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quinta-feira, 16 de março de 2017

TREINAMENTO PARA MEFISTÓFELES – RECRUTAS DO DIABO – PARTE 14


Trechos do livro “Como nascem os monstros”:


“Toda vez que o cidadão tem um problema com o vizinho que estacionou em frente a sua garagem, ou com um assalto a sua residência, é ela (PM) que vai avaliar a situação primeiramente. (...) O solicitante liga para a polícia que, da sala de operações, coordena o repasse da ocorrência para o setor de RP correspondente. Apenas um fator é determinante para que os componentes das referidas guarnições tenham a possibilidade de lucrar com as desgraças alheias: a sempiterna tendência do carioca em querer se dar bem.
O cidadão está dirigindo seu automóvel pela avenida Rodrigues Alves quando, inesperadamente, um morador de rua atravessa seu caminho e não dá tempo de desviar. Talvez, se o motorista não tivesse bebido, até estivesse com os reflexos mais apurados, mas ele atropela e joga o pobre a uns cinco metros de altura, que cai mortinho e com farofa. Espera-se que pare o veículo, peça socorro e aguarde os trâmites judiciais subseqüentes ao homicídio culposo por ele perpetrado, certo? Ah, tá...
Primeiro, ele só parou porque o carro não queria mais funcionar  após a forte pancada no mendigo. Segundo, quem chamou a polícia foram pessoas que passavam pelo local. (...)
O setor de RP, quando atende a uma ocorrência de trânsito de qualquer tipo, sabe que potencialmente tem uma graninha chamando seu nome. Ao chegar ao local do 714 (atropelamento mais morte), o dono da Mercedes preta já está ao telefone com o advogado, que lhe passa as orientações imediatas. (...) Ah, é bingo! É só ir até o atropelador e pewdir seus documentos pessoais e os do veículo, solicitar à sala de operações um subsetor para acautelamento até a DP da área. “Mas, seu policial, por gentileza, meu advogado está vindo para cá, será que poderíamos aguardar a chagada dele?”. “Ô, cidadão, primeiro vamos até a delegacia, lá você fala com ele, correto? Vamos indo pra ir adiantando o andamento da ocorrência”. “Mas é justamente isso que ele vem ver com os senhores, sobre a necessidade de dar andamento à ocorrência...”. Pois não, doutor!

(...)

Dentro da viatura, a alguns quarteirões da delegacia, os policiais expõem uma proposta sobre a apresentação da ocorrência na sede policial. O que o doutor acharia de relatar que seu cliente fora fechado em uma manobra perigosa, de um carro imaginário, que atropelou o infeliz primeiramente, arremessando-o sobre seu carro já parado pela freada brusca que fora obrigado a dar? O carro ilusório seguiu a toda velocidade, sem se importar com o atropelamento, restando ao motorista, que teve o carro danificado pelo corpo do indigente, apenas solicitar a presença da polícia militar. O carro parado não pode atropelar,  o que livra seu condutor da responsabilidade do acidente, e, como não haveria ninguém que reclamasse a morte do homem invisível, o polidíssimo empresário, que estava até sóbrio (depois do susto), passaria de autor do fato a simples testemunha, livre do processo e de futuras interpelações. Excelente, não doutor? Pois então, a estenda-se o pano! (...) Mais uma rodada e ele refaz as apostas, dez mil, metade agora, metade ao término do termo de declaração do empresário.

(...)

O estado, que não disponibiliza a perícia para todos os atropelamentos (ao contrário do que manda a lei), o PM corrupto, o inspetor de polícia civil desinteressado, que nem quer saber de interpretação, o escrivão que mal sabe escrever um termo de declaração, todos eles são peças, e todas elas fundamentais para que a morte de um fodido da vida perca a importância diante da inconveniência de um medíocre processo criminal para um abastado membro da elite fluminense. (...)
“2181, 2181, é maré. Correto 2181, setor “B” empenhado correto, proceda lá no setor do companheiro e atenda um chamado da dona Francisquinha, o código é o 853, correto...”

(...)

As casas funerárias tinham convênio com os policiais solicitados nos trâmites relacionados a uma morte natural. O PM se aproxima mansamente, dá os pêsames para a viúva e examina o velhinho todo torto no sofá após o infarto fulminante do miocárdio. A fragilidade dos presentes, cara a cara com a morte, e a urgência de tirar o presunto da sala fazem com que a primeira solução sugerida pelos policiais se torne a mais plausível. Acaso fosse fechado o contrato com o papa-defunto indicado pelos prestativos PMs (que na cabeça dos familiares estavam apenas agindo de bom coração), ficava tudo certo! A funerária cuida de tudo, desde o laudo médico (quer sequer viu o defunto), atestando a morte por causas naturais, até a preparação da lápide, translado, maquiagem e vestimentas do falecido. Trinta por cento do valor total do enterro era pago a título de comissão aos aliciadores, mais uma parcela de valor absolutamente insondável (juro que tentei!), paga diretamente ao policial da sala de operações que recebeu a ocorrência.

(...)

Fora esses casos, que não aconteciam com a freqüência desejada pelos policais, ainda havia uma fonte de renda fixa que sempre incrementava o salário de quem fizesse parte desse joguinho: os “fechos”. Como os setores eram bem delimitados, as guarnições passavam várias vezes por dia pelos mesmos lugares, pelas mesmas ruas. Paravam sempre nmos mesmos estabelecimentos para uma água ou um café, e alguns dos comerciantes estreitavam a amizade com a RP, gerando uma relação comercial completamente absurda: o fornecimento de segurança particular pelo aparato estatal.

(...)

Geralmente, os horários cobertos eram os de abertura e fechamento das portas, sempre mais sensíveis no tocante à segurança, permanecendo a guarnição ali, plantada, por 30 minutos, para seguir depois até  próximo cliente. Se uma ocorrência fosse passada pela sala nesses períodos, era necessário esperar até o término do serviço particular, porque fecho é fecho e não pode ser de forma alguma negligenciado. (...) Ia desde os 100 reais da padaria até os 400 reais da empresa de ônibus. (...)
O serviço de despachante de viaturas era, no 6º, o melhor dos serviços internos. Alguns batalhões têm bombas de combustível próprias, para o abastecimento de suas viaturas e das demais que fossem determinadas pelo comando, em conjunto com a DGM (Diretoria0Geral de Material). Ele também fazia o recebimento do combustível comprado pelo estado, que vinha da refinaria em caminhões terceirizados, prestadores de serviço à Petrobras. Esses caminhões vinham com motoristas particulares que, em conluio ou não com o dono do veículo, roubavam o combustível sem nem ao menos despejá-lo nos tanques do batalhão. Simples: se o batalhão comprasse 3 mil litros, ele descarregava apenas 2.700. Os 300 restantes ele dividia com o despachante da bomba e com quem mais estivesse envolvido na sacanagem.

(...)

Além do roubo na fonte, também havia a venda direta ao consumidor. Quando não dava para a sintonia acontecer da melhor forma no descarrego, os despachantes então vendiam a gasolina ali, direto na bomba, um real o litro. As viaturas faziam fila para o abastecimento nos horários de troca de guarnição, e, nos bancos de trás, galões de 20, 40 litros aguardavam cheios de sede pelo precioso líquido.


Rubem L. de F. Auto

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