Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“- E agora, Vicente? Como é que a gente vai negociar esse
AK?
- O negócio é não ter pressa. Amanhã de manhã vou fazer
contato com o Beiçola, vamos ver o que ele vai dizer.
-Deixa que eu levo o fuzil pra casa então.
- Olha lá heim... não tá pensando em fazer merda não, né?
Ele vale uma prata, 40 mil anos ou menos, vê se não faz besteira!
(...)
Retirou o AK do embrulho que fizera com uns lençóis velhos,
limpou ele todo, colocou um pouco de óleo e embrulhou de novo. O que ele queria
realmente era que o encontro se desse dentro de alguns dias.
Dentro da mochila dos marginais havia dois carregadores,
cheios de munição calibre 7.62 curto, mais sete cartuchos que sobraram do
carregador que estava em uso quando atiraram em Rafael. A intenção era usar a
arma, poderosa e intimidadora, em um ataque contra alguns marginais de uma boca
de fumo perto de sua casa. Poderia, se a milícia não estivesse ávida por
qualquer coisa que cuspisse fogo.
As milícias surgiram, começaram a se fortalecer e ganhar
espaço no vácuo deixado pelo estado nas áreas pobres do Rio de Janeiro.
Abandonadas pela política de inclusão social e segurança pública, essas áreas
primeiramente viviam sob o jugo do tráfico, e eram os criminosos que impunham
as regras de convivência, às vezes de forma violenta e abusiva.
Casos em que traficantes obrigavam pais a entregarem suas
filhas para servirem aos seus prazeres sexuais, ou em que matavam
indiscriminadamente por qualquer motivo fútil, como uma briga por pipas,
fizeram com que um sentimento de animosidade se instaurasse e,
consequentemente, brotasse uma semente perigosa: a do justiceiro. Cidadãos
comuns, aliados a policiais de folga, compartilhavam o pensamento de que alguém
tinha que fazer alguma coisa, já que o estado cagava e andava para eles.
Começou o bang-bang.
Por maior que seja a indignação com os abusos, para guerrear
o sujeito precisa de um soldo, uma forma de se sustentar e à sua família, mesmo
que miseravelmente.
Começaram a pedir (não exigir) que moradores contribuíssem
com pequenas quantias em dinheiro, mensalmente para que os plantões
continuassem, impedindo a volta dos bandidos às localidades recém-conquistadas.
Centrais clandestinas de TV a cabo foram instaladas e passaram a distribuir o
sinal a preço bem abaixo do cobrado pelas operadoras. O transport alternativo
foi organizado de forma a suprir as debilidades do sistema público, que muitas
vezes ignorava certos lugares e simplesmente não disponibilizava linhas para
atender aos moradores. O fornecimento de gás era coordenado pelos chefes, que
cobravam uma espécie de ágio para que as distribuidoras operassem em seus
domínios. E foi logo depois que toda essa estrutura ficou pronta que começaram
a meter os pés pelas mãos.
Engana-se, porém, quem pensa que os milicianos estavam
satisfeitos com a nova ordem estabelecida; queriam mais: domínio político.
Com o “assistencialismo” que, além de cooptar apoio popular,
enchia seus cofres, os chefes se sentiram no direito de representar sua gente
sofrida dentro do legislativo, federal, estadual e municipal. Quando não se candidatam,
barganhavam apoio eleitoral nas suas áreas de influência.
Foi o começo do fim! Quer coisa mais assustadora para os
senhores do Brasil, para a elite carioca, que um bando de policiais e
associados arrebanhando votos e apoio popular? Já pensou se essa cambada de
ignorantes começa a se dar conta do quanto era viipendiada, e resolve apoiar em
uníssono o levante paramilitar?
Mas são apenas policiais. PMs, civis, delegados e coronéis,
mas só policiais, e era demais esperar que eles entendessem a magnitude do
instrumento que tinham nas mãos. Um saco de dinheiro e pronto, esqueciam-se até
quem eram suas mães! Começaram a se matar por pontos de Kombi, por “gatonets”,
por botijão de gás, e aí a vaca foi pro brejo! Tudo o que os maquiavélicos
arquitetos queriam era um pretexto, um motivo para esmagar as aspirações dos
morlocks abusadinhos e, por debaixo das togas, entre cohibas e doses de scotch,
começaram a trama que asseguraria sua hegemonia. E não foi difícil!
(...)
Com a população assustada pela violência das refregas, foi
iniciado o sistemático plano de combate aos milicianos e a derrocada deu-se de
maneira espetaculosa, com prisões cinematográficas e operações de nomes
impactantes, do jeitinho que o povo gosta.
Houve vários convites nessa época áurea para que Rafael
ajudasse nos trabalhos da “Firma”, coordenando pontos de transporte alternativo
ou tomando conta de centrais de TV a cabo clandestina, mas ele nunca se
interessou. Gostava mesmo só da pólvora, das balas. Tinha falado com Beiçola
que, quando houvesse recrutamento para efetuar ataques a localidades ainda
dominadas por vagabundos, era só chamar que estaria dentro.
E chegou a hora.
(...)
- Faz um contato com o Marcelinho aí, Charles, pede pra ele
vir aqui no ponto que tem uma mercadoria pra ele avaliar.
Marcelinho era outro policial que fazia parte do grupo.
Cabo do 31º BPM, estava na “Firma” desde sua criação e
passara despercebido a várias investigações e alguns tiroteios. Dividia a
liderança com mais três homens, um bombeiro, um policial civil e um PI (pé
inchado, gíria para cidadão não policial, que atua como um jagunço). Não demora
muito e ele chega.
Destoando completamente do resto do cenário (era uma
favelinha na Zona Oeste do Rio), a Toyota Hylux preta aparece por uma das ruas
laterais, esbanjando soberba. Uma semana antes, matara um rapaz de 17 anos no meio
de um jogo de futebol, na frente de diversas testemunhas, por conta de suposta
ligação com um bando que cometia assaltos fora dali.
Além de baixinho, era gordo, careca e feio, feio de dar
pena. Com uma penca de cordões de ouro pendurados para fora da camisa preta, um
deles com um cifrão gigantesco como pingente, anda quese que curvado, como se
tudo pesasse muito no pescoço. Era novo, contava trinta e poucos anos e estava
há onze na PM. Do banco do carona desce sua namorada, por quem largou o
casamento anterior, abandonando uma esposa feínha e três filhos. A nova
primeira-dama era outra peça! Loura tingida, vinte centímetros mais alta do que
ele, corpo cultivado em academia, tinha no máximo vinte anos.
- Que beleza! Está novo ainda!
- Pois é – confirma Vicente -, e atira que nem o caralho!
- Vamos testar? – pergunta o sargento.
O anão se anima.
- Claro, manda essa parada pra cá!
- Não vai espantar o pessoal, não ? Tá cheio de criança
passando...
- Que nada, polícia, quem sabe aqui sou eu! Neguinho já tá
acostumado. Comigo na área sempre tem bala voando! Passa pra cá que eu vou “botar
pra cantar”...
Os paisanos que tomavam conta do ponto de kombis ficaram
ouriçados e se arrumaram em volta do patrão para vê-lo em mais uma patética
demonstração de poder, com a prostituta a tiracolo achando tudo muito natural.
- Quanto vocês querem?
- Bem, você viu que está tudo certo com ele, não é meso?
Então – diz Vicente – 45 está bem pago!
- Guerreiro, tá caro... Semana passada a gente pegou um “vassourão”
(fuzil FAL 7.62) por esse preço, não sei se a rapaziada vai querer pagar não...
- Olha, cara, eu quase morri pra pegar essa peça, não vou
pechinchar não. Se eu tivesse dinheiro, eu ficava com ela pra mim, só pra ter
em casa.
(...)
- Seguinte, eu falei com os amigos aqui, disse a eles que a
parada era boa e coisa e tal... E disse o preço de vocês. Eles se interessaram,
mas perguntaram se podia baixar um pouco, e aí a gente faz negócio agora por 40
mil. Fechou ?
O preço que Vicente estimava inicialmente. Era muita grana
para quem (agora depois das esmolas que o governo chama de aumento) ganhava
1.050 reais por mês, grana demais para ser recusada.
- Pode fechar! Manda vir o dinheiro.”
Rubem L. de F. Auto
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