Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
Até hoje, mais de sete anos depois, ninguém sabe quem foram
os autores do homicídio do cabo Manoel. E por não estar de serviço no momento
de sua morte, a viúva não teve direito à pensão integral nem à indenização do
estado. Parece brincadeira, mas é sério.
Se o policial for morto durante a folga, a família não tem o
benefício do chamado “ato de serviço”. Esse direito compreende apenas o serviço
ordinário e o trajeto de ida e volta até o batalhão. Para ter alguma coisa, a família
do mango tem que brigar na justiça, provar que a morte foi em decorrência da
função de policial militar.
Não, os recrutas não aprendem isso nas aulas do curso de
formação.
(...)
A animosidade do policial com relação ao bandido carioca é
proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa. Esse ciclo de violência e
morte se renova dia a dia, com a repetição de atos de barbárie de ambos os
lados, mas sua origem é culpa do aparato estatal.
Durante os anos de ditadura, o ápice da repressão que o país
já viveu, a Polícia Militar tinha atribuições dissonantes à sua real função e era
empregada como ferramenta dos órgãos repressivos. Com essa prerrogativa, ele aprendeu
a torturar, seqüestrar, “embuchar” e até matar com extrema eficiência e funcionalidade;
mas, com a volta da democracia, esses “poderes” deveriam ter sido extintos,
certo? É, mas nenhum general foi aos batalhões, nenhum curso de reciclagem foi
formulado, nada. Enquanto as tropas do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem
é que continuou nas ruas? A PM.
(...)
Tudo foi jogado em cima de homens semianalfabetos, mal-pagos
e mal-preparados. Naquela época, para ser PM, o camarada só precisava saber
quanto eram dois mais dois e assinar o próprio nome.
(...)
Quando entravam em uma favela, então, o marginal já sabia
que, se fosse preso, era cemitério, e não cadeia. Então, para que se render?
Foi baseado nesse pensamento que os criminosos iniciaram as
articulações para montar verdadeiros arsenais e assim protegerem seus domínios
e suas vidas. Se acaso pegassem um policial dando mole, descontavam na mesma
moeda a judiaria feita com o irmãozinho fulano de tal.
(...)
Cada uma das poucas situações descritas aqui anteriormente
tem o poder de devastar a bússola moral que guia os atos de quem vive, e de
quem vai viver, no limite da loucura, os atuais e os futuros homens da lei. Ou
será mera coincidência que o estado com o maior índice de policiais
assassinados seja também o que detém em suas cadeias o maior número de
policiais presos por crimes contra a vida? Não dá para dissociar a violência
cometida contra os policiais daquela que é perpetrada pelos mesmos. Partindo
dessa idéia, estava pronto o artifício demoníaco que plantaria definitivamente
na cabecinha do pretendo aspirante a Frank Castle o norte de sua missão como
policial. Morte.
(...)
Foram cerca de sete meses (pouco mais, pouco menos), apenas
sete meses para doutrinar um homem e aguardar e decidir se vai realmente puxar
ou não o gatilho e matar alguém. Sete meses para que ele adquirisse a
discricionariedade de quando deveria usar um fuzil ou uma pistola, ou uma
caneta. Para aprender que, na pista, nada deve ser pessoal, nunca. Para
entender que não se deve odiar os inimigos (parafraseando o incomparável
Michael Corleone), pois isso afeta o julgamento tornando-nos passionais, a
última coisa que um PM deve ser quando de serviço pelas ruas.
(...)
Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum recruta sai do CFAP pronto
para empunhar uma arma no meio da rua.
Mas é isso que eles querem. Jogam os jovens para serem
massacrados nas viaturas baseadas, nos assaltos, nas incursões, nas folgas, nos
tribunais, nas cadeias... Afinal de contas, no fim do ano tem outro concurso, e
mais duas mil vagas aguardam a próxima leva de claudicantes gnus.
Rubem L. de F. Auto
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