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quinta-feira, 16 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 15


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“O oficial de dia é a representação do comandante durante sua ausência. (...) Eles determinam como e quem será deslocado, recebem denúncias e reclamações da população, lidam com o rancho, com a faxina, com tudo!
Quem quer trabalhar? Ah, essa pergunta sempre estava implícita nos serviços do tenente Praga (referência ao famoso personagem do Show da Xuxa). Só havia um problema: tinha que chegar cedo, ou ele vendia tudo antes da rendição do primeiro horário. O oficial, no uso de suas atribuições e ladeado pelo sargento adjunto, percorria a escala de serviço à procura dos serviços desnecessários, aqueles que ninguém nem sabia direito que existem, dos quais só se ouvia falar. Os correios, o depósito público, algumas visibilidades às vezes eram tão absurdas que pareciam mentirinha. (...) Se o policial que estivesse sobrando tivesse cinquentinha para perder, ia dormir tranqüilo no aconchego do seu lar, ou ficava acordado para ganhar 150 na segurança da boate. (...) No Natal e no ano-novo era festa na caserna! Quem tivesse 200 reais podia ir para casa passar a virada com a família, só precisava deixar o celular ligado para o caso de “dar ruim”. Em um ano-novo muito especial, a cois quase fedeu, porque uma pessoa foi baleada durante tentativa de assalto e acabou ficando paraplégica; como ele era filho de uma personalidade, o caso ganhou a mídia. Acontece que, naquele dia, o tenente (não o Praga, outro) se empolgou e vendeu quase todo o policiamento da Tijuca; só tinha uma viatura, guarnecida por dois agoniados, rodando a área toda do batalhão. Nem a supervisão estava na pista, tendo que voltar às pressas, bêbada e com a barriga explodindo de bacalhau.
(...) Uma estimativa: cinco guarnições de RP pagando ao comandante de companhia 100 reais cada policial + quatro guarnições de subsetor pagando 50 reais cada policial + quatro guarnições de subsetor pagando 50 reais cada componente + duas cabines a 50 reais o cabineiro = 6 mil reais na conta do capitão por mês.

(...)

O oficial da Polícia Militar não pode ser mandado embora. Não pode ser excluído.
O praça é funcionário do coronel. Como ele está única e exclusivamente subordinado à administração militar, para que seja expulso, basta que um processo administrativo seja instaurado e dele resulte um conselho de disciplina. Três oficiais são designados para tal conselho, mas a decisão final fica a cargo do comandante-geral da corporação. É ele, o coronel, quem decide, no fim das contas, se o PM fica ou se vai! Só isso. A maioria dos praças se irrita quando confrontado com sua real condição empregatícia. Quer porque quer acreditar que é funcionário público do estado, mas não é.

(...)

Diferentemente do oficial. Para que este seja “expulso”, primeiro um colegiado de oficiais é formado, nos moldes do Conselho do Praça. Após a decisão absolutamente irrelevante dessa primeira bancada teatral, o resultado vai para as mãos do comandante-geral. Se ele quiser botar o oficial na rua, manda sua intenção para a mesa do governador, ele é quem “decide”. Viu a diferença? Quem demite funcionário público estadual é o chefe do executivo estadual. Mas ainda não acabou.
O governador decide uma virgula, pois, ainda que o capitão tenha liberado os dois assassinos que haviam acabado de matar o funcionário de uma ONG, ou que tenha sido preso em flagrante roubando cabos óticos, ou que esteja envolvido co milícias, ou matado a ex-namorada, ou explodido caixas eletrônicos ainda assim o processo vai para apreciação de uma câmara de desembargadores do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. (...) Ainda que, depois de esgotadas todas as apelações, o oficial seja expulso da corporação, ele manterá, vitaliciamente, um vencimento pago pelo estado, hoje em torno de mil reais. Todos mês, essa quantia, que sofre reajuste com os aumentos concedidos à classe, será depositada na cont do dependente direto do “ex-“oficial. (...)
Valendo-se do manto protetor, eles se escondem atrás das estrelas e colocam mais lenha ainda na já crepitante fogueira da corrupção policial, incentivando os comandados a extorquirem mais, a matar mais. Aí se encontra toda a problemática da PM do Rio de Janeiro.

(...)

Pelas mãos deles passam as ocorrências que normalmente estamparão as manchetes dos jornais, que terminam em tiros e sangue, do jeitinho que a galera gosta! As guarnições de GAT e Patamo.
São grupos formados com a missão de botar ordem na casa sempre que o coronel julgar necessário, e têm basicamente a mesma função, com a diferença de o GAT ter de oito a dez integrantes, e a Patamo, no máximo, cinco. Geralmente são comandados por um sargento antigo, que conhece bem os morros e a área do batalhão e influencia diretamente na escolha de seus subordinados. Um oficial é sempre encarregado de tomar conta da guarnição, mas ele não está presente na maioria das vezes em que ela opera; resguardando-se para quando tiver uma reportagem, ou para quando o “bote” valer a pena. (...)
Eis aí mais um problema do militarismo nas forças policiais. (...) Não há território inimigo, como pensa a capenga cabecinha do PM, e sim território comum, onde marginais se homiziam para escapar dos braços da lei. Enxergar a comunidade como uma extensão do próprio criminoso só pode mesmo ser uma idéia oriunda da já afetada concepção que o policial militar tem de si e do corpo social.

(...)

O GAT avança na bala pelos becos e vielas, catando tudo que vê pela frente!
Televisões de plasma, aparelhos de ar-condicionado, garrafas de uísque, brinquedos, tudo que estiver ao alcance das mãos e longe das vistas de testemunhas virará posse dos mercenários tão logo possa ser embarcado no blindado. As armas, as drogas e o dinheiro proveniente de sua venda não pertencem legitimamente ao estado, e sim àqueles que se enfiaram debaixo de uma chuva de balas para tomá-las das mãos dos criminosos.
Antes de lavar o dinheiro, depositando-o nas contas de laranjas ou usando-o para a aquisição de negócios de fachada, o traficante tem que deixar a grana por um breve período circulando na favela, e essa é a maior preocupação da administração das bocas: manter o dinheiro seguro até a hora de ele sair do morro. Uma mochila guarda o lucro recolhido diariamente, que podia chegar, no caso do morro dos Macacos, a 40, 50 mil reais, um peso danado a quem estivesse incumbido de carregá-lo, sempre escoltado por uma penca de marginais armados até com granadas. Esse carregador, o mochileiro, era o pote de ouro a ser perseguido em algumas incursões, e a mochila volta e mais caía dos justiceiros para nunca mais aparecer.
Pegar um cabeça do morro também valia dinheiro certo, com a diferença de, dependendo da importância do vagabundo, um só bote poder valer por toda uma carreira de extorsões. Não é raro relatos de bandidos que pagaram, na hora e em dinheiro, quantias absurdamente altas, como 500 mil e até mais, para continuarem soltos nas ruas. Se o dinheiro não estiver todo à mão, recolhendo-se os ouros da favela, as armas; se for preciso, os morros aliados até inteiravam o valor do resgate. Mas nem tudo pode ficar para a guarnição, algumas coisas têm de ser apresentadas aos jornais, e então eles jogam sobre o capô uma meia dúzia de papelotes, um 38 velho e um defunto, para justificar o tiroteio que durou cinco horas.
Qual não é a sensação de descer as escadarias com o troféu da caçada carregado em um lençol todo manchado de vermelho! Os braços pendentes para fora, pingando sangue no chão da calçada, na encenação esquálida de providenciar um socorro para o cadáver, já rijo de tanto tempo que foi alvejado.

(...)

Em vez de vomitar, o carioca diz: “Ih, ah lá! Se fudeu!”, e segue normalmente...
Os criminosos são sangrados como animais, num ato de revanchismo contra os arrastões, os assaltos os estupros, os latrocínios. (...) Encontrou alguém para fazer o que ele tinha vontade e não podia, alguém que vai até lá para matar e saquear: o PM.

(...)

Famílias destruídas de ambos os lados, choro, morte e miséria para todos, e o grande maestro, a orquestrar a nefasta peça, incólume e sorridente: o estado.



Rubem L. de F. Auto

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