Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“A animosidade contra os criminosos em geral já era latente
na cabeça dos jovens recrutas, bombardeados diariamente com notícias de
policiais assassinados. Eles estavam ansiosos para dar o troco. O serviço era
basicamente andar pela orla, caçando pivetes e coibindo os maconheiros à
beira-mar. Desarmados, de shorts e camisetas, apenas com cassetetes, não amedrontavam
muito os calejados bandidinhos, que volta e meia se aproveitavam dos turistas
distraídos com as belezas cariocas.
Vez ou outra estourava um corre-corre e, seguindo os vários
dedos apontados na direção do marginal em desabalada carreira, Rafael partia
como um paladino do oeste em perseguição ao faminto ladrãozinho. Uma vez, bateu
tanto em um esquálido que acabara de roubar uma filmadora das mãos de uma
turista gaúcha que ele cagou nas calças bem ali, em frente ao Posto Seis. Ainda
era dia claro, e a bermuda de tactel não conseguiu segurar as fezes, que
escorreram pelas pernas do moleque enquanto Rafael o algemava.
(...)
“O soldado “antigo”, que deveria estar ao lado de Rafael o
tempo todo, tinha ido pegar um dinheirinho com o flanelinha de seu setor e
agora chegava esbaforido:
- Ô, bola-de-ferro maluco, que é que houve? Peraí... esse
fedorento tá cagado? Cara, ele tá cagado!?
- É... mas ó, recuperei a filmadora! Agora é só chamar
alguém pra levar ele pra delegacia e fazer o flagrante!
- Que flagrante o quê, ô maluco! Quer ficar mofando na
delegacia, é? Eu tenho segurança ainda hoje, não posso passar da minha hora
não! Cadê a vítima, sabe onde ela está?
- Sei, tá lá perto da cabine.
- Então, vamos devolver essa joça pra ela.
- E ele?
- Traz esse vagabundinho também, bora!
(...)
Apesar de querer fazer a ocorrência de modo certo, até para
ganhar crédito junto aos instrutores, o sistema tem modos de fazer parecer um
tremendo otário quem cumpre as normas à risca.
(...)
Na praia, aprendeu sobre os efeitos do spray de pimenta
quando aplicado nos diversos orifícios do corpo humano. Dentro da boca e nos
olhos o desconforto era razoavelmente tolerável, e para os bandidos mais
abusados, que resistiam à prisão, uma sessão de tortura com borrifadas no
escroto e no ânus resolvia o problema da brabeza do malandro.
(...)
Socos no estômago são uma receita antiga, porém eficaz para
evitar marcas perceptíveis nos exame de corpo de delito. Em casos extremos,
foram adestrados a usar o bastão policial nas canelas, costas e braços, porém
evitando a região do crânio, que pode rachar se a porrada for muito forte.
(...)
Depois de correr atas de mais um infeliz até o canal do
Jardim de Alah, Rafael recuperou a mochila afanada de um jovem estudante e
levou tudo para a cabine onde o antigo estava descansando do almoço. Após a
coça, o sujeito foi liberado como se nada tivesse acontecido, porém, a vítima
não estava presente para pegar seus pertences de volta.
- Vamos dar uma olhada... Ih, cara! Celular, dinheiro... é o
“Bingo”!
- Mas, Gomes, a carteirinha de escola do garoto tá aí... tem
os telefones na agenda, não é melhor a gente fazer contato e devolver?
- Devolver? Devolver o quê? Tá maluco? Acha que vai ganhar
uma medalha, é? Não é assim que as coisas funcionam não, bola-de-ferro... Olha
, você deu sorte, pela primeira vez você vai sair com um dinheirinho do
serviço! O dono dessa mochila tá se lixando se você correu atrás dela, se
arriscando a tomar um tiro de bobeira! Já te falei pra não sair correndo assim,
não vou ficar de babá pra você não... Seguinte, hoje você vai aprender como
funciona a divisão do espólio de guerra entre parceiros.
(...)
- Tá com medo, bola? Fica com medo não, que atrai... relaxa
que tá tranquilo! É tudo comigo, eu sou o mais antigo, valeu? Toma aqui tua
prata! Vai ficar com a mochila?
- Eu não!
- Tem certeza?
- Não quero essa porra não, joga fora...
- Que jogar fora o quê! Amanhã eu to de serviço à noite, vou
guardar e dar pra uma piranhazinha novinha que fica por aqui... é,
bola-de-ferro, um boquetezinho de madrugada dá uma levantada na moral! Você tem
muito que aprender...”
Rubem L. de F. Auto
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