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sexta-feira, 10 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 5




Trechos do livro “Como nascem os monstros”:

“A animosidade contra os criminosos em geral já era latente na cabeça dos jovens recrutas, bombardeados diariamente com notícias de policiais assassinados. Eles estavam ansiosos para dar o troco. O serviço era basicamente andar pela orla, caçando pivetes e coibindo os maconheiros à beira-mar. Desarmados, de shorts e camisetas, apenas com cassetetes, não amedrontavam muito os calejados bandidinhos, que volta e meia se aproveitavam dos turistas distraídos com as belezas cariocas.
Vez ou outra estourava um corre-corre e, seguindo os vários dedos apontados na direção do marginal em desabalada carreira, Rafael partia como um paladino do oeste em perseguição ao faminto ladrãozinho. Uma vez, bateu tanto em um esquálido que acabara de roubar uma filmadora das mãos de uma turista gaúcha que ele cagou nas calças bem ali, em frente ao Posto Seis. Ainda era dia claro, e a bermuda de tactel não conseguiu segurar as fezes, que escorreram pelas pernas do moleque enquanto Rafael o algemava.

(...)

“O soldado “antigo”, que deveria estar ao lado de Rafael o tempo todo, tinha ido pegar um dinheirinho com o flanelinha de seu setor e agora chegava esbaforido:
- Ô, bola-de-ferro maluco, que é que houve? Peraí... esse fedorento tá cagado? Cara, ele tá cagado!?
- É... mas ó, recuperei a filmadora! Agora é só chamar alguém pra levar ele pra delegacia e fazer o flagrante!
- Que flagrante o quê, ô maluco! Quer ficar mofando na delegacia, é? Eu tenho segurança ainda hoje, não posso passar da minha hora não! Cadê a vítima, sabe onde ela está?
- Sei, tá lá perto da cabine.
- Então, vamos devolver essa joça pra ela.
- E ele?
- Traz esse vagabundinho também, bora!

(...)

Apesar de querer fazer a ocorrência de modo certo, até para ganhar crédito junto aos instrutores, o sistema tem modos de fazer parecer um tremendo otário quem cumpre as normas à risca.

(...)

Na praia, aprendeu sobre os efeitos do spray de pimenta quando aplicado nos diversos orifícios do corpo humano. Dentro da boca e nos olhos o desconforto era razoavelmente tolerável, e para os bandidos mais abusados, que resistiam à prisão, uma sessão de tortura com borrifadas no escroto e no ânus resolvia o problema da brabeza do malandro.

(...)

Socos no estômago são uma receita antiga, porém eficaz para evitar marcas perceptíveis nos exame de corpo de delito. Em casos extremos, foram adestrados a usar o bastão policial nas canelas, costas e braços, porém evitando a região do crânio, que pode rachar se a porrada for muito forte.

(...)

Depois de correr atas de mais um infeliz até o canal do Jardim de Alah, Rafael recuperou a mochila afanada de um jovem estudante e levou tudo para a cabine onde o antigo estava descansando do almoço. Após a coça, o sujeito foi liberado como se nada tivesse acontecido, porém, a vítima não estava presente para pegar seus pertences de volta.
- Vamos dar uma olhada... Ih, cara! Celular, dinheiro... é o “Bingo”!
- Mas, Gomes, a carteirinha de escola do garoto tá aí... tem os telefones na agenda, não é melhor a gente fazer contato e devolver?
- Devolver? Devolver o quê? Tá maluco? Acha que vai ganhar uma medalha, é? Não é assim que as coisas funcionam não, bola-de-ferro... Olha , você deu sorte, pela primeira vez você vai sair com um dinheirinho do serviço! O dono dessa mochila tá se lixando se você correu atrás dela, se arriscando a tomar um tiro de bobeira! Já te falei pra não sair correndo assim, não vou ficar de babá pra você não... Seguinte, hoje você vai aprender como funciona a divisão do espólio de guerra entre parceiros.

(...)

- Tá com medo, bola? Fica com medo não, que atrai... relaxa que tá tranquilo! É tudo comigo, eu sou o mais antigo, valeu? Toma aqui tua prata! Vai ficar com a mochila?
- Eu não!
- Tem certeza?
- Não quero essa porra não, joga fora...
- Que jogar fora o quê! Amanhã eu to de serviço à noite, vou guardar e dar pra uma piranhazinha novinha que fica por aqui... é, bola-de-ferro, um boquetezinho de madrugada dá uma levantada na moral! Você tem muito que aprender...”


Rubem L. de F. Auto

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