmente.
Uma alternativa teria de ser encontrada. A nação mais bem
estruturada, capaz de realizar esse salto adiante, era Portugal: após a
conquista de Ceuta, navios portugueses se lançaram à aventura de contornar a
África, buscando chegar à Ásia. No entanto, os portugueses não contavam na
época nem mesmo com navios capazes dessa empreitada.
O príncipe Henrique, filho do rei de Portugal e terceiro na
linha sucessória do trono, coordenou pessoalmente o projeto. O produto final
foi a caravela: navio pequeno, de 15 a 30 metros de comprimento, com capacidade
para 15 toneladas. Certamente ridículos se comparados com os modelos chineses. Mas
era um progresso frente aos navios com remos que grassavam pelo Mediterrâneo,
desde a antiguidade.
As caravelas tinham fundo raso, o que permitia adentrar os rios
africanos que desembocavam no mar, alcançando os fortes costeiros onde se
realizavam trocas comerciais envolvendo ouro, escravos etc. Tinham também velas
quadradas e velas latinas (triangulares), o que rendia velocidade e capacidade
de manobras, simultaneamente.
As conquistas portuguesas se iniciaram em 1420, com a ilha
da Madeira; e em 1427, chegaram aos Açores. No encalço, fizeram surgir os
primeiros latifúndios monocultores. Em 1444, portuguesas alcançaram o rio
Senegal e, com isso, tiveram acesso ao ouro produzido na região. Em 1473,
cruzaram pela primeira vez a linha do Equador. Em 1482, chegaram à foz do rio
Congo. Em 1487, após se afastar temerosamente do litoral avistável, Bartolomeu
Dias pegou o pé de vento que o fez contornar o extremo sul do continente
africano. Em 1498, Vasco da Gama refez a rota do antecessor e, finalmente,
adentrou o oceano Índico.
A unificação de reinos que resultou no surgimento da Espanha
criou a concorrência que possibilitou ao navegador Cristóvão Colombo apresentar
seu projeto: navegar sempre a oeste até alcançar o leste. Colombo sabia o que
todo cidadão minimamente instruído sabe desde a Antiguidade: a terra é redonda,
portanto a viagem é possível. No entanto, os mais bem instruídos sabiam que a
circunferência do planeta tem 38.400 quilômetros. Colombo discordava quanto a
isso – insistia em seus cálculos exotéricos que apontavam para 4.800
quilômetros. Em 1492 levantou âncora e foi ver no que dava. Visando ao Japão, achou
a América. Mas morreu crendo ter chegado ao sonhado Oriente.
Enganou-se, mas não enganou mais ninguém. Colombo abriu uma nova
rota de riquezas, por onde escoariam ouro, prata, tabaco, chocolate produzidos
por mão de obra escrava - nesse caso, africanos, previamente contatados e já
cambiados previamente por portugueses, que os usavam nas ilhas recentemente
descobertas. Produtos refinados, produzidos a baixo custo na América, cujo
comércio ergueria verdadeiras fortunas no velho continente.
Embora as trocas comerciais tenham se iniciado
imediatamente, nenhuma nação era capaz de policiar o continente agora
descoberto. Imperava a lei da pirataria: o mais forte, ou que tivesse as
embarcações mais fortes, teria mais sucesso. Ou seja, qualquer jovem intemerato,
audacioso e ambicioso o suficiente, que conseguisse uma embarcação, um ou dois
canhões e munição, poderia perseguir seus sonhos de riqueza além-mar.
O custo estimado para manter seguros os domínios americanos,
naqueles anos, era de tal monta que tolerar piratas e seus assaltos era uma
pechincha. Sem falar nos governos que claramente incentivavam e usavam piratas
com fins comerciais, ao cobrar-lhes propinas sobre os bens saqueados e nomear-lhes
corsários, ou ladrões estatais.
Diante do aumento do número de assaltos por piratas, fez-se
o óbvio: encheram os navios com canhões. Por volta de 1530, os portugueses
criaram os galeões. De casco longo e estreito, contando com 4 mastros, edifícios
na proa e na popa, era bem rápido. Mas a atração principal eram os canhões nas
laterais, que atiravam através de aberturas no casco, acima da linha d`água.
Atiravam bolas de ferro de 3,5 quilos a mais de 500 metros.
O estrago provocado por um ataque desses poderia se
desenrolar em lascas de madeira dilacerando membros das pessoas a bordo.
Rapidamente essas armas fantásticas se tornaram o principal
produto de exportação europeu para a Ásia.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a
humanidade”.
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