Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Na fábrica de soldados da Polícia Militar do Estado do Rio
de Janeiro, quem dava mole era bundão. O sistema estava em busca deles, dos
futuros assassinos do estado, das novas engrenagens da máquina repressiva: os
recrutas do CFAP.”
(...)
“Um cidadão, ciente de que naquele dia distribuídos os RGs
dos aprovados, entrou com os candidatos e se misturou a eles. Aguardou um nome
qualquer ser chamado algumas vezes e, ao perceber que a pessoa havia desistido,
gritou:
- Eu!
Uma simples verificação dos documentos pessoais na hora da
entrega do documento desmascararia o impostor, mas a preocupação da major
Civilianos em demonstrar sua pedante arrogância e em rebaixar quem estava ali
para trabalhar, não para ser humilhado, era maior. A fraude só foi descoberta,
pasmem, dois meses depois. O camarada já tinha ganhado farda e tudo. O pobre
coitado foi levado para a delegacia e lá assumiu tudo, dizendo que seu sonho era
ser policial militar. Não foi autuado, nãom sei porquê. Deve ter sido para que
a promoção da major não ficasse arranhada.”
(...)
“Um recruta sentado bem ao lado começa a puxar assunto com
ele. Rafael responde:
- Tranquilo. Tá nervoso?
- Mais ou menos... Fiquei sabendo que no primeiro dia eles
ralam a gente um pouco.
- É?
- Pois é. Corrida, porrada... Uma pressãozinha pra ver se
alguém vai peidar.
- Pô, mas não mandaram trazer nem roupa pra correr!
- É, cara... vamo vê.
Esse tipo de apreensão era comum à maioria dos que estavam
ali para o primeiro dia de recrutamento. Mais uma dissonância. O treinamento e
a formação do policial devem ser voltados única e exclusivamente para o
exercício das funções, ou seja, prestar serviço à população. Militarizar o
serviço policial é confundir sua finalidade; afinal, esses soldados não são
treinados para a guerra (ao contrário do que pensam os recrutinhas ao
ingressarem na corporação), mas sim, para policiar.”
(...)
“Só para começar, o termo “recruta” não deveria ser aplicado.
Recruta é no Exército, na Marinha. Na polícia o camarada vai trabalhar
diretamente com o bêbado num dia e com o juiz no outro, e o jogo de cintura que
terá de aplicar não combina com a rigidez da formação de um simples conscrito.”
(...)
“O que existe é, mais uma vez, um programa para mascarar a
ineficácia do sistema deformação policial militar. As aulas de direitos humanos
são superficiais, e as de direito criminal, civil e administrativo,
inexistentes. Como se pode formar um policial sem lhe ensinar o básico das
leis? Sem um pouco de filosofia, sociologia?
A princípio, só uma lei é observada com atenção: não roube,
espanque ou mate se alguém estiver vendo ou filmando. De resto, pode tudo.”
(...)
“Estar sentado aguardando o RG era a senha para uma vida de
aventuras e riscos, o que é verdade, mas o inimigo do policial não usa
uniforme, não obedece a uma bandeira, não tem um ideal. É um homem comum,
alcoolizado, ou um mendigo roubando fios de cobre para vender e comprar algo
para comer, ou o mais sanguinário dos assassinos da Tijuca. Isso é muito
diferente de um teatro de guerra, em que o soldado não tem tanta necessidade de
analisar a conjuntura da situação na qual está imerso. Então, por que não
desmilitarizar a polícia de uma vez, e aí, com um currículo voltado somente
para a parte profissional, sem essa coisa inútil de ficar marchando e prestando
continência, atentar exclusivamente para a eficácia do policiamento?
Simples: lobby.
Sem o militarismo, o que seria feito dos coronéis? E dos
próximos?
A sociedade não tem a menor noção dos poderes atribuídos a
esses homens, que se agarram à condição dada pelo estado e fazem dela uma forma
cruel e eficaz de dominação. Alguns agem como verdadeiros senhores feudais,
cercando-se de proteção militarizada, loteando áreas de atuação, usando as
estrelas como condões mágicos em um mundo perfeitamente influenciável.”
(...)
"No batalhão do coronel, só serve quem ele quer, onde ele
quer, no dia que ele quer.
Ele monta sua guarnição de confiança para fazer os recolhes;
jogo do bicho, clínica de aborto, tráfico de drogas, cooperativas de táxi,
transporte alternativo, baseamentos de viaturas vendidos, ferros-velhos,
prostituição, associação comercial, estabelecimentos bancários, tudo dentro da
área do batalhão vem até as mãos dele. Ele se reúne em cafés da manhã comunitários
com os comerciantes, banqueiros, bicheiros, traficantes, e aí define como serão
as formas de policiamento na sua área de atuação.
Perto do Natal, o chefe de segurança do shopping (que também
é coronel reformado) pede, e lá está! Mais uma viatura baseada das 19h até o
fechamento das lojas. Perto da faculdade, baseamento até as aulas terminarem.
O sistema de venda de policiamento é feito de forma a dar
impressão de legitimidade às ordens do comando, e passa despercebido à maioria
das autoridades. O coronel se torna um ser onipresente, onisciente. Se alguém
faz o que não deve, pega seu arrego, por exemplo, ou mexe nos taxias sem
autorização, ou simplesmente mata um vagabundo arregado, sabo o que acontece?
Bem, quando se dá conta, o desavisado está lá em Bom Jesus de Itabapoana,
atendendo ocorrência de roubo de galinha.”
Rubem L. de F. Auto
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