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terça-feira, 21 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 25


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“Durante os tiroteios, a chance de matar alguém é muito pequena. Traficante não fica colocando a cara para ser baleado de bobeira. Mais do que escaldado, quando vê a polícia chegando corre e se entoca primeiro; só atira se estiver em posição de suprema vantagem. Pouquíssimas são as vezes que um bandido cai baleado enquanto está oferecendo resistência, enquanto dispara ou aponta sua arma para um policial. A quantidade de tiros que se ouve durante as incursões policiais serve apenas para avançar no território inimigo, abrindo caminho a bala, e aí tem início o trabalho dos carrascos.

Certa vez, no morro da Formiga, Anselmo, Vianna, Antônio e Reginaldo estavam dando uma “batida”. Com o mandado de busca e apreensão na sola do coturno, arrebentavam as fechaduras no caminho e invadiam as casas uma a uma, pois Anselmo vira um bandido correr naquela direção, fugindo dos pipocos. Em uma das casas, encontraram um jovem deitado na cama e o mandaram levantar, estocando-o com o bico do fuzil. Uma rápida entrevista se sucedeu e Anselmo, com o olhar maldoso, o pegou na curva (de surpresa): “Sei, você mora aqui e tava dormindo, né? E por que é que essa camisa tá assim, toda fedendo a suor? Você é sonâmbulo, é? Corre enquanto dorme?”.

Ele não tinha fuzil, só uma pistola, e entregou onde ela estava, pois o seu saco já estava chamuscado de tantas descargas elétricas. Mas Anselmo queria mais: “Meu santo tá dizendo que você tá mentindo; se continuar assim, Zé Maria vai ficar rindo da tua cara...”.

Levaram o rapaz para fora da casa e, como ele aparentemente não tinha mesmo um fuzil para desenrolar, e como esses subalternos têm pouco dinheiro para perder, decidiram matá-lo.
Todos dão um passo para trás, disfarçando, e Anselmo o manda levantar (para qu8e não fique marca de tiro no chão e o projétil não entre de cima para baixo, caso haja perícia, o que é muito raro...), dizendo que é para colocar as algemas. Atira no peito dele duas vezes.

(...)

Magalhães então segue para se acomodar no banco do carona de sua mula de metal (blazer do GAT, Grupamento de Ações Táticas). Mais um dia de serviço.

Ao todo, contava 24 anos de polícia. Desses, 21 só de 6º Batalhão. Serviu ao Exército por três anos, como paraquedista do 26 BIPQDT, um dos mais conceituados entre os guerreiros alados. Como não conseguiu permanecer no serviço ativo (não havia vagas para engajar todos os PQDTs), degringolou para a profissão do pai, sob uma chuva de protestos da família inteira.

Naqueles tempos as coisas eram diferentes. A Patamo não enfrentava resistência quando subia os morros; pelo contrário, ao avistar os “pés pretos” subindo, a bandidagem simplesmente se escondia para não ser presa ou morta. Quando tinha um mandado de prisão, ou alguma coisa séria que pedia intervenção policial, o comandante da Patamo simplesmente mandava dar o recado para fulano ou sicrano se apresentar, senão ia ter sacode na favela. E que sacode!

Não havia corregedoria, disque-denúncia, câmeras nos celulares e imprensa sensacionalista contra a instituição. A barbaridade reinava absoluta, com os PMs fazendo o que bem entendiam com o povo pobre, ignorante e favelado.

Magalhães chegou na polícia no momento da transição. Nem ele mesmo consegue esmiuçar como aconteceu a mudança, mas o fato se deu porque o estado, com a sua inépcia no quesito gestão de segurança pública, propiciou o fortalecimento dos criminosos de tal maneira que, um dia, quando foi cumprir mais uma missão de rotina, não se sabe como, teve que voltar rastejando para não ser atingido pela saraivada de balas de fuzil que vinham do alto da caixa-d`água, lá no Borel.

Nem a polícia trabalhava com fuzil, tinha no máximo a carabina .30 (que nada tem a ver com uma arma antiaérea), usada como armamento de emprego coletivo na Segunda Guerra Mundial e anos-luz atrás em matéria de poder de fogo dos AR-15, que pululavam nas cordilheiras vermelhas. Além das carabinas, os policiais dispunham de escopetas calibre 12 (que, dadas as características dos confrontos cariocas, são tão eficientes quanto bacamartes de sal grosso), revólveres calibre 38 (os “cerqueirinhas”, apelidados assim por causa do secretário de segurança que os concedeu, o general Nilton Cerqueira), as metralhadoras INA 9mm (que só funcionavam com a culatra aberta, causando vários acidentes durante seu manuseio) e a Pasã .45, todos armamentos ultrapassados diante da gerência criminosa.

Não pense que, apenas por estar com uma arma ruim, o policial se inibe diante dos marginais. Eles entravam com tudo, no peito e na raça, atrás do objetivo. Quebravam as bocas, tomavam tudo dos bandidos e depois passavam o “cerol”, fininho! Matar traficante ou ladrão, naquela época, não era crime, e assim Magalhães estabeleceu-se como um dos maiores fazedores de ocorrência do 6º Batalhão, progredindo passo a passo rumo à sua maior pretensão: comandar seu próprio GAT.

Matou muito. Criança, mulher, homem, aleijado não importava. Quem quer que estivesse envolvido na “sacanagem” ganhava um passaporte direto para a eternidade.

Quando soldado, enquanto torturava um rapaz no alto do Andaraí ara que ele entregasse o esconderijo das drogas, tarde da noite, a mulher do bandido, uma faxineira que havia acabado de cumprir o turno de trabalho, chegou em casa e se deparou com os policiais em pleno interrogatório. O jovem, já muito machucado e com vários órgãos estourados pelas pancadas, expirou antes mesmo de poder pedir socorro à mulher que, desesperada, começou a gritar ensandecidamente. Não poderia haver testemunhas e, como prova de que estava de corpo e alma entregues à guarnição, o velho comandante ordenou ao soldado Magalhães que matasse a nortista. A mulher continuou a gritar, pouco se importando se a morte estava cafungando em seu pescoço. Possuído, o sargento repetiu a ordem, confundindo sua voz com a gritaria da faxineira, jogada ao chão por cima do corpo flagelado do marido. Tinha 23 anos.

Ele não sabia, mas se tivesse escolhido poupar a faxineira, seus parceiros o matariam colocariam a culpa no rapaz torturado e a mulher como morta em decorrência do tiroteio. A PM funcionava assim. Não havia espaço para piedade.

O estado era seu patrão e as mortes, nada mais que uma atribuição oficial. Tão oficial que se incorporara ao seu salário, na forma de uma gratificação pecuniária que o acompanhará até a morte. Ou exclusão.”


Rubem L. de F. Auto


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