Trechos do livro “Como nascem os monstros”:
“Toda vez que o cidadão tem um problema com o vizinho que
estacionou em frente a sua garagem, ou com um assalto a sua residência, é ela
(PM) que vai avaliar a situação primeiramente. (...) O solicitante liga para a
polícia que, da sala de operações, coordena o repasse da ocorrência para o
setor de RP correspondente. Apenas um fator é determinante para que os
componentes das referidas guarnições tenham a possibilidade de lucrar com as desgraças
alheias: a sempiterna tendência do carioca em querer se dar bem.
O cidadão está dirigindo seu automóvel pela avenida Rodrigues
Alves quando, inesperadamente, um morador de rua atravessa seu caminho e não dá
tempo de desviar. Talvez, se o motorista não tivesse bebido, até estivesse com
os reflexos mais apurados, mas ele atropela e joga o pobre a uns cinco metros
de altura, que cai mortinho e com farofa. Espera-se que pare o veículo, peça
socorro e aguarde os trâmites judiciais subseqüentes ao homicídio culposo por
ele perpetrado, certo? Ah, tá...
Primeiro, ele só parou porque o carro não queria mais funcionar
após a forte pancada no mendigo.
Segundo, quem chamou a polícia foram pessoas que passavam pelo local. (...)
O setor de RP, quando atende a uma ocorrência de trânsito de
qualquer tipo, sabe que potencialmente tem uma graninha chamando seu nome. Ao
chegar ao local do 714 (atropelamento mais morte), o dono da Mercedes preta já
está ao telefone com o advogado, que lhe passa as orientações imediatas. (...)
Ah, é bingo! É só ir até o atropelador e pewdir seus documentos pessoais e os
do veículo, solicitar à sala de operações um subsetor para acautelamento até a
DP da área. “Mas, seu policial, por gentileza, meu advogado está vindo para cá,
será que poderíamos aguardar a chagada dele?”. “Ô, cidadão, primeiro vamos até a
delegacia, lá você fala com ele, correto? Vamos indo pra ir adiantando o
andamento da ocorrência”. “Mas é justamente isso que ele vem ver com os
senhores, sobre a necessidade de dar andamento à ocorrência...”. Pois não,
doutor!
(...)
Dentro da viatura, a alguns quarteirões da delegacia, os
policiais expõem uma proposta sobre a apresentação da ocorrência na sede
policial. O que o doutor acharia de relatar que seu cliente fora fechado em uma
manobra perigosa, de um carro imaginário, que atropelou o infeliz
primeiramente, arremessando-o sobre seu carro já parado pela freada brusca que
fora obrigado a dar? O carro ilusório seguiu a toda velocidade, sem se importar
com o atropelamento, restando ao motorista, que teve o carro danificado pelo
corpo do indigente, apenas solicitar a presença da polícia militar. O carro
parado não pode atropelar, o que livra
seu condutor da responsabilidade do acidente, e, como não haveria ninguém que
reclamasse a morte do homem invisível, o polidíssimo empresário, que estava até
sóbrio (depois do susto), passaria de autor do fato a simples testemunha, livre
do processo e de futuras interpelações. Excelente, não doutor? Pois então, a
estenda-se o pano! (...) Mais uma rodada e ele refaz as apostas, dez mil,
metade agora, metade ao término do termo de declaração do empresário.
(...)
O estado, que não disponibiliza a perícia para todos os
atropelamentos (ao contrário do que manda a lei), o PM corrupto, o inspetor de
polícia civil desinteressado, que nem quer saber de interpretação, o escrivão
que mal sabe escrever um termo de declaração, todos eles são peças, e todas
elas fundamentais para que a morte de um fodido da vida perca a importância
diante da inconveniência de um medíocre processo criminal para um abastado
membro da elite fluminense. (...)
“2181, 2181, é maré. Correto 2181, setor “B” empenhado
correto, proceda lá no setor do companheiro e atenda um chamado da dona
Francisquinha, o código é o 853, correto...”
(...)
As casas funerárias tinham convênio com os policiais
solicitados nos trâmites relacionados a uma morte natural. O PM se aproxima
mansamente, dá os pêsames para a viúva e examina o velhinho todo torto no sofá
após o infarto fulminante do miocárdio. A fragilidade dos presentes, cara a
cara com a morte, e a urgência de tirar o presunto da sala fazem com que a
primeira solução sugerida pelos policiais se torne a mais plausível. Acaso
fosse fechado o contrato com o papa-defunto indicado pelos prestativos PMs (que
na cabeça dos familiares estavam apenas agindo de bom coração), ficava tudo
certo! A funerária cuida de tudo, desde o laudo médico (quer sequer viu o
defunto), atestando a morte por causas naturais, até a preparação da lápide,
translado, maquiagem e vestimentas do falecido. Trinta por cento do valor total
do enterro era pago a título de comissão aos aliciadores, mais uma parcela de
valor absolutamente insondável (juro que tentei!), paga diretamente ao policial
da sala de operações que recebeu a ocorrência.
(...)
Fora esses casos, que não aconteciam com a freqüência desejada
pelos policais, ainda havia uma fonte de renda fixa que sempre incrementava o
salário de quem fizesse parte desse joguinho: os “fechos”. Como os setores eram
bem delimitados, as guarnições passavam várias vezes por dia pelos mesmos
lugares, pelas mesmas ruas. Paravam sempre nmos mesmos estabelecimentos para
uma água ou um café, e alguns dos comerciantes estreitavam a amizade com a RP,
gerando uma relação comercial completamente absurda: o fornecimento de
segurança particular pelo aparato estatal.
(...)
Geralmente, os horários cobertos eram os de abertura e
fechamento das portas, sempre mais sensíveis no tocante à segurança,
permanecendo a guarnição ali, plantada, por 30 minutos, para seguir depois
até próximo cliente. Se uma ocorrência
fosse passada pela sala nesses períodos, era necessário esperar até o término
do serviço particular, porque fecho é fecho e não pode ser de forma alguma
negligenciado. (...) Ia desde os 100 reais da padaria até os 400 reais da
empresa de ônibus. (...)
O serviço de despachante de viaturas era, no 6º, o melhor
dos serviços internos. Alguns batalhões têm bombas de combustível próprias,
para o abastecimento de suas viaturas e das demais que fossem determinadas pelo
comando, em conjunto com a DGM (Diretoria0Geral de Material). Ele também fazia
o recebimento do combustível comprado pelo estado, que vinha da refinaria em
caminhões terceirizados, prestadores de serviço à Petrobras. Esses caminhões
vinham com motoristas particulares que, em conluio ou não com o dono do
veículo, roubavam o combustível sem nem ao menos despejá-lo nos tanques do
batalhão. Simples: se o batalhão comprasse 3 mil litros, ele descarregava
apenas 2.700. Os 300 restantes ele dividia com o despachante da bomba e com
quem mais estivesse envolvido na sacanagem.
(...)
Além do roubo na fonte, também havia a venda direta ao
consumidor. Quando não dava para a sintonia acontecer da melhor forma no
descarrego, os despachantes então vendiam a gasolina ali, direto na bomba, um
real o litro. As viaturas faziam fila para o abastecimento nos horários de
troca de guarnição, e, nos bancos de trás, galões de 20, 40 litros aguardavam
cheios de sede pelo precioso líquido.
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