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terça-feira, 14 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 8


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“O visual das favelas cariocas nos anos 1970, 80, era bem diferente de agora. Não se via a proeminência de antenas parabólicas e ares-condicionados brotando pelas janelas, e sim uma extrema condição miserável e de abandono, que fatidicamente traria um sentimento de repulsa e revolta contra os moradores do “vale encantado”. A incrível má distribuição de renda é ainda mais gritante quando se percebe que, enquanto o seu filho chora de fome, um sujeito passa com um carro dez vezes mais caro do que seu barraco, e o crime foi o produto dessa equação desastrosa. Roubos, seqüestros e, principalmente, tráfico de drogas encontraram um terreno fertilíssimo para florescer e se estabelecer. Ajudados pela geografia do bairro, que dispõe de uma bela e extensa cadeia montanhosa, perfeita para abrigos e esconderijos, os criminosos estabelecem verdadeiros feudos sob o jugo de sua dominância violenta e inquestionável. Nos morros da Tijuca, eles determinavam as leis, os horários, os feriados, controlavam o comércio em geral, e a assistência de serviços públicos só era possível mediante sua autorização prévia. Tinham normas estritas quanto à conduta dos moradores, que eram proibidos, entre outras coisas, de falar com o polícia. Se algum marido bêbado dentro da favela batesse em sua mulher, os traficantes resolviam. Se algum bandidinho roubasse a casa de alguém, possivelmente era condenado à morte. Devia-se a alguém, tinha de pagar, e por aí vai.
Percebendo que o seu domínio, mesmo sendo imposto pela força das armas, só seria possível com a conivência da maioria integrante da comunidade, começaram a prestar um interesseiro assistencialismo aos mais miseráveis, aproveitando o imenso vácuo deixado pelo estado até mesmo nas questões mais básicas, como saneamento e fornecimento de energia elétrica. Com algumas idéias ainda remanescentes do período da Ilha Grande, os primários da Falange Vermelha experimentavam uma atrapalhada tentativa de “revolução” contra  sistema, que simplesmente ignorava os favelados, revolução esta seria bancada com o lucro da venda de drogas e demais ramificações criminosas.

(...)

Exatamente na divisa com o 1º Batalhão, o drama começava pelo morro do Turano, que, por ser muito extenso, tinha seu território dividido com o batalhão vizinho. Lá, a cadeia montanhosa toma forma e começa a avançar bairro adentro. Do Turano, a colina se divide por uma parca vegetação até a favela da Chacrinha, também dominada pela mesma facção, o Comando Vermelho. Essas duas comunidades tinham um histórico recente de forte enfrentamento com a polícia, principalmente o Turano, mas, na chegada de Rafael, os traficantes já viviam em um clima mais pacificador que beligerante, e o poderio militar estava abalado por causa das freqüentes operações que normalmente resultavam em baixas nos seus paióis de armamentos. Melhor do que brigar era negociar, e uma sintonia entre policiais atuantes na área e bandidos estava sendo orquestrada.
A praga então eram os “bondes do 157” – grupo e bandidos armados que desciam das favelas e carros ou motos e cometiam roubos em série -, que pululavam pelas ruas. Assaltantes por orgulho, essa raça fazia e acontecia nas barbas das autoridades, matando muito mais gente do que qualquer incursão policial. Matavam pelo carro, pela bolsa, pelo relógio, por esporte. Esse animal era comumente encontrado em qualquer morro, mas os do Turano eram particularmente problemáticos devido à crueldade e petulância.

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Bom, continuando o trekking: passando pela Chacrinha e tomando uma trilha agora mais espessa, com uma vegetação hostil e muito providencial como esconderijo, à frente se encontra  morro do Salgueiro, que também era povoado e dominado pelos criminosos do Comando Vermelho. Suas cercanias, como a rua dos Araújos e a do Bispo, a despeito de estarem fora da comunidade, sofriam forte influência do grupo criminoso, sendo que o patrulhamento ali já era de alto risco.
Havia nessa comunidade tijucana um baile funk que ganhou notoriedade depois do lançamento do hit “Salgueiro é o caldeirão” pelas rádios especializadas, e seu público aumentou impressionantemente, trazendo à favela inclusive celebridades, como artistas e jogadores de futebol, calorosamente recebidos pelo dono do morro. No enfrentamento, o traficante era fraco, preferindo atirar na polícia só para dar tempo de se esconder e entocar drogas e armas. Além dos bandidos habituais, os ladrões de carga faziam dali um entreposto para armazenamento e distribuição de cigarros, bebidas, eletroeletrônicos etc.
Depois do Salgueiro, (...), chegada ao morro da Formiga. Cercada pela mata por ambos os lados, essa área representava uma fortificada base de apoio e de interligação entre Borel e Salgueiro, sendo muito usada também como pouso para bandidos que fugiam pela rua Conde de Bonfim, caso se encontrassem em dificuldade após a prática de algum assalto naquela área.

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Atravessando a Conde de Bonfim, um pouco mais à frente do local onde terminam as casas da favela, fica a entrada da Indiana, um dos principais acessos ao Borel. Um dos mais antigos morros dominados pela facção criminosa, cujo “dono” (Misaías do Borel, que, mesmo preso há muitos anos, continua a exercer sua liderança) é considerado um dos cabeças da organização, já havia dado muito trabalho para a polícia em tempos passados. (...) embora o atual “patrão” (um tal de Robocop, sobrinho de Isaías) quisesse distância de problemas com a polícia, sempre que se fazia necessário dar uma porrada em alguém, lá iam os patamos bater um pouquinho no Borel.
 Rua São Miguel era passarela para os marginais, que dominavam um ponto chamado “Laje das Kombis”, o que tornava o patrulhamento nesse trecho possível apenas durante o dia.

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Separado do Borel por uma sutil barreira natural composta por pouca vegetação, o morro da Casa Branca era um dos poucos estranhos no ninho. Pertencia à facção “Amigos dos Amigos”, ou simplesmente ADA, e sofria constantes tentativas de invasão por pare dos inimigos vizinhos. Não sei bem ao certo como, mas, juntamente com o morro da Cruz, uma extensão dos seus domínios, resistiu às investidas e manteve seu território. O Casa Branca e o Cruz formavam uma dupla atrevida e inconveniente, tanto para os criminosos rivais quanto para a polícia, pois se valiam sempre de surpresa para atacar e tentar infligir algum dano aos seus contendores.    

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O Andaraí (morro homônimo ao bairro), à época de Rafael no 6º Batalhão, já não era nem sombra dos seus tempos áureos. Anteriormente, a qualidade do pó dessa favela era tão famosa e festejada que muitos vinham de fora para prestigiar a mercadoria cobiçada. Filas enormes de viciados se formavam na rua Caçapava, e as patrulhas faziam a festa com os gansinhos dos mais variados naipes no bolsos. Como o morro vendia muito, ganhava muito dinheiro, consequentemente a fama aumentava, o que obrigou o Comando Vermelho a dispensar uma atenção especial quanto à segurança da favela. Com a aquisição de armamentos mais sofisticados e poderosos, o morro passou a ser cada vez mais temido e respeitado; porém, fazendo valer a máxima tão comum aos que não têm estrutura para a grandeza, o sucesso ali foi fatal. Empolgados com a força, calcada principalmente no poder da pólvora, os bandidos deixaram o sucesso lhes subir a cabeça e sempre que podiam atiravam nas viaturas do 6º BPM. Incursões eram raivosamente repelidas, e as baixas entre os policiais não eram raras. Ostentação, arrogância, exagero. Os ladrões abandonaram as pistolas e passaram a fazer seus arrastões com fuzis e granadas, e estava claro que algo precisava ser feito. Pois bem, o coronel Málvaro, talvez o mais digno e competente oficial de toda a Polícia Militar (certamente por isso nunca foi indicado para ser comandante-geral), foi designado para colocar ordem em casa. Sob seu comando, uma guarnição que estava há muito tempo “fechada” e que o acompanhava para onde quer que fosse, os temidos “galácticos”, ficou encarregada de destruir o Andaraí após um determinado acontecimento. Dizem que, em certo domingo, uma guarnição do GAT (Grupamento de Ações Táticas) ficou encurralada na Flor de Mina, uma das localidades do Andaraí. Furiosos pelos recentes ataques ordenados pelo coronel, os bandidos não pretendiam deixar que aquela guarnição saísse dali inteira. O fogo estava cerrado, a munição dos policiais acabando, as viaturas que vieram em auxílio não conseguiram se aproximar e as granadas explodiam cada vez mais perto. Após uma manhã e uma tarde inteira sem conseguir retrair, o oficial de dia fez um contato desesperado com o comandante do batalhão e relatou o que estava acontecendo, perguntando se tinha autorização para chamar o BOPE. O coronel Málvaro, ele mesmo um caveira, foi taxativo em sua determinação: não era para chamar o BOPE “porra nenhuma”, pois ele já estava a caminho. E o coronel, com mais três galácticos, invadiu a favela, resgatou a guarnição, matou uns vagabindos, apreendeu dois fuzis e mandou o recado: “Avisa aos que restavam que eu vou botar esse morro abaixo!”. E foi dito e feito.

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Com o Andaraí cambaleante, algumas favelinhas relativamente menores cresceram, mas nada que exigisse muita atenção das autoridades. Era o caso das favelas que tomavam as encostas da serra Grajaú-Jacarepaguá, e que só davam trabalho quando os 157 resolviam fechar a pista para roubar quem passava de carro.

(...)

O Macaco era uma das mais preciosas jóias da ADA, com identidade e comando próprios, não havendo uma ascendência hierárquica à qual tivesse que se reportar. Essa independência fazia com que os integrantes da quadrilha fossem extremamente cuidadosos com seu território, soldados orgulhosos se sua função paramilitar. A extensão dos domínios da favela era a maior entre todas as comunidades da área, o que exigia um esquema de divisão de atribuições singular e a mais servil e ferrenha lealdade dos moradores, desde muito cedo doutrinados não pelo medo, mas pela identificação com os marginais.
Duas figuras exerciam o domínio sobre esse exército de vagabundos: Scooby e Borrof. Funcionava da seguinte forma: se hoje a carga de drogas vendida pertencia a um deles, no dia seguinte era a vez do outro, alternando assim o recolhimento do lucro obtido. Scooby contava com a ajuda de outro bandido, o Bebezão, para gerenciar os negócios e supervisionar a segurança, e Borrof delegava essa função para o LG, seu primogênito. Com essa estrutura a la Cosa Nostra, esses marginais seduziram quase a totalidade dos habitantes da favela, e, ultrapassando os limites do narcotráfico e adquirindo tenebrosos tentáculos mafiosos, comandavam todas as atividades lucrativas exercidas no local, como a venda de gás, água, sinal clandestino de TV a cabo, venda e aluguel de imóveis etc. Pensem no lucro obtido quando 10 mil casas (por baixo) pagam mensalmente 35 reais para ter seu “gatonet”, fora os caça-níqueis, a venda de bebidas, a quadra da escola de samba de Vila Isabel, os shows de artistas famosos...
Muito dinheiro roal nas comunidades, muito mesmo, e existem autoridades interessadas na continuidade desse estado marginal.
Nessas comunidades, currais eleitorais são formados, e somente aqueles que colaboram com os criminosos são autorizados a fazer campanhas pelas vielas.

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Desde sempre, a política carioca caminha em paralelo com os interesses do jogo do bicho, da venda de drogas (...)


Rubem L. de F. Auto         


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