Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Um desses burros de cigano para bem ao lado do banco onde
Rafael trava seu exorcismo mental. Abre o armário, joga sua pistola lá dentro e
tira discplicentemente do bolso da gandola do mugue um “paco” de dinheiro: “Aí,
fitão, pega logo aqui teu pedaço que eu vou meter o pé...”, grita para o
companheiro de serviço que estava no corredor de armários ao lado. O cordão
tilitando, a pistola jogada no armário, o dinheiro tirado de propósito na
frente do recruta, tudo para lhe causar inveja.
(...)
Todos falam gírias, como se estivessem dentro de um boteco
ou de uma boca de fumo. Fenômeno esquisito esse. O assunto principal ali é
dinheiro, sempre. Uma pratinha aqui, um botezinho ali, o importante é sair de
serviço com algum no bolso.
(...)
Durante todo o dia serviu e protegeu, um calor danado e ele
lá, correndo atrás de pivetes e bandidinhos, sem ninguém que perguntasse ao
menos se ele queria uma água ou um guaraná. Seus companheiros de turma já
estavam avançados no “módulo” em que são ministradas as instruções de como
pedir as coisas aos comerciantes da área patrulhada, mas ele morria de vergonha
de se insinuar para o português, que já olhava atravessado quando via um
meganha entrando em sua padariazinha bonitinha, de riquinho da Zona Sul. A recrutada
não perdoava ninguém! Até o escravo que carregava os botijões de mate nos
lombos, como um camelo, tinha que deixar um copinho toda vez que passava.
(...)
Rodou pelos batalhões do Leblon, Recreio dos Bandeirantes e
Copacabana, e percebeu como a forma de interagir com a população pode variar
conforme a região a ser patrulhada. De acordo com os mais antigos, as áreas da
Zona Sul são habitadas pelas mais diversas autoridades, que se misturam ao povão
nas areias escaldantes da praia. Juízes, desembargadores, políticos e artistas
em geral desfilam pelas calçadas e ciclovias, fazendo seu jogging vespertino
com freqüência, o que demanda certo resguardo sempre que o PM é solicitado a
dar alguma orientação sobre onde estacionar, ou se cachorros podem ficar na
praia.
(...)
Os únicos excessos permitidos na área da nobreza eram
aqueles perpetrados em favor do bem-estar dos moradores e turistas
endinheirados. Bater no mendifo que dorme na frente do prédio, chutar as
crianças pedintes em portas de restaurantes, expulsar flanelinhas e, claro,
caçar incansavelmente os esfomeados ladrõezinhos da Cruzada São Sebastião e do
Vidigal.
(...)
Guardavam o equipamento de serviço em uma cabine e passavam
a tarde inteira na água e na areia, visualizando quem seria o alvo da vez. No Posto
Nove é muito difícil dar o flagrante em um viciado, porque assim que alguém vê
a polícia se aproximando dá logo o alarme, criando tempo hábil para se
desfazerem da maconha ou do que mais estiverem usando. Com essa tática de
espionagem, os recrutas tinham a vantagem de observar como eram escondidos os
baseados, e aí então era só chamar o resto da equipe e... pau no maconheiro!
Para essas empreitadas, juntavam-se sempre alguns soldados antigos com seus
respectivos bolas-de-ferro, que assimilavam as novas instruções enquanto os
antigos achacavam os viciados pegos de calças arriadas.
(...)
Por mais que se indignassem, nesse ponto a extorsão era
vantajosa, porque tirava o dinheiro que seria dado ao tráfico, ao mesmo tempo
em que mexia com uma coisa que doía no viciado: o bolso. Todos os maconheiros,
do Leme ao Pontal, já sabem que não ficarão presos por serem usuários; então,
pagam apenas para não passar a vergonha de serem conduzidos em uma viatura da
PM. Invariavelmente, ficavam com a droga após a extorsão, pois tinham de ir
embora felizes e satisfeitos, e tirar o dinheiro e a droga de um “ganso” é a
fórmula perfeita para ser denunciado.
(...)
Playboys da Zona Sul... Fumam, cheiram, brigam, e depois se
tornam os donos da coroa, o high-society carioca. Não se engane: as leis
continuam sendo feitas para beneficiar apenas alguns poucos, e salve-se quem
puder!
(...)
Ao lado das pedras do Arpoador, uma trilha leva a um ponto
de encontro de homossexuais. Era para ser um mirante, mas o mato que cerca o
local serve também para esconder aqueles que têm o fetiche de relacionar-se
sexualmente em locais públicos com desconhecidos.
- Fita, vamos lá em cima ver se tem algum viado se pegando
no mirante? – o antigo perguntou para Rafael, que tomou um susto.
Foram pela trilha em silêncio. No caminho, várias camisinhas
e pontas de bagulho espalhadas pelo chão serviam de tapete.
Sorrateiramente, a dupla de homens da lei incursionou praça
adentro com a intenção de surpreender alguém, só que quem se surpreendeu foi
Rafael, e não com a imaginada cena sodomita que lhe causaria náuseas, mas com
outra no mínimo inusitada: um homem branco, com a bermuda arriada até os
calcanhares, jazia debruçado em uma das mesas, com a cabeça virada para o lado
oposto. De pé, bem atrás dele, um adolescente negro, magricelo, parecendo um “cracudo”,
ainda ajeitava os seus trapos, que faziam as vezes de calças. Ele tomou um
susto ao perceber a polícia tão perto, arregalando os olhos a tal ponto que
parecia que iam cair da cara. A carteira e a máquina filmadora do otário com o
rabo para o alto ainda estavam em cima do banquinho, a um braço de alcance do
michê fedorento.
Ele saiu tropeçando, todo atrapalhado, pelo mato, e Rafael
gritando: “Para, porra! Para aí, caralho...”. Foi quando Gomes fez dois
disparos que ecoaram seco na mata. O marginal parecia um tatu! Largou as
calças, a carteira e a máquina para trás, e saiu mato adentro, pelado.
(...)
O camarada tinha vindo de São Paulo para participar de um
congresso médico que iria acontecer durante o final de semana em um famoso
hotel da orla de Copacabana. A esposa tinha ficado em casa com a filhinha
recém-nascida, e era a primeira vez que ele vinha ao Rio de Janeiro. Estava
encantado com aquele calor, aqueles corpos viris e bronzeados, aquele clima de
libertinagem local. Tinha 39 anos mas aparentava menos. Era alto e bem-cuidado,
de forma que fez sucesso com a galerinha GLS da areia. Apesar dos conselhos
para se cuidar, para não sair com qualquer um, se encantou com o vendedor de
picolés adolescente, e o seduziu com a promessa de 50 reais por uma enrabada e
uma mamada.
Depois de praticar sexo oral no menor, se virou para se acomodar
na mesinha e não percebeu quando a pedrada veio em direção a sua nuca.
(...)
- Seguinte, meu chefe – Gomes começa sua atuação -, o menor
que currou o senhor tá agarrado lá embaixo, ele vai segurar o roubo, só que vai
ter uma piquinha pro senhor também... a exploração sexual de menores...
(...)
- Cinco mil? – exclama o doutor, espantado com o valor
pedido para não dar prosseguimento à ocorrência.
- Mas isso é muito dinheiro, eu não tenho isso tudo!
(...)
Para isso teria de devolver a carteira do infeliz, para que
ele pudesse correr atrás do dinheiro, e inventar a conversinha de que o menor
estava detido que tinham que ir para a delegacia; agora, o próximo passo era
receber a quantia acertada pela extorsão, que caiu de cinco mil para mil e
quinhentos reais.
(...)
Rafael pegou o dinheiro sem contar, meteu no bolso e
entregou a máquina para seu interlocutor sem dizer uma palavra sobre o que
acabara de ouvir.”
Rubem L. de F. Auto
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