Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Jorge se transformou em monstro antes de Rafael.
Morador da área dominada pela polícia desde os tempos de
motoboy, fez o concurso quase em segredo, apenas os amigos mais chegados e
familiares sabiam de sua aprovação.
Após a formatura começaram os assédios para que tomasse
partido nos negócios paramilitares. Recém formado, não quer saber de prancheta
de ponto de Kombi, quer é bala, mas não o convidam para os ataques.
Jorge era cria do bairro e conhecia os bandidos que mandavam
na área antes da chegada da nova quadrilha. Nem todos os bandidos foram
expurgados com a ascensão da milícia, muitos conseguiram escapar sem ao menos
serem identificados, tão logo perceberam a iminente derrota na guerra.
Numa noite de sábado, quando os carros ligavam seus
equipamentos de som no último volume e a praça ficava lotada, Jorge resolveu
levar a mulher e os filhos para fazer um lanchinho em um trailer. Toda a cúpula
da milícia estava presente nos arredores, Marcelinho inclusive, e a festa era
garantida pela noite toda, com cerveja e armas por todo lado.
(...)
O lanche chegou e Marcelinho se levantou para deixar a
família comer sossegada, não sem antes gritar para o dono do trailer: “Aí,
família, o lanche do polícia aqui é meu, valeu? Tá pago...”.
Enquanto vi acompanhando Marcelinho ir embora, Jorge olha
para as mesas ao redor e fica gelado: um antigo traficante está sentado bem ao
seu lado.
Conheciam-se.
(...)
Jorge se levanta displicentemente já não encara mais o
desafeto, mas tenta dissimular sua intenção. Mas o bandido percebe e, ao ver o
outro levantando, levanta também e esboça uma fuga.
Jorge saca o revólver e grita para parar, corre atrás dele.
Jorge está meio fora de forma e não consegue mais continuar o empurra-empurra;
então atira para o alto, apenas para que o bandido pare. O bandido, mais uma
vez, vacila. Parou com a esperança de dialogar e ser perdoado.
Marcelinho, que chegou logo depois, ao ver a cena e perceber
que o soldado estava rendendo alguém, sacou sua pistola e reforçou a ordem. Desferiu
um golpe certeiro com o aço da Beretta 9mm, e o bandido desmaiou. Em tom sério,
mandou que algemassem o homem ainda desmaiado e ordenou que alguém trouxesse
sua caminhonete e chamou Jorge de lado.
Foi conciso. Explicou que levariam o condenado para um lugar
ermo, o interrogariam e depois o matariam.
(...)
Na caçamba da Hylux, com os solavancos da rua de barro que
tomam como rumo, o traficante acorda e fica apavorado. Marcelinho e Jorge vão
sentados na beirada da caçamba e fingem não ouvir as súplicas.
Jorge engoliu seco quando chegaram ao descampado no alto da
colina.
Nesse descampado, após a tomada do poder pela milícia, eram
realizados alguns interrogatórios e julgamentos que, ao cabo, poderiam render
desde uma simples surra até a pena capital. Os meios empregados variavam de
acordo com o condenado: fuzilamentos, asfixia, facadas e o mais requintados
deles, o “micro-ondas”.
Tiago manteve a caminhonete e os faróis altos ligados e
Altino foi buscar algumas coisas que já se encontravam por ali.
Passaram a lhe fazer diversas perguntas, ao que ele não mais
tentou dissimular sua intenção primária e contou tudo: que estava a mando de
traficantes de uma quadrilha desejosa de retomar o local; que foi até lá
obrigado, sob ameaça de morte contra si e sua família; que nunca mais
apareceria por la; que pelo amor de Deus não matassem...
Altino aparece trazendo consigo três pneus velhos. Ao
percebê-lo e divisá-lo, o jovem algemado emite urros lancinantes de agonia,
baba e cospe.
Tiago bate na sua fronte com o tambor do revólver até as
pernas pararem de sacudir e Alcino lhe encaixando os pneus de forma e prender
seus braços na altura dos cotovelos e as pernas na junção dos joelhos; ainda
sobra um para ser empilhado no tronco, deixando pouco de sua cabeça exposta.
Os carrascos deliberam sobre atirar ou não antes, para que a
queima decorra com o indivíduo já morto, mas Marcelinho apenas emite um deboche
qualquer e acende um palito de fósforo.
Os gritos não duram mais do que quatro segundos. São
sufocados pelo torpor.
Marcelinho, Tiago e Alcino sacam suas armas e aguardam que Jorge
saque o seu revólver também. Posicionam-se ao redor da brasa semimorta e
descarregam o chumbo piedoso.
Estava batizado. Jorge, a partir daquele momento, tornara-se
miliciano.”
Rubem L. de F. Auto
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