Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
"Uma das sacanagens mais antigas e rentáveis na área do 6º
Batalhão (executada apenas pelos integrantes das RPs) agora lhes seria
apresentada, e pelas mãos de um mestre, o sargento Beiçola, 21 anos de polícia
só lá no 6º: próximo ao Corpo de Bombeiros de Vila Isabel, em uma ruazinha
erma, ficava um dos acessos à área conhecida como “Pantanal”, localidade do
morro dos Macacos. Era uma rua ascendente, asfaltada apenas até certo ponto,
mas o que importa aqui é o início da subida, logo acima da Avenida Radial
Oeste. O “morrinho” era um descampado bem ao lado de uma curva dessa subida, e
revelava frondosamente no horizonte, que se precipitava à beira do barranco, a
favela da Mangueira em todo o seu esplendor. Do ponto de vista do observador de
pé na beirada do morrinho, bem abaixo dele estava a pista sentido Maracanã (...)
Paralela a esta, e separada por um canteiro,estava a pista de sentido
contrário, o finalzinho da Radial, para quem queria acessar o mesmo viaduto, ou
simplesmente seguir até a 24 de Maio. Colada neste trecho estava a favelinha do
Metrô, atrás dela a linha do trem e, do outro lado dos muros que ladeiram os
trilhos o objetivo se revelava: a rua Visconde de Niterói. A principal via de
entrada à comunidade da Mangueira também abrigava o barracão e a quadra da
famosa escola de samba, mais a estátua de Cartola e seu museu. Nesse caminho
estava um dos principais chamarizes aos visitantes do asfalto, que vinha de
longe (e até de outros países) para conhecer a mercadoria da casa: a boca do
Buraco Quente.
De cima do morrinho, com a ajuda de um binóculo vagabundo
qualquer, dava para acompanhar tudo o que acontecia do outro lado da linha do
trem. Os carros acessavam o beco de pela Visconde de Niterói, onde um “estica”
estava sempre de prontidão. Era esse funcionário do tráfico que fazia a ligação
da boca mais famosa da Mangueira com o asfalto, como um atendente de drive-thru,
anotando o pedido do cliente e voltando com a droga, segundos depois. Isto é,
para aqueles que não queriam se dar ao trabalho de entrar na favela, pessoas
que chegavam em carrões importados, algumas celebridades, jogadores de futebol,
gente que não quer ter contato com a sujeirada dos becos, mas que consome o que
é “endolado” neles com bastante prazer. (...) Em dias de samba era um frenesi:
o movimento de carros se tornava absurdo, com gente comprando e consumindo a
torto e a direito por todos os lados. Dentro dos carros, no meio da rua, nos
camarotes da quadra, o pó vendido nesses dias era inclusive separado de uma
mistura especial, para fidelizar e fazer jus à fama.
O sistema de extorsão funcionava assim: lá em cima do
morrinho ficava uma guarnição no “olho”, os dois patrulheiros responsáveis pela
identificação dos alvos a serem abordados. Para alcançar o ponto estratégico
durante a madruga, algumas preocupações precisavam ser tomadas, e uma delas era
não acionar nenhuma luz no momento do posicionamento. Até para manobrar a
viatura era necessário cuidado redobrado,
pois o simples acionamento de uma luz de freio era suficiente para que, de
lá do alto do morro, os traficantes percebessem a tocaia, e várias foram as
vezes em que guarnições receberam uma chuva de balas traçantes dos bandidos
furiosos com a maldade contra seus clientes. Em uma dessas ocasiões, o mato
seco pegou fogo de tanta fagulha provocada pelos projéteis incandescentes. (...)
Muitos recorriam ao já manjado artifício de deixar o pó com
as mulheres, visto que a presença de policiais femininas durante os
patrulhamentos noturnos é quase nula, e a revista fica impossibilitada de ser
feita pelos homens. Mas, quando o agente tem a certeza de que o flagrante está
com ela, uma seção de terror psicológico, além de meia dúzia de ameaças, é o
bastante para que comecem a cantar como sabiás bem rapidinho. Nesse pedacinho
do Rio de Janeiro tinha de tudo! Pagodeiros, advogados, pedreiros, playboys,
patricinhas, médicos e até mesmo policiais que, impulsionados pelo vício
incontrolável, iam até lá comprar a droga na cara e na coragem, sabendo que, se
fossem identificados, provavelmente morreriam dentro do morro e de forma muito
cruel.
(...)
Do alto do morrinho, todas as coordenadas eram passadas pelo
Nextel aos comparsas, que aguardavam no asfalto com o motor ligado: a cor do
veículo a ser parado, a marca e o modelo, quantas pessoas estavam no seu interior
e o principal – onde a droga foi malocada (escondida). (...) Com a certeza do
flagrante, as abordagens eram agilizadas e a possibilidade de lucros aumetava
exponencialmente, e o que se seguia após o viciado ser devidamente enquadrado
era a negociação em prol da sua liberdade.
(...)
Alguns anos atrás, umas guarnições alugaram um apartamento
bem próximo lá dos bombeiros, de onde dava para visualizar a boca direitinho,
só pra fazer o “olho” mesmo estando de folga.
- Tá de sacanagem?
- Tô falando sério! Rapaz, tem polícia que construiu a
própria casa só fazendo morrinho, o Pelicano e o Orelha foram desses!
(...)
- É, sargento, hoje tá bom o negócio lá embaixo.
- É mesmo, e aí? Já deram uma sortezinha?
Joelson continua:
- Pegamos um playboy lá da Barra com mais duas menininhas no
carro, estavam levando maconha pra uma festinha...
- Perdeu um negocinho?
- Os companheiros do “E” que pegaram ele lá embaixo dissera
que ele rateou de começo, não queriam entregar o flagrante. A cara dele caiu no
chão quando os colegas tiraram as trouxinhas de dentro daqueles espacinho onde
fica a tampa pra abastecer, sabe qual é? A gente aqui de cima viu tudo enquanto
o ganso estava escondendo. O carro dele tem aquele sistema de abertura elétrica
da tampinha, e quando ela abriu na pressão, a maconha pulou de lá de dentro no
colo dos polícia. Ele chorou, disse que estava duro, mas quando chegou na porta
da delegacia deu tudo! Foi uns 300 merréis, mais os três celulares (o dele e os
das meninas), uma garrafa de uísque que estava no carro e o relógio!
- Tá bom pra caralho. Não pegaram mais ninguém?
- Pegamos mais um casal meio coroa que perdeu uma
merrequinha, um taxista... e só. Teve um Fusion que meteu o pé pela Vinte
Quatro de Maio e deu uma poeira nos amigos que tentaram abordar ele.
(...)
Não passa mais que poucos segundos com o foco voltado para
lá, logo é cutucado pelo sargento:
- Ali, rapaz, “martca” aquele carro que tá parando lá na
boca... É o quê? É um Astra, NE?
- É sim, meu chefe, o estiva tá chegando agora na janela do
cariona.
O sargento se agita:
- Vai lá, Arnaldo, vai com o Vicente la pra baixo, rápido,
vamos pegar esse aí! Continua olhando aí, Rafael, vê se dá pra pegar legal onde
é que ele vai malocar o flagrante.
Vicente e o outro companheiro rapidamente deixam o morrinho
e partem para o ponto da emboscada. De lá de cima, Rafael assistia o crime se
desenrolar na maior calmaria. Poucos instantes após fazer seu pedido, a mulher
no banco do carona recebe a encomenda fresquinha, em mãos. O motorista
aproveita que não vem nenhum carro atrás e desce para urinar ali mesmo, próximo
à porta do carro. Aparentemente não foi usado nenhum artifício mirabolante para
esconder o flagrante, porque logo depois de se aliviar, ele entrou no carro e
engrenou a primeira:
- Sargento, estão saindo.
Acompanha eles aí, não perde de vista...
A velocidade do carro é mínima, o suficiente apenas para que
ele não desengrene. Passaram pelo primeiro quebra-molas, pelo segundo, e por um
breve momento ficam fora da visão do observador ao passar por trás de uma das pilastras
do viaduto. Quando aparecem de novo, vêm à toda velocidade.
- Sargento, pegaram o viaduto, vão vir pra cá!
- Ótimo!
- Aí, Arnaldo, estão seguindo na direção de vocês aí,
correto? Astra preto, dois ocupantes, um homem e uma mulher, vai passar aí
daqui a pouco...
(...)
- Acho que eles ainda não se ligaram que estamos atrás deles.
Estão seguindo reto pela Radial, a toda, acho que vou tocar a sirene...
Beiçola adverte:
- Não espera mais um pouco, vê primeiro se eles não vão sair
da Radial...
- Mas já estamos aqui perto da Veiga... E ele não quer
reduzir,a Cho que agora ele se ligou... Porra, estamos a 120, é melhor sirenar
logo, vou dar o toque... Ih, caralho... Ele tá acelerando. Tá acelerando, vai
cumpadi, cola nele, vai...
Passaram viando baixo pela cabine da Praça da Bandeira, e ao
perceber que o fugitivo iria enveredar pelo caminho do túnel em direção à Zona
Sul, Vicente não pensou duas vezes: meio corpo para fora da janela e dois tiros
sem o sete-meiota, de advertência, para o alto, testando se seria o suficiente
para frear a impetuosidade do piloto fujão. E foi.
(...)
- Desce do carro, porra! Mão na cabeça!
De dentro do automóvel, com o pisca-alerta ligado, sai uma
criatura com uma das atitudes mais improváveis. Além de desobedecer à ordem do
policial, a mulher loura, de uns 35 anos, demonstra indignação e inicia um
escândalo:
- Vocês atirram em mim! Vocês estão loucos, socorro! Vocês
atiraram no carro em que eu estava, eu não fiz nada, pelo amor de Deus.
O homem ao volante permanecia no carro. Arnaldo, que não
trabalhava com fuzil (pois seu negócio era uma pratinha, nada de tiroteio), se
aprocima com a pistola em punho e lhe pede para desembarcar:
- Desce aí, ô viado! Quer fugir, né, ô filho da puta! Quase
que causa um acidente! Desce logo, porra!
O indivíduo de pela clara, uns 40 anos, vestia-se bem para
um viciado. A calça escura, tipo cargo, e um desses calçados para trilho, meio
bota, meio tênis, davam a ele um ar de descontração, e a camisa pólo axadrezada,
de tecido grosso, com um alce bordado no lado esquerdo do peito, era novidade
para o cabo.
(...) Estava tremendo, da cabeça aos pés, e não entendia direito o
que fazer. A mulher maluca repreende:
- Ele não está entendendo você, seu ignorante! Ele é
norueguês, está hospedado em minha casa, passando férias! E me diga o que é que
vocês querem? Eu sou advogada, amanhã cedinho vou no batalhão de vocês dar
queixa, vou acabar com a carreira de vocês, seus loucos!
(...)
- Calma aí, Peu! Deixa eu falar com esta senhora. Minha
senhora, vamos descomplicar: por que a gente não resolve essa parada de uma
vez? Me entrega logo o flagrante...
- Que flagrante o quê? Vem cá, quem é você? Sabe com quem
está falando? Eu sou advogada e não preciso ficar passando por isso não!
- Ah, sé assim, então? Vai ficar de putaria com a minha
cara? Tá achando que...
- Putaria com a sua cara? Acho que você está me confundindo
com alguém da sua família...
Aí o caldo entornou de vez! O sargento, que tinha chegado na
intenção de amexinar a parada, partiu para cima da doutora para lhe dar uns
tabefes e calar aquela boquinha malcriada. Vicente se meteu no meio dos dois e
impediu que trocassem socos. Vociferavam farpas mútuas, e a cena era até
engraçada de se ver, mas Rafael encucou com outra coisa. O estrangeiro, que
também assistia com certo ar de riso à pastelada, de quando em quando tinha de
andar para os lados para não ser envolvido pelas partes contendoras. Nessas
horas, movia-se de maneira estranha, com as mãos nos bolsos da calça, dando a
impressão de estar evitando muita amplitude nos movimentos.
- Ô Arnaldo, vocês já revistaram esse puto?
- Não...
Com aquela cara de bundão, o gringo estava segurando tudo
com ele, crente que iria se safar na maior tranqüilidade.
- Aí, cumpadi, vira de costas! Vira aí, ô arrombado!
O soldado pega pela camisa de grife e o vira à força, o que
provocou protestos ainda mais inflamados da loura louca. Já nas primeiras
buscas em seus bolsos (eram vários na calça cargo) encontrou a prova do crime (?):
dois papelotes de cocaína de 20 reais.
- É meu, isso aí é meu! Eu sou usuária, quero ir pra
delegacia agora!
O gringo agora olha para baixo o tempo todo, perdeu o
sorrisinho bobo e se consterna com a situação de flagrância.
Mas a mulher não aprece nem um pouco preocupada de ir até a
delegacia; ela era advogada realmente, sabia que não iria dar um nada mesmo. Só
que ainda não estava tudo certo para Rafael.
- Vira aí, seu puto, ainda não terminei não!
Ele continuou a busca pessoal no estrangeiro, e a mulher
reclama do porquê de continuar com aquilo, queria registrar o fato logo. Rafael
faz que nem escuta e corre as mãos por dentro das pernas do camarada, dando
continuidade ao procedimento. Não percebe nada de mais, mas mesmo assim está
cabreiro:
- Chega aí – gesticula com as mãos. Abaixa a acalca.
No começa a ordem não é compreendida. Rafael levou o cara
para um canto e repetiu o que disse,
novamente sem sucesso, e então ele mesmo puxou-lhe a roupa para se fazer compreensível.
Vacilante, o gringo abaixo as calças só um pouco, Rafael mandou descer mais,
até os joelhos, e depois a cueca. É escroto (desculpe o trocadilho), mas são
ossos do ofício e, como suspeitava, encontrou. Os vários papelotes de cocaína
brotavam dos genitais e caíam no chão, entre as calças arriadas do safado. A
mulher,q eu estava em polvorosa antes da descoberta, agora se cala e pela
primeira vez abaixa a cabeça.
Treze papelotes de cocaína estavam na cueca do infeliz, mais
quatro no calçado esquerdo, pó o suficiente para animar a after party para qual
foram convidados após um show de uma famosa cantora da MPB.
Não era a primeira vez dele no Brasil, tinha negócios aqui,
e o mais legal foi que, de uma hora para outra, ele aprendeu a falar português.
Um milagre!
- Vamos conversar - ele disse, com sotaque carregadíssimo,
mas inteligível.
- Esse é o problema de vocês... Arrumam o maior tumulto,
esperneiam, mas no final acabam se fudendo mais do que o necessário. Se desde o
começo já tivessem dado o papo, já estariam no rumo de casa, mas agora não tem
mais desenrolo não, seu gringo sem-vergonha, tá preso pra caralho! Vira, bota a
mão pra trás...
- Que ser isso? Não precisar disso, senhor, vamos
conversar...
Acaba algemado e conduzido para a viatura, co os olhos
marejados e a cara de coitado que só os melhores gansos sabem reproduzir. (...)
A loura, de cabeça baixa, acompanha a movimentação e aguarda o que será feito
dela. O sargento chega perto e diz em tom de voz e debochado:
- Viu, nem precisa te encostar a mão, doutorazinha de merda!
Vocês mesmos é que se empenaram! O teu amiguinho aí vai entrar é no tráfico, e
você também, vamos ver a sua cara no jornal de amanhã.
- Que é isso, vai me algemar também? Há necessidade disso?
- Lógico! Seu passeio agora é diferencial, vocês receberão
tudo o que têm direito...
A mulher é colocada ao lado do gringo e fecham a porta.
- E o meu carro? – perguntou a advogada.
- Calma, senhora – responde Rafael. Um policial está
conduzindo ele até a delegacia. Que merda que vocês fizeram...
O gringo parecia um disco arranhado.
- É, vamos conversar...
Vicente interrompe:
- Porra, gringo, você tá falando tanto que quer conversar,
quer conversar... Fala logo o que tu quer falar!
- Eu querer dar dinheiro para vocês...
A mulher entra no jogo:
- Ele tem como negociar bem, vocês não vão se arrepender,
vamos parar em algum lugar e conversar.
Rafael arremata:
- Dá logo o papo, gringo, tem quanto pra perder?
- Dois mil, pode ser?
Era o momento de continuar a peça e não demonstrar surpresa:
- Só isso? Você tá maluco? Vocês tão indo presos por tráfico
meu camarada, não é por porte não... Tá achando que eu to morrendo de fome,
porra? Divide por quatro, é 500 pra cada, tá de brincadeira?
- Tá bom, tá bom... – a mulher se rende. Faz o seguinte: chama
o sargento aqui, para em algum lugar que eu falo com ele... – consulta baixinho
o norueguês. Dez mil, mas vamos ter que ir à minha casa, quer dizer, ao meu
apartamento, onde ele está hospedado.
O camarada tinha no cofre do apartamento de sua anfitriã,
advogada tributarista que cuidava de parte considerável de sua empresa no
Brasil, o total de 15 mil dólares, 7.500 euros e 10 mil reais. Ela era
solteirona, e o acolhia sempre durante suas estadas à procura de mulatas e
cocaína latino-americanas, produtos a preço de banana. Pagar ali era a melhor solução.
Faltavam os ajustes.
(...)
Era um prédio bonito de São Conrado.
O gringo pediu que os policiais aguardassem na sala enquanto
ele ia ver se estava tudo certo.
Rafael assaltava a enorme geladeira duplex inox, rica em
alimentos caros e deliciosos. Arnaldo serviu-se de uma garrafa de scotch do bar
e acomodou outra, ainda lacrada, no bornal, olhando ao redor em busca de algo
mais valioso que pudesse afanar. Rafael, satisfeito com o dinheiro que iria
extorquir, não pensava em roubar mais nada da casa, embora os eletroeletrônicos
dispostos pela sala chamassem sua atenção.
- Eu resolver o problema. Ser todo o dinheiro que eu ter
comigo, vou voltar pro casa sem nada. Dez mil reais, mais 2.500 dólares, poder
ser?
Rubem L. de F. Auto
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