Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“O visual das favelas cariocas nos anos 1970, 80, era bem diferente
de agora. Não se via a proeminência de antenas parabólicas e ares-condicionados
brotando pelas janelas, e sim uma extrema condição miserável e de abandono, que
fatidicamente traria um sentimento de repulsa e revolta contra os moradores do “vale
encantado”. A incrível má distribuição de renda é ainda mais gritante quando se
percebe que, enquanto o seu filho chora de fome, um sujeito passa com um carro dez
vezes mais caro do que seu barraco, e o crime foi o produto dessa equação
desastrosa. Roubos, seqüestros e, principalmente, tráfico de drogas encontraram
um terreno fertilíssimo para florescer e se estabelecer. Ajudados pela
geografia do bairro, que dispõe de uma bela e extensa cadeia montanhosa,
perfeita para abrigos e esconderijos, os criminosos estabelecem verdadeiros
feudos sob o jugo de sua dominância violenta e inquestionável. Nos morros da
Tijuca, eles determinavam as leis, os horários, os feriados, controlavam o
comércio em geral, e a assistência de serviços públicos só era possível
mediante sua autorização prévia. Tinham normas estritas quanto à conduta dos
moradores, que eram proibidos, entre outras coisas, de falar com o polícia. Se algum
marido bêbado dentro da favela batesse em sua mulher, os traficantes resolviam.
Se algum bandidinho roubasse a casa de alguém, possivelmente era condenado à
morte. Devia-se a alguém, tinha de pagar, e por aí vai.
Percebendo que o seu domínio, mesmo sendo imposto pela força
das armas, só seria possível com a conivência da maioria integrante da
comunidade, começaram a prestar um interesseiro assistencialismo aos mais
miseráveis, aproveitando o imenso vácuo deixado pelo estado até mesmo nas
questões mais básicas, como saneamento e fornecimento de energia elétrica. Com
algumas idéias ainda remanescentes do período da Ilha Grande, os primários da
Falange Vermelha experimentavam uma atrapalhada tentativa de “revolução”
contra sistema, que simplesmente
ignorava os favelados, revolução esta seria bancada com o lucro da venda de
drogas e demais ramificações criminosas.
(...)
Exatamente na divisa com o 1º Batalhão, o drama começava
pelo morro do Turano, que, por ser muito extenso, tinha seu território dividido
com o batalhão vizinho. Lá, a cadeia montanhosa toma forma e começa a avançar
bairro adentro. Do Turano, a colina se divide por uma parca vegetação até a
favela da Chacrinha, também dominada pela mesma facção, o Comando Vermelho.
Essas duas comunidades tinham um histórico recente de forte enfrentamento com a
polícia, principalmente o Turano, mas, na chegada de Rafael, os traficantes já
viviam em um clima mais pacificador que beligerante, e o poderio militar estava
abalado por causa das freqüentes operações que normalmente resultavam em baixas
nos seus paióis de armamentos. Melhor do que brigar era negociar, e uma
sintonia entre policiais atuantes na área e bandidos estava sendo orquestrada.
A praga então eram os “bondes do 157” – grupo e bandidos
armados que desciam das favelas e carros ou motos e cometiam roubos em série -,
que pululavam pelas ruas. Assaltantes por orgulho, essa raça fazia e acontecia
nas barbas das autoridades, matando muito mais gente do que qualquer incursão
policial. Matavam pelo carro, pela bolsa, pelo relógio, por esporte. Esse
animal era comumente encontrado em qualquer morro, mas os do Turano eram particularmente
problemáticos devido à crueldade e petulância.
(...)
Bom, continuando o trekking: passando pela Chacrinha e
tomando uma trilha agora mais espessa, com uma vegetação hostil e muito
providencial como esconderijo, à frente se encontra morro do Salgueiro, que também era povoado e
dominado pelos criminosos do Comando Vermelho. Suas cercanias, como a rua dos
Araújos e a do Bispo, a despeito de estarem fora da comunidade, sofriam forte
influência do grupo criminoso, sendo que o patrulhamento ali já era de alto
risco.
Havia nessa comunidade tijucana um baile funk que ganhou
notoriedade depois do lançamento do hit “Salgueiro é o caldeirão” pelas rádios
especializadas, e seu público aumentou impressionantemente, trazendo à favela
inclusive celebridades, como artistas e jogadores de futebol, calorosamente
recebidos pelo dono do morro. No enfrentamento, o traficante era fraco,
preferindo atirar na polícia só para dar tempo de se esconder e entocar drogas
e armas. Além dos bandidos habituais, os ladrões de carga faziam dali um
entreposto para armazenamento e distribuição de cigarros, bebidas,
eletroeletrônicos etc.
Depois do Salgueiro, (...), chegada ao morro da Formiga.
Cercada pela mata por ambos os lados, essa área representava uma fortificada
base de apoio e de interligação entre Borel e Salgueiro, sendo muito usada
também como pouso para bandidos que fugiam pela rua Conde de Bonfim, caso se
encontrassem em dificuldade após a prática de algum assalto naquela área.
(...)
Atravessando a Conde de Bonfim, um pouco mais à frente do
local onde terminam as casas da favela, fica a entrada da Indiana, um dos
principais acessos ao Borel. Um dos mais antigos morros dominados pela facção
criminosa, cujo “dono” (Misaías do Borel, que, mesmo preso há muitos anos,
continua a exercer sua liderança) é considerado um dos cabeças da organização,
já havia dado muito trabalho para a polícia em tempos passados. (...) embora o
atual “patrão” (um tal de Robocop, sobrinho de Isaías) quisesse distância de
problemas com a polícia, sempre que se fazia necessário dar uma porrada em
alguém, lá iam os patamos bater um pouquinho no Borel.
Rua São Miguel era passarela
para os marginais, que dominavam um ponto chamado “Laje das Kombis”, o que
tornava o patrulhamento nesse trecho possível apenas durante o dia.
(...)
Separado do Borel por uma sutil barreira natural composta
por pouca vegetação, o morro da Casa Branca era um dos poucos estranhos no
ninho. Pertencia à facção “Amigos dos Amigos”, ou simplesmente ADA, e sofria
constantes tentativas de invasão por pare dos inimigos vizinhos. Não sei bem ao
certo como, mas, juntamente com o morro da Cruz, uma extensão dos seus
domínios, resistiu às investidas e manteve seu território. O Casa Branca e o
Cruz formavam uma dupla atrevida e inconveniente, tanto para os criminosos
rivais quanto para a polícia, pois se valiam sempre de surpresa para atacar e
tentar infligir algum dano aos seus contendores.
(...)
O Andaraí (morro homônimo ao bairro), à época de Rafael no
6º Batalhão, já não era nem sombra dos seus tempos áureos. Anteriormente, a
qualidade do pó dessa favela era tão famosa e festejada que muitos vinham de
fora para prestigiar a mercadoria cobiçada. Filas enormes de viciados se
formavam na rua Caçapava, e as patrulhas faziam a festa com os gansinhos dos
mais variados naipes no bolsos. Como o morro vendia muito, ganhava muito
dinheiro, consequentemente a fama aumentava, o que obrigou o Comando Vermelho a
dispensar uma atenção especial quanto à segurança da favela. Com a aquisição de
armamentos mais sofisticados e poderosos, o morro passou a ser cada vez mais
temido e respeitado; porém, fazendo valer a máxima tão comum aos que não têm
estrutura para a grandeza, o sucesso ali foi fatal. Empolgados com a força,
calcada principalmente no poder da pólvora, os bandidos deixaram o sucesso lhes
subir a cabeça e sempre que podiam atiravam nas viaturas do 6º BPM. Incursões
eram raivosamente repelidas, e as baixas entre os policiais não eram raras.
Ostentação, arrogância, exagero. Os ladrões abandonaram as pistolas e passaram
a fazer seus arrastões com fuzis e granadas, e estava claro que algo precisava
ser feito. Pois bem, o coronel Málvaro, talvez o mais digno e competente
oficial de toda a Polícia Militar (certamente por isso nunca foi indicado para
ser comandante-geral), foi designado para colocar ordem em casa. Sob seu
comando, uma guarnição que estava há muito tempo “fechada” e que o acompanhava
para onde quer que fosse, os temidos “galácticos”, ficou encarregada de
destruir o Andaraí após um determinado acontecimento. Dizem que, em certo
domingo, uma guarnição do GAT (Grupamento de Ações Táticas) ficou encurralada
na Flor de Mina, uma das localidades do Andaraí. Furiosos pelos recentes
ataques ordenados pelo coronel, os bandidos não pretendiam deixar que aquela
guarnição saísse dali inteira. O fogo estava cerrado, a munição dos policiais
acabando, as viaturas que vieram em auxílio não conseguiram se aproximar e as
granadas explodiam cada vez mais perto. Após uma manhã e uma tarde inteira sem
conseguir retrair, o oficial de dia fez um contato desesperado com o comandante
do batalhão e relatou o que estava acontecendo, perguntando se tinha
autorização para chamar o BOPE. O coronel Málvaro, ele mesmo um caveira, foi
taxativo em sua determinação: não era para chamar o BOPE “porra nenhuma”, pois
ele já estava a caminho. E o coronel, com mais três galácticos, invadiu a
favela, resgatou a guarnição, matou uns vagabindos, apreendeu dois fuzis e
mandou o recado: “Avisa aos que restavam que eu vou botar esse morro abaixo!”.
E foi dito e feito.
(...)
Com o Andaraí cambaleante, algumas favelinhas relativamente
menores cresceram, mas nada que exigisse muita atenção das autoridades. Era o
caso das favelas que tomavam as encostas da serra Grajaú-Jacarepaguá, e que só
davam trabalho quando os 157 resolviam fechar a pista para roubar quem passava
de carro.
(...)
O Macaco era uma das mais preciosas jóias da ADA, com
identidade e comando próprios, não havendo uma ascendência hierárquica à qual
tivesse que se reportar. Essa independência fazia com que os integrantes da
quadrilha fossem extremamente cuidadosos com seu território, soldados
orgulhosos se sua função paramilitar. A extensão dos domínios da favela era a
maior entre todas as comunidades da área, o que exigia um esquema de divisão de
atribuições singular e a mais servil e ferrenha lealdade dos moradores, desde
muito cedo doutrinados não pelo medo, mas pela identificação com os marginais.
Duas figuras exerciam o domínio sobre esse exército de
vagabundos: Scooby e Borrof. Funcionava da seguinte forma: se hoje a carga de
drogas vendida pertencia a um deles, no dia seguinte era a vez do outro,
alternando assim o recolhimento do lucro obtido. Scooby contava com a ajuda de
outro bandido, o Bebezão, para gerenciar os negócios e supervisionar a
segurança, e Borrof delegava essa função para o LG, seu primogênito. Com essa
estrutura a la Cosa Nostra, esses marginais seduziram quase a totalidade dos
habitantes da favela, e, ultrapassando os limites do narcotráfico e adquirindo
tenebrosos tentáculos mafiosos, comandavam todas as atividades lucrativas
exercidas no local, como a venda de gás, água, sinal clandestino de TV a cabo,
venda e aluguel de imóveis etc. Pensem no lucro obtido quando 10 mil casas (por
baixo) pagam mensalmente 35 reais para ter seu “gatonet”, fora os caça-níqueis,
a venda de bebidas, a quadra da escola de samba de Vila Isabel, os shows de
artistas famosos...
Muito dinheiro roal nas comunidades, muito mesmo, e existem
autoridades interessadas na continuidade desse estado marginal.
Nessas comunidades, currais eleitorais são formados, e
somente aqueles que colaboram com os criminosos são autorizados a fazer
campanhas pelas vielas.
(...)
Desde sempre, a política carioca caminha em paralelo com os
interesses do jogo do bicho, da venda de drogas (...)
Rubem L. de F. Auto
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