Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Chegou o dia!
(...) Ah, a arma...
Chegou sua vez na reserva. Do outro lado da grade por onde
se entrega os armamentos, o sargento Lima faz suas anotações no livro de
controle. A reserva é como um bunker, trancada e protegida como a área mais
importante do batalhão. Só que, por incrível que pareça, esse aparato todo não
visa a proteger o armamento do saque por parte de criminosos, mas sim da
ganância dos próprios policiais. Os oficiais têm medo de que praças mal-intencionados
se aproveitam de algum descuido de segurança e afanem alguns armamentos para
vender no mercado negro, então cercam os poucos policiais que trabalham nas
RUMB com estritas determinações. Esses policiais invariavelmente são aqueles
impossibilitados de trabalhar na rua, que detêm algum tipo de limitação física
ou que simplesmente se cansaram da correria. Quando não têm intimidade com os
policiais que são novos no batalhão, desconfiam de tudo, e não deixam nenhum
carregador ao alcance das mãos do mango antes de estar tudo discriminado no
livro de registro. A gradezinha por onde passavam o material só não conseguiu
impedir que oito fuzis FAL .762, duas pistolas .40, uma metralhadora 9mm e mais
umas centenas de cartuchos sumissem misteriosamente de dentro do paiol. O furto
só foi descoberto em uma verificação feita por ordem de um coronel que havia
acabado de assumir o comando do batalhão. O fato foi noticiado pela imprensa
durante algum tempo, mas, como havia oficiais envolvidos, o caso foi abafado.”
(...)
Pivetes.
Eles estavam por toda parte de Vila Isabel e despertaram a
atenção dos policiais. Formava grupos numerosos, com cinco ou mais integrantes,
e eram responsáveis pela maioria dos assaltos e pedestres. Alguns tinham casa e
família, moradores de comunidades próximas, como o Macacos e a Mangueira, mas
outros eram abandonados mesmo, e usavam o “esqueleto” em frente ao Maracanã
como dormitório (...) Por passarem o dia sob o efeito de drogas, prinicpalmente
thinner e a cola de sapateiro, eram abusados e roubavam na cara de pau a
qualquer hora do dia. Dois desses grupinhos haviam visto Rafael e Gouveia
chegando, e se ouriçaram diante de uma possível abordagem. Todos portavam suas
garrafinhas descartáveis com o produto entorpecente, e sabiam que isso já era
suficiente para uma seção de cascudos.
(...)
Como quem não quer nada, os PMs se aproximam mais ainda, e
agora todos os menores se levantam e ensaiam uma retirada, quando Rafael pela
primeira vez saca sua pistola em direção a uma pessoa:
- Para aí, menor, não corre não!
(...)
Pegos de surpresa, os menores colocavam as mãos na cabeça,
não antes de jogar longe as garrafinhas com cola, e eram conduzidos para a
mureta mais próxima para uma seção de doutrinação quanto ao perigo das drogas.
Se estivessem sem nada que os denunciasse, como algumas armas improvisadas que
já descrevi, os cascudos e tapas na cara eram o suficiente para a forra dos
pinotes anteriormente bem-sucedidos.
A arte de aplicar um belo tapa na cara de alguém requer
muita dedicação e prática do agressor, porém, como um dom natural, Rafael tinha
uma habilidade magnífica nesse tipo de exteriorização de sentimentos.
(...)
Levado para o “escritório”, o galalau de 1,80m, que disse
ter 17 anos (e tinha mesmo), fora tão estragado pelos anos tragando o solvente
que não falava coisa com coisa. Estava meio doidão no momento da abordagem, mas
foi ficando “bom” e começou a rebarbar com Rafael enquanto ele perguntava sobre
o crime contra a menina da UERJ: “Ih! Não fode! Eu não sei nada disso não, sou
de menor, não bota a mão em mim não! Quero ir pra delegacia... Ai, ai... tá me
batendo! Ai... socorro, imprensa, tira foto aqui ó, tá abusando! Ai, socorro...”
(...)
- Gouveia, não bate mais nesse arrombado não, tive uma idéia!
Algema ele aí.
Rafael havia tido mais um de suas brilhantes idéias!
(...)
Rafael e Gouveia conduziram o menor detido para outro
cantinho, mais reservado, nos fundos de uma velha construção abandonada, às margens
da avenida Radial Oeste.
(...)
Rafael tira a garrafinha (cola de sapateiro) do bornal e
empurra contra a boca do abusadinho, que resiste, mas sucumbe depois do tiro de
meta aplicado por Gouveia bem no meio dos seus rins: “Tu não gosta, filho da
puta? Bebe essa porra í então...”. Enquanto os primeiros goles de solvente iam
descendo pela garganta, o cliente começa a ter espasmos epiléticos sob os olhos
esbugalhados dos policiais, que não esperavam uma reação tão violenta por parte
da substância no organismo do bandidinho. Rafael larga o pescoço do rapaz, que
regurgita partículas químicas como um chafariz, pelo nariz e pela boca, logo
passando a convulsionar e tossir grossas placas de sangue.
- Caralho! Matamos o cara! – disse Rafael para o corpo
branco e inerte de Gouveia, cuja alma já havia fugido da cena do crime 30
segundos antes. Surpreendentemente, depois de alguns instantes semidesacordado,
o garganta de fogo recobra a consciência e se senta ainda meio tonto, mas
devidamente doutrinado:
- Poxa, senhor, não me faz beber esse negócio aí mais não,
por favor... Eu vou embora, não mexo com ninguém mais aqui não, nem venho ea de
vocês, so me deixa ir embora, por favor...
(...)
Essa correria diária fez a fama dos policiais com os
comerciantes locais. Embora ainda não tivessem logrado êxito em prender
ninguém, os pivetes tinham medo de serem pegos pelos “polícia maluco” que
corriam atrás de todo mundo na Vinte e Oito.
Rubem L. de F. Auto
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