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quinta-feira, 16 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 17


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

"As coisas corriam bem na Companhia e no Batalhão. O sargenteante recebia a mensalidade sempre em dia, a supervisões não perturbavam muito e o comando havia mudado. O novo coronel trouxe uma penca de policiais a tiracolo,  muitos deles para comporem novos GAT, e os ventos estavam prestes a mudar para a vagabundagem da área. Sempre que ocorriam essas trocas, era comum o novo comandante botar pressão no tráfico, para valorizar o passe na hora de fechar o arrego. Os bandidos sentiram o clima de mudança e não se fizeram de rogados, caíram pra dentro.

(...)

Rafael estava entediado e nem chiou quando Vicente sugeriu uma parada na C6/6, que ficava próximo ao Maracanã.
Bateram na porta de vidro fumê da cabine e foram recebidos pelo sargento, que permanecia trancado lá até as sete da manhã.
A cabine estava muito gelada, resultado do ar-condicionado dado por um órgão da Petrobras que funcionava num prédio bem ao lado.
Assim que é aberta a porta de vidro, um carro vem piscando os faróis na direção de Rafael, de pé diante da cabine. Ele assume posição de tiro defensiva na direção do auto, que acende a luz interna e revela apenas um ocupante em seu interior, com as mãos espalmadas sobre o volante.
- Seu policial, tem um cara caído lá atrás, acho que ele foi atropelado, estava assaltando e...
Rafael faz Vicente parar seu expurgo (cagada) e colocar as calças correndo para verificar o fato. De acordo com o solicitante, o local onde o suposto bandido atropelado estaria ficava próximo à cabine, em uma rua escura e que realmente era ponto conhecido por ser perigoso.
Ao perceberem a escuridão da reta, os policiais foram tomados por um momento de dúvida: seria uma emboscada? Lá na frente, próximo a uma esquina, Vicente avistou uma coisa se mexendo junto ao meio-feio.
Os dois policiais desembarcam da viatura e progridem pé ante pé, confiantes no relato do cidadão de que se tratava de um bandido, o que pedia cautela na aproximação. Bermuda e tênis de marca, camisa de time de futebol estrangeiro, boné caído no meio do caminho. O jovem negro tinha todos os indicativos de um 157 que tinha se dado mal.
Revistaram o condenado, que se entregou e já não tentava mais alcançar a calçada, esperançoso de conseguir ali seu padrão e o providencial socorro. Não encontraram nada com ele, nem uma arma, identidade, celular, nada.
- Porra, qual é a desse cara, Vicente?
- Esse maluco é “tralha”, Peu, esse maluco é “tralha”...
- Mas ele tá sem nada em cima. Aí é foda... O PI foi embora, nem testemunha tem mais, vamos socorrer ele logo.
- Peraí, deixa eu só dar uma busca pela rua...
Vicente percorre o caminho inverso, iluminando cada centímetro do asfalto por onde poderia ter acontecido o choque, e eis que encontra a prova que faltava. A cerca de 15 metros de distância de onde o bandido estava, ele encontro a arma, uma Lamma cal. 45 com 12 munições intactas.
- Aí Rafael, é bingo, hein...
O cabo lhe mostra a arma de longe e Rafael demora alguns segundos para entender. Quando a ficha cai, rapidamente todo o seu ódio aflora pelos olhos, injetados de sangue e ira, e pela primeira vez o bandido caído o olha de volta.
Rafael passa o fuzil em bandoleira para as costas e saca a .40, coloca o cão para trás e aponta na cabeça do moribundo. Vicente se aproxima em silêncio e coloca a pistola .45 na cintura, consentindo com a cabeça e aguardando a execução. O bandido, quando percebe que sua sentença foi proferida, se desespera, implorando por piedade. Emite grunhidos guturais, sufocados pelos fluidos que inundam suas vias aéreas, vomita sangue, agita-se e começa a se debater forte, arrasta-se para se agarrar nas pernas de seu carrasco usando as últimas forças...
Rafael empurra com a sola do coturno o ombro direito do homem prostrado a seus pés, para que a face dele fique bem exposta. Mira bem no meio da cara do jovem bandido e olha no fundo de seus olhos... Lembra-se de Sampoio, de Neves, de Borracha... Hesita por uns instantes... Atira.
Por reflexo, ao receber o impacto da bala, o bandido se levantou, mesmo com as pernas quebradas, arqueou bambo e desabou de novo, com a barriga para cima.
Rafael também se assustou quando viu o seu alvo levantando, estava certo de que o tiro tinha pegado, mas decidiu que ainda precisava efetuar mais um disparo. Sua vontade era a de descarregar a pistola em cima do corpo estrebuchante, mas como iriam apresentar a ocorrência, não poderia se exceder.
Rafael fica olhando nos olhos perdidos do bandido enquanto ele tenta em vão chamar o ar de volta, vendo a vida lhe escapar a cada nova tentativa, a cada grunhido.
Ao verificar que o fato havia se consumado, o comandante da guarnição começa a tomar as providências necessárias.
- Fica tranqüilo aí, Rafael, relaxa agora. É a primeira vez?
- É...
- Certo, certo... Agora deixa comigo, valeu? Só fala com os outros quando eu mandar, ok?
- Tranquilo...
Vicente se abaixa, pega em uma das mãos do defunto e a estica lateralmente na direção de um imenso muro de um terreno baldio à direita da viatura disparando a .45 com os dedos ainda mornos da vitima. Existe uma técnica que identifica se a pressão usada para premir o gatilho no momento do disparo foi feita quando o sangue já não circulava mais pelos membros, o que desmascararia facilmente uma farsa mal-orquestrada; então, é preciso pressa para que o cadáver não esfrie.
- ME ajuda aqui, vamos colocar ele no banco de trás, vai sujar a porra toda, mas não tem problema não.
A dupla acomodou o corpo deitado de qualquer jeito no banco traseiro e partiu em arrancada rumo ao Hospital do Andaraí:
- Maré meia, maré meia, 2187 aí com prioridade, correto? Socorrendo elemento baleado após troca de tiros com a guarnição, Hospital do Andaraí, informe si se copiado?
- Correto aí, 2187! Onde foi esse confronto aí?
- Próximo a C6/6, correto? Elemento efetuando assalto reagiu a abordagem policial e acabou alvejado, positivo?
- Guarnição intacta, comandante?
- Positivo, guarnição intacta!
- Correto, arma apreendida?
- Positivo.
- Parabéns pela ocorrência aí, companheiro, informe na delegacia.

(...)

Os auxiliares de enfermagem, os seguranças, os faxineiros, os médicos de plantão, todos se alvoroçam quando tomam conhecimento de que os meganhas estão trazendo mais uma pessoa para ser “socorrida”, mais um coitadinho de um bandido.
É muito comum ver menininhas aspirantes a auxiliares de enfermagem que ainda nem aprenderam a limpar uma bunda cagada, procurando por sinais de execução: “Olha, ele estava provavelmente deitado quando foi atingido... O que é que aconteceu, ele estava roubando alguém?”. “Você é o quê? Investigadora? Promotora? Então faz a porra do seu trabalho logo e tira esse verme da minha patrulha que eu tenho mais o que fazer, não fode!”

(...)

Um médico mais cascudo (velho) examina os sinais vitais só para se certificar de que o homem está realmente morto. A falta de documentos impossibilita  identificação do suspeito e, sem ter a quem comunicar o óbito, o corpo fica ali na emergência, coberto por um lençol, aguardando a condução para o Instituto Médico Legal.
Outra viatura sobe a rampa de acesso ao pátio principal do hospital.
- Aí, show de bola,hein? Quem foi que “fez” ele?
- Pode falar, Rafael, eles são de confiança, aqui é papo de polícia!
- Fui eu.
- Boa, garoto! – disse o sargento Ricardo, vulgo Beiçola – Uma na cara e um no peito, bem profissional.
- “Fizeram” a mão dele?
- Fiz, fiz... – diz Vicente – tá tudo certo, agora é só fechar lá na DP. Sabe quem é que está de plantão?
- Sei sim, é uma delegada, uma tal de Cristiana Amourinho. Cuidado com aquela piranha lá, ela é a maior filha da puta! Esses dias aí ela enrolou uma ocorrência do “A”, deu a maior merda, um atropelamento que acabou rendendo a madrugada toda. Aquela mulher é burra pra caralho, só passou na prova pra delegada porque dava pra um chefe da Polícia Civil...
- É mesmo? Então tá, deixa que eu enrolo essa arrombada quando chegar lá. Se ligou, NE, Rafael? Vamo combinar logo a nossa história...

(...)

- Porra, cara que “peção”! Vale uma prata... Não apresenta essa porra não, Peu, o papa Charlie (Polícia Civil) vai botar é na cintura e ficar pra ele se der mole. Vamo botar esta belzinha pra “rolo”, vai vender rápido...
- O senhor já tem quem compre?
- A rapaziada da milícia paga isso aqui mole!
- Quanto, mais ou menos? – interessa-se Rafael.
- Uns três e meio, quatro... Vamos ver lá na hora. Do valor que pagarem, vocês deixam 1.500 pra gente e dividem o resto entre vocês. É jogo pra todo mundo!



Rubem L. de F. Auto        

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