Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
"As coisas corriam bem na Companhia e no Batalhão. O
sargenteante recebia a mensalidade sempre em dia, a supervisões não perturbavam
muito e o comando havia mudado. O novo coronel trouxe uma penca de policiais a
tiracolo, muitos deles para comporem
novos GAT, e os ventos estavam prestes a mudar para a vagabundagem da área.
Sempre que ocorriam essas trocas, era comum o novo comandante botar pressão no
tráfico, para valorizar o passe na hora de fechar o arrego. Os bandidos
sentiram o clima de mudança e não se fizeram de rogados, caíram pra dentro.
(...)
Rafael estava entediado e nem chiou quando Vicente sugeriu
uma parada na C6/6, que ficava próximo ao Maracanã.
Bateram na porta de vidro fumê da cabine e foram recebidos
pelo sargento, que permanecia trancado lá até as sete da manhã.
A cabine estava muito gelada, resultado do ar-condicionado
dado por um órgão da Petrobras que funcionava num prédio bem ao lado.
Assim que é aberta a porta de vidro, um carro vem piscando
os faróis na direção de Rafael, de pé diante da cabine. Ele assume posição de
tiro defensiva na direção do auto, que acende a luz interna e revela apenas um
ocupante em seu interior, com as mãos espalmadas sobre o volante.
- Seu policial, tem um cara caído lá atrás, acho que ele foi
atropelado, estava assaltando e...
Rafael faz Vicente parar seu expurgo (cagada) e colocar as
calças correndo para verificar o fato. De acordo com o solicitante, o local
onde o suposto bandido atropelado estaria ficava próximo à cabine, em uma rua
escura e que realmente era ponto conhecido por ser perigoso.
Ao perceberem a escuridão da reta, os policiais foram tomados
por um momento de dúvida: seria uma emboscada? Lá na frente, próximo a uma
esquina, Vicente avistou uma coisa se mexendo junto ao meio-feio.
Os dois policiais desembarcam da viatura e progridem pé ante
pé, confiantes no relato do cidadão de que se tratava de um bandido, o que
pedia cautela na aproximação. Bermuda e tênis de marca, camisa de time de
futebol estrangeiro, boné caído no meio do caminho. O jovem negro tinha todos
os indicativos de um 157 que tinha se dado mal.
Revistaram o condenado, que se entregou e já não tentava
mais alcançar a calçada, esperançoso de conseguir ali seu padrão e o
providencial socorro. Não encontraram nada com ele, nem uma arma, identidade,
celular, nada.
- Porra, qual é a desse cara, Vicente?
- Esse maluco é “tralha”, Peu, esse maluco é “tralha”...
- Mas ele tá sem nada em cima. Aí é foda... O PI foi embora,
nem testemunha tem mais, vamos socorrer ele logo.
- Peraí, deixa eu só dar uma busca pela rua...
Vicente percorre o caminho inverso, iluminando cada centímetro
do asfalto por onde poderia ter acontecido o choque, e eis que encontra a prova
que faltava. A cerca de 15 metros de distância de onde o bandido estava, ele
encontro a arma, uma Lamma cal. 45 com 12 munições intactas.
- Aí Rafael, é bingo, hein...
O cabo lhe mostra a arma de longe e Rafael demora alguns
segundos para entender. Quando a ficha cai, rapidamente todo o seu ódio aflora
pelos olhos, injetados de sangue e ira, e pela primeira vez o bandido caído o
olha de volta.
Rafael passa o fuzil em bandoleira para as costas e saca a
.40, coloca o cão para trás e aponta na cabeça do moribundo. Vicente se
aproxima em silêncio e coloca a pistola .45 na cintura, consentindo com a
cabeça e aguardando a execução. O bandido, quando percebe que sua sentença foi
proferida, se desespera, implorando por piedade. Emite grunhidos guturais,
sufocados pelos fluidos que inundam suas vias aéreas, vomita sangue, agita-se e
começa a se debater forte, arrasta-se para se agarrar nas pernas de seu
carrasco usando as últimas forças...
Rafael empurra com a sola do coturno o ombro direito do
homem prostrado a seus pés, para que a face dele fique bem exposta. Mira bem no
meio da cara do jovem bandido e olha no fundo de seus olhos... Lembra-se de
Sampoio, de Neves, de Borracha... Hesita por uns instantes... Atira.
Por reflexo, ao receber o impacto da bala, o bandido se
levantou, mesmo com as pernas quebradas, arqueou bambo e desabou de novo, com a
barriga para cima.
Rafael também se assustou quando viu o seu alvo levantando,
estava certo de que o tiro tinha pegado, mas decidiu que ainda precisava
efetuar mais um disparo. Sua vontade era a de descarregar a pistola em cima do
corpo estrebuchante, mas como iriam apresentar a ocorrência, não poderia se
exceder.
Rafael fica olhando nos olhos perdidos do bandido enquanto
ele tenta em vão chamar o ar de volta, vendo a vida lhe escapar a cada nova
tentativa, a cada grunhido.
Ao verificar que o fato havia se consumado, o comandante da
guarnição começa a tomar as providências necessárias.
- Fica tranqüilo aí, Rafael, relaxa agora. É a primeira vez?
- É...
- Certo, certo... Agora deixa comigo, valeu? Só fala com os
outros quando eu mandar, ok?
- Tranquilo...
Vicente se abaixa, pega em uma das mãos do defunto e a
estica lateralmente na direção de um imenso muro de um terreno baldio à direita
da viatura disparando a .45 com os dedos ainda mornos da vitima. Existe uma
técnica que identifica se a pressão usada para premir o gatilho no momento do
disparo foi feita quando o sangue já não circulava mais pelos membros, o que
desmascararia facilmente uma farsa mal-orquestrada; então, é preciso pressa
para que o cadáver não esfrie.
- ME ajuda aqui, vamos colocar ele no banco de trás, vai
sujar a porra toda, mas não tem problema não.
A dupla acomodou o corpo deitado de qualquer jeito no banco
traseiro e partiu em arrancada rumo ao Hospital do Andaraí:
- Maré meia, maré meia, 2187 aí com prioridade, correto?
Socorrendo elemento baleado após troca de tiros com a guarnição, Hospital do Andaraí,
informe si se copiado?
- Correto aí, 2187! Onde foi esse confronto aí?
- Próximo a C6/6, correto? Elemento efetuando assalto reagiu
a abordagem policial e acabou alvejado, positivo?
- Guarnição intacta, comandante?
- Positivo, guarnição intacta!
- Correto, arma apreendida?
- Positivo.
- Parabéns pela ocorrência aí, companheiro, informe na
delegacia.
(...)
Os auxiliares de enfermagem, os seguranças, os faxineiros,
os médicos de plantão, todos se alvoroçam quando tomam conhecimento de que os
meganhas estão trazendo mais uma pessoa para ser “socorrida”, mais um
coitadinho de um bandido.
É muito comum ver menininhas aspirantes a auxiliares de
enfermagem que ainda nem aprenderam a limpar uma bunda cagada, procurando por
sinais de execução: “Olha, ele estava provavelmente deitado quando foi
atingido... O que é que aconteceu, ele estava roubando alguém?”. “Você é o quê?
Investigadora? Promotora? Então faz a porra do seu trabalho logo e tira esse
verme da minha patrulha que eu tenho mais o que fazer, não fode!”
(...)
Um médico mais cascudo (velho) examina os sinais vitais só
para se certificar de que o homem está realmente morto. A falta de documentos
impossibilita identificação do suspeito
e, sem ter a quem comunicar o óbito, o corpo fica ali na emergência, coberto
por um lençol, aguardando a condução para o Instituto Médico Legal.
Outra viatura sobe a rampa de acesso ao pátio principal do hospital.
- Aí, show de bola,hein? Quem foi que “fez” ele?
- Pode falar, Rafael, eles são de confiança, aqui é papo de
polícia!
- Fui eu.
- Boa, garoto! – disse o sargento Ricardo, vulgo Beiçola –
Uma na cara e um no peito, bem profissional.
- “Fizeram” a mão dele?
- Fiz, fiz... – diz Vicente – tá tudo certo, agora é só
fechar lá na DP. Sabe quem é que está de plantão?
- Sei sim, é uma delegada, uma tal de Cristiana Amourinho.
Cuidado com aquela piranha lá, ela é a maior filha da puta! Esses dias aí ela
enrolou uma ocorrência do “A”, deu a maior merda, um atropelamento que acabou
rendendo a madrugada toda. Aquela mulher é burra pra caralho, só passou na
prova pra delegada porque dava pra um chefe da Polícia Civil...
- É mesmo? Então tá, deixa que eu enrolo essa arrombada
quando chegar lá. Se ligou, NE, Rafael? Vamo combinar logo a nossa história...
(...)
- Porra, cara que “peção”! Vale uma prata... Não apresenta
essa porra não, Peu, o papa Charlie (Polícia Civil) vai botar é na cintura e
ficar pra ele se der mole. Vamo botar esta belzinha pra “rolo”, vai vender
rápido...
- O senhor já tem quem compre?
- A rapaziada da milícia paga isso aqui mole!
- Quanto, mais ou menos? – interessa-se Rafael.
- Uns três e meio, quatro... Vamos ver lá na hora. Do valor
que pagarem, vocês deixam 1.500 pra gente e dividem o resto entre vocês. É jogo
pra todo mundo!
Rubem L. de F. Auto
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