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segunda-feira, 20 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 21


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“- E agora, Vicente? Como é que a gente vai negociar esse AK?
- O negócio é não ter pressa. Amanhã de manhã vou fazer contato com o Beiçola, vamos ver o que ele vai dizer.
-Deixa que eu levo o fuzil pra casa então.
- Olha lá heim... não tá pensando em fazer merda não, né? Ele vale uma prata, 40 mil anos ou menos, vê se não faz besteira!

(...)

Retirou o AK do embrulho que fizera com uns lençóis velhos, limpou ele todo, colocou um pouco de óleo e embrulhou de novo. O que ele queria realmente era que o encontro se desse dentro de alguns dias.
Dentro da mochila dos marginais havia dois carregadores, cheios de munição calibre 7.62 curto, mais sete cartuchos que sobraram do carregador que estava em uso quando atiraram em Rafael. A intenção era usar a arma, poderosa e intimidadora, em um ataque contra alguns marginais de uma boca de fumo perto de sua casa. Poderia, se a milícia não estivesse ávida por qualquer coisa que cuspisse fogo.
As milícias surgiram, começaram a se fortalecer e ganhar espaço no vácuo deixado pelo estado nas áreas pobres do Rio de Janeiro. Abandonadas pela política de inclusão social e segurança pública, essas áreas primeiramente viviam sob o jugo do tráfico, e eram os criminosos que impunham as regras de convivência, às vezes de forma violenta e abusiva.
Casos em que traficantes obrigavam pais a entregarem suas filhas para servirem aos seus prazeres sexuais, ou em que matavam indiscriminadamente por qualquer motivo fútil, como uma briga por pipas, fizeram com que um sentimento de animosidade se instaurasse e, consequentemente, brotasse uma semente perigosa: a do justiceiro. Cidadãos comuns, aliados a policiais de folga, compartilhavam o pensamento de que alguém tinha que fazer alguma coisa, já que o estado cagava e andava para eles. Começou o bang-bang.
Por maior que seja a indignação com os abusos, para guerrear o sujeito precisa de um soldo, uma forma de se sustentar e à sua família, mesmo que miseravelmente.
Começaram a pedir (não exigir) que moradores contribuíssem com pequenas quantias em dinheiro, mensalmente para que os plantões continuassem, impedindo a volta dos bandidos às localidades recém-conquistadas. Centrais clandestinas de TV a cabo foram instaladas e passaram a distribuir o sinal a preço bem abaixo do cobrado pelas operadoras. O transport alternativo foi organizado de forma a suprir as debilidades do sistema público, que muitas vezes ignorava certos lugares e simplesmente não disponibilizava linhas para atender aos moradores. O fornecimento de gás era coordenado pelos chefes, que cobravam uma espécie de ágio para que as distribuidoras operassem em seus domínios. E foi logo depois que toda essa estrutura ficou pronta que começaram a meter os pés pelas mãos.
Engana-se, porém, quem pensa que os milicianos estavam satisfeitos com a nova ordem estabelecida; queriam mais:  domínio político.
Com o “assistencialismo” que, além de cooptar apoio popular, enchia seus cofres, os chefes se sentiram no direito de representar sua gente sofrida dentro do legislativo, federal, estadual e  municipal. Quando não se candidatam, barganhavam apoio eleitoral nas suas áreas de influência.
Foi o começo do fim! Quer coisa mais assustadora para os senhores do Brasil, para a elite carioca, que um bando de policiais e associados arrebanhando votos e apoio popular? Já pensou se essa cambada de ignorantes começa a se dar conta do quanto era viipendiada, e resolve apoiar em uníssono o levante paramilitar?
Mas são apenas policiais. PMs, civis, delegados e coronéis, mas só policiais, e era demais esperar que eles entendessem a magnitude do instrumento que tinham nas mãos. Um saco de dinheiro e pronto, esqueciam-se até quem eram suas mães! Começaram a se matar por pontos de Kombi, por “gatonets”, por botijão de gás, e aí a vaca foi pro brejo! Tudo o que os maquiavélicos arquitetos queriam era um pretexto, um motivo para esmagar as aspirações dos morlocks abusadinhos e, por debaixo das togas, entre cohibas e doses de scotch, começaram a trama que asseguraria sua hegemonia. E não foi difícil!

(...)    

Com a população assustada pela violência das refregas, foi iniciado o sistemático plano de combate aos milicianos e a derrocada deu-se de maneira espetaculosa, com prisões cinematográficas e operações de nomes impactantes, do jeitinho que o povo gosta.
Houve vários convites nessa época áurea para que Rafael ajudasse nos trabalhos da “Firma”, coordenando pontos de transporte alternativo ou tomando conta de centrais de TV a cabo clandestina, mas ele nunca se interessou. Gostava mesmo só da pólvora, das balas. Tinha falado com Beiçola que, quando houvesse recrutamento para efetuar ataques a localidades ainda dominadas por vagabundos, era só chamar que estaria dentro.
E chegou a hora.   

(...)

- Faz um contato com o Marcelinho aí, Charles, pede pra ele vir aqui no ponto que tem uma mercadoria pra ele avaliar.
Marcelinho era outro policial que fazia parte do grupo.
Cabo do 31º BPM, estava na “Firma” desde sua criação e passara despercebido a várias investigações e alguns tiroteios. Dividia a liderança com mais três homens, um bombeiro, um policial civil e um PI (pé inchado, gíria para cidadão não policial, que atua como um jagunço). Não demora muito e ele chega.
Destoando completamente do resto do cenário (era uma favelinha na Zona Oeste do Rio), a Toyota Hylux preta aparece por uma das ruas laterais, esbanjando soberba. Uma semana antes, matara um rapaz de 17 anos no meio de um jogo de futebol, na frente de diversas testemunhas, por conta de suposta ligação com um bando que cometia assaltos fora dali.
Além de baixinho, era gordo, careca e feio, feio de dar pena. Com uma penca de cordões de ouro pendurados para fora da camisa preta, um deles com um cifrão gigantesco como pingente, anda quese que curvado, como se tudo pesasse muito no pescoço. Era novo, contava trinta e poucos anos e estava há onze na PM. Do banco do carona desce sua namorada, por quem largou o casamento anterior, abandonando uma esposa feínha e três filhos. A nova primeira-dama era outra peça! Loura tingida, vinte centímetros mais alta do que ele, corpo cultivado em academia, tinha no máximo vinte anos.
- Que beleza! Está novo ainda!
- Pois é – confirma Vicente -, e atira que nem o caralho!
- Vamos testar? – pergunta o sargento.
O anão se anima.
- Claro, manda essa parada pra cá!
- Não vai espantar o pessoal, não ? Tá cheio de criança passando...
- Que nada, polícia, quem sabe aqui sou eu! Neguinho já tá acostumado. Comigo na área sempre tem bala voando! Passa pra cá que eu vou “botar pra cantar”...
Os paisanos que tomavam conta do ponto de kombis ficaram ouriçados e se arrumaram em volta do patrão para vê-lo em mais uma patética demonstração de poder, com a prostituta a tiracolo achando tudo muito natural.
- Quanto vocês querem?
- Bem, você viu que está tudo certo com ele, não é meso? Então – diz Vicente – 45 está bem pago!
- Guerreiro, tá caro... Semana passada a gente pegou um “vassourão” (fuzil FAL 7.62) por esse preço, não sei se a rapaziada vai querer pagar não...
- Olha, cara, eu quase morri pra pegar essa peça, não vou pechinchar não. Se eu tivesse dinheiro, eu ficava com ela pra mim, só pra ter em casa.

(...)

- Seguinte, eu falei com os amigos aqui, disse a eles que a parada era boa e coisa e tal... E disse o preço de vocês. Eles se interessaram, mas perguntaram se podia baixar um pouco, e aí a gente faz negócio agora por 40 mil. Fechou ?
O preço que Vicente estimava inicialmente. Era muita grana para quem (agora depois das esmolas que o governo chama de aumento) ganhava 1.050 reais por mês, grana demais para ser recusada.
- Pode fechar! Manda vir o dinheiro.”


Rubem L. de F. Auto

  

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