Jânio fora eleito, em outubro de 1960, com um discurso
ambíguo, articulando um leque de forças: oligarcas liberais, classes médias,
amplos contingentes de trabalhadores. Estavam todos, por diferentes razões,
descontentes com os rumos da sociedade. A euforia provocada pelo crescimento da
segunda metade dos anos 50, que de fato abrira amplos horizontes, cedera lugar
à apreensão face às contradições que se acumulavam.
Os 50 anos em 5 de JK conservaram algumas heranças
essenciais dos tempos varguistas: o intervencionismo estatal, os pesados
investimentos em infra-estrutura (Planos de Metas) e a incorporação dos
trabalhadores (afrouxamento da tutela ministerial sobre o movimento sindical e
gestão associada da Previdência Social).
Não por acaso fora possível manter de pé a aliança
articulada por Getúlio Vargas entre o Partido Social-Democrata (PSD) e o
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o apoio, nas margens, dos próprios
comunistas.
O ritmo de crescimento diminuíra, crescera a inflação,
intensificara-se o cortejo de desajustes próprios de épocas de transformações
aceleradas.
Desgastaram-se as forças e os partidos que haviam até então
comandado o país.
Jânio, líder carismático por excelência, soube encarnar
esses anseios pelo “novo”, tão próprios da cultura política brasileira. Com uma
vassoura, símbolo da campanha eleitoral, saberia “varrer” as dificuldades e os
problemas. Elegendo-se com quase 6 milhões de votos (cerca de 48% do total dos
votantes), assumiu o poder com força considerável, alimentando as expectativas
de um “novo começo”.
Mas o novo governo decepcionou muito. A política econômica,
na linha da ortodoxia monetarista, desagradava o setor industrial acostumado ao
crédito fácil, sem conseguir segurar a inflação. A política externa
independente irritava os setores conservadores sem angariar os apoios das
esquerdas, desprezadas por Jânio.
Quanto aos trabalhadores, frente à inflação crescente,
recebiam promessas de austeridade... Enquanto isso, as reformas vagamente
anunciadas e tão desejadas não se concretizavam.
O presidente parecia apostar apenas no diálogo direto com a
sociedade, exercitando seu inegável carisma. Reclamava de restrições e alegava
carecer de plenos poderes. Renunciou em agosto de 1961, provavelmente
planejando criar uma comoção social tal que, ao fim, entregaria a ele tais
poderes supremos.
Seja como for, seu plano foi pessimamente executado. O país
esteve à beira de uma guerra civil por quase duas semanas.
Depois de uma crise política, orquestrada pelos ministros
militares que queriam impedir a posse do vice, João Goulart, do PTB, que foi
enfrentada por movimentos de resistência, encabeçados por Leonel Brizola, houve
um acordo que permitiu a posse de Jango em 7 de setembro de 1961. O varguismo
estava de volta, a plenos pulmões.
Nesse caldeirão foi gestado o programa das Reformas de Base.
A reforma agrária, que pretendia criar uma classe média
rural de pequenos proprietários de terras; a reforma urbana, para planejar o
crescimento das cidades; a reforma bancária, objetivando verter capitais para
as reais necessidades de investimentos nacionais; a reforma tributária, que
pretendia reduzir o papel dos tributos indiretos e aumentar o dos diretos, especialmente
o imposto de renda progressivo; reforma eleitoral, que garantiu o voto dos
analfabetos, na época metade da população adulta.
Além dessas, a reforma do estatuto do capital estrangeiro,
que pretendia disciplinar os investimentos estrangeiros no país, além de olhar
com mais cuidado para a questão das remessas de lucros para o exterior. A
reforma universitária almejava a fazer com que o ensino e a pesquisa fossem
mais focadas nos problemas do país.
Apesar de tantos plenos de progresso, as eleições de 1962 se
mostraram um banho de água fria, pois as forças oposicionistas demonstraram um
apetite enorme, abocanhando grande parte da Câmara e do Senado. No Congresso,
PSD e UDN perfilavam ampla maioria conservadora.
O mesmo se deu nos cargos de governador. Rio Grande do Sul,
São Paulo, Minas Gerais, Estado da Guanabara exibiam grandes lideranças
conservadoras nos seus postos máximos.
Como se sabe, o acordo que garantiu a posse de Jango passou
pela restrição dos poderes presidenciais, criando-se um exótico parlamentarismo
híbrido, típico das insanas confusões de conceitos que não conseguem impregnar
a parca inteligência de nossos líderes. Após as alterações propostas, tinha-se
um presidente e um parlamento igualmente fracos.
Pois bem, a redução da base de apoio ao presidente levou à
necessidade de se restabelecer o poder presidencial. O plebiscito, já previsto
quando dos acordos de 1961, foi antecipado para janeiro de 1963. Jango ganhou
com ampla margem, porém deve-se ter em mente que a própria oposição estava
preocupada com as eleições gerais seguintes. Também não lhes interessava manter
o “parlamentarismo tupiniquim” por mais tempo.
Três meses depois, o Plano Trienal de Celso Furtado foi
abortado. No fim do primeiro semestre de 1963 as reformas todas estavam
atoladas.
O país estava dividido.
De um lado: trabalhadores urbanos e rurais, estudantes de
universidades públicas e muitos graduados de escolas militares. Do outro:
elites tradicionais, grupos empresariais. Além destes, nasceu uma “frente
social”: grande parte da classe média e até setores populares: pequenos
proprietários, profissionais liberais, homens engravatados, empregados do “colarinho
branco” (ocupantes de cargos elevados), oficiais militares, professores e
estudantes, jornalistas, trabalhadores autônomos.
Estes últimos eram, em geral, pessoas que se enriqueceram no
período de maisop dinamismo econômico. Tudo o que temiam era a perda do
patrimônio que amealharam. E o ambiente confuso da época criava temores,
especialmente face a uma política distributiva realmente profunda.
Tornava-se assim muito cômodo incutir medo de uma eventual
derrocada da civilização ocidental e cristã pelo espectro do comunismo ateu... Recorde-se
igualmente da conjuntura internacional da guerra fria. Não se olvide do sucesso
contemporâneo dos “barbudinhos da ilha caribenha”...
De fato, o acirramento dos ânimos levou diversas lideranças
sociais a abandonarem os movimentos legalistas, nascidos da necessidade de
garantir a posse de Jango, para uma linha revolucionária e armada.
O fato acima citado levou a uma interessante reação daqueles
que eram, até então, os reacionários do dia. Frente à radicalização das
esquerdas, as direitas adotaram um tom legalista, constitucionalista, seus
discursos clamavam por ordem e razoabilidade. A religião também era usada como
mote em seus discursos.
Mas o bote estava armado – ou se armando progressivamente -,
aguardando o momento ideal.
E ele chegou: março de 1964.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedades”