Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“O oficial de dia é a representação do comandante durante
sua ausência. (...) Eles determinam como e quem será deslocado, recebem
denúncias e reclamações da população, lidam com o rancho, com a faxina, com
tudo!
Quem quer trabalhar? Ah, essa pergunta sempre estava
implícita nos serviços do tenente Praga (referência ao famoso personagem do
Show da Xuxa). Só havia um problema: tinha que chegar cedo, ou ele vendia tudo
antes da rendição do primeiro horário. O oficial, no uso de suas atribuições e
ladeado pelo sargento adjunto, percorria a escala de serviço à procura dos
serviços desnecessários, aqueles que ninguém nem sabia direito que existem, dos
quais só se ouvia falar. Os correios, o depósito público, algumas visibilidades
às vezes eram tão absurdas que pareciam mentirinha. (...) Se o policial que
estivesse sobrando tivesse cinquentinha para perder, ia dormir tranqüilo no
aconchego do seu lar, ou ficava acordado para ganhar 150 na segurança da boate.
(...) No Natal e no ano-novo era festa na caserna! Quem tivesse 200 reais podia
ir para casa passar a virada com a família, só precisava deixar o celular
ligado para o caso de “dar ruim”. Em um ano-novo muito especial, a cois quase
fedeu, porque uma pessoa foi baleada durante tentativa de assalto e acabou
ficando paraplégica; como ele era filho de uma personalidade, o caso ganhou a
mídia. Acontece que, naquele dia, o tenente (não o Praga, outro) se empolgou e
vendeu quase todo o policiamento da Tijuca; só tinha uma viatura, guarnecida
por dois agoniados, rodando a área toda do batalhão. Nem a supervisão estava na
pista, tendo que voltar às pressas, bêbada e com a barriga explodindo de
bacalhau.
(...) Uma estimativa: cinco guarnições de RP pagando ao
comandante de companhia 100 reais cada policial + quatro guarnições de subsetor
pagando 50 reais cada policial + quatro guarnições de subsetor pagando 50 reais
cada componente + duas cabines a 50 reais o cabineiro = 6 mil reais na conta do
capitão por mês.
(...)
O oficial da Polícia Militar não pode ser mandado embora.
Não pode ser excluído.
O praça é funcionário do coronel. Como ele está única e
exclusivamente subordinado à administração militar, para que seja expulso,
basta que um processo administrativo seja instaurado e dele resulte um conselho
de disciplina. Três oficiais são designados para tal conselho, mas a decisão
final fica a cargo do comandante-geral da corporação. É ele, o coronel, quem
decide, no fim das contas, se o PM fica ou se vai! Só isso. A maioria dos
praças se irrita quando confrontado com sua real condição empregatícia. Quer
porque quer acreditar que é funcionário público do estado, mas não é.
(...)
Diferentemente do oficial. Para que este seja “expulso”,
primeiro um colegiado de oficiais é formado, nos moldes do Conselho do Praça.
Após a decisão absolutamente irrelevante dessa primeira bancada teatral, o
resultado vai para as mãos do comandante-geral. Se ele quiser botar o oficial
na rua, manda sua intenção para a mesa do governador, ele é quem “decide”. Viu
a diferença? Quem demite funcionário público estadual é o chefe do executivo
estadual. Mas ainda não acabou.
O governador decide uma virgula, pois, ainda que o capitão
tenha liberado os dois assassinos que haviam acabado de matar o funcionário de
uma ONG, ou que tenha sido preso em flagrante roubando cabos óticos, ou que esteja
envolvido co milícias, ou matado a ex-namorada, ou explodido caixas eletrônicos
ainda assim o processo vai para apreciação de uma câmara de desembargadores do
Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. (...) Ainda que, depois de esgotadas
todas as apelações, o oficial seja expulso da corporação, ele manterá,
vitaliciamente, um vencimento pago pelo estado, hoje em torno de mil reais.
Todos mês, essa quantia, que sofre reajuste com os aumentos concedidos à
classe, será depositada na cont do dependente direto do “ex-“oficial. (...)
Valendo-se do manto protetor, eles se escondem atrás das
estrelas e colocam mais lenha ainda na já crepitante fogueira da corrupção
policial, incentivando os comandados a extorquirem mais, a matar mais. Aí se
encontra toda a problemática da PM do Rio de Janeiro.
(...)
Pelas mãos deles passam as ocorrências que normalmente
estamparão as manchetes dos jornais, que terminam em tiros e sangue, do jeitinho
que a galera gosta! As guarnições de GAT e Patamo.
São grupos formados com a missão de botar ordem na casa
sempre que o coronel julgar necessário, e têm basicamente a mesma função, com a
diferença de o GAT ter de oito a dez integrantes, e a Patamo, no máximo, cinco.
Geralmente são comandados por um sargento antigo, que conhece bem os morros e a
área do batalhão e influencia diretamente na escolha de seus subordinados. Um oficial
é sempre encarregado de tomar conta da guarnição, mas ele não está presente na
maioria das vezes em que ela opera; resguardando-se para quando tiver uma
reportagem, ou para quando o “bote” valer a pena. (...)
Eis aí mais um problema do militarismo nas forças policiais.
(...) Não há território inimigo, como pensa a capenga cabecinha do PM, e sim
território comum, onde marginais se homiziam para escapar dos braços da lei. Enxergar
a comunidade como uma extensão do próprio criminoso só pode mesmo ser uma idéia
oriunda da já afetada concepção que o policial militar tem de si e do corpo
social.
(...)
O GAT avança na bala pelos becos e vielas, catando tudo que
vê pela frente!
Televisões de plasma, aparelhos de ar-condicionado, garrafas
de uísque, brinquedos, tudo que estiver ao alcance das mãos e longe das vistas de
testemunhas virará posse dos mercenários tão logo possa ser embarcado no
blindado. As armas, as drogas e o dinheiro proveniente de sua venda não
pertencem legitimamente ao estado, e sim àqueles que se enfiaram debaixo de uma
chuva de balas para tomá-las das mãos dos criminosos.
Antes de lavar o dinheiro, depositando-o nas contas de
laranjas ou usando-o para a aquisição de negócios de fachada, o traficante tem
que deixar a grana por um breve período circulando na favela, e essa é a maior
preocupação da administração das bocas: manter o dinheiro seguro até a hora de
ele sair do morro. Uma mochila guarda o lucro recolhido diariamente, que podia
chegar, no caso do morro dos Macacos, a 40, 50 mil reais, um peso danado a quem
estivesse incumbido de carregá-lo, sempre escoltado por uma penca de marginais
armados até com granadas. Esse carregador, o mochileiro, era o pote de ouro a
ser perseguido em algumas incursões, e a mochila volta e mais caía dos
justiceiros para nunca mais aparecer.
Pegar um cabeça do morro também valia dinheiro certo, com a
diferença de, dependendo da importância do vagabundo, um só bote poder valer
por toda uma carreira de extorsões. Não é raro relatos de bandidos que pagaram,
na hora e em dinheiro, quantias absurdamente altas, como 500 mil e até mais,
para continuarem soltos nas ruas. Se o dinheiro não estiver todo à mão,
recolhendo-se os ouros da favela, as armas; se for preciso, os morros aliados
até inteiravam o valor do resgate. Mas nem tudo pode ficar para a guarnição, algumas
coisas têm de ser apresentadas aos jornais, e então eles jogam sobre o capô uma
meia dúzia de papelotes, um 38 velho e um defunto, para justificar o tiroteio
que durou cinco horas.
Qual não é a sensação de descer as escadarias com o troféu
da caçada carregado em um lençol todo manchado de vermelho! Os braços pendentes
para fora, pingando sangue no chão da calçada, na encenação esquálida de
providenciar um socorro para o cadáver, já rijo de tanto tempo que foi
alvejado.
(...)
Em vez de vomitar, o carioca diz: “Ih, ah lá! Se fudeu!”, e
segue normalmente...
Os criminosos são sangrados como animais, num ato de revanchismo
contra os arrastões, os assaltos os estupros, os latrocínios. (...) Encontrou
alguém para fazer o que ele tinha vontade e não podia, alguém que vai até lá
para matar e saquear: o PM.
(...)
Famílias destruídas de ambos os lados, choro, morte e
miséria para todos, e o grande maestro, a orquestrar a nefasta peça, incólume e
sorridente: o estado.
Rubem L. de F. Auto
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