Ao assistir a alguns discursos e declarações,
invariavelmente polêmicas, dados por Donald Trump, percebe-se que ele elegeu
alguns inimigos: Washington, sistema financeiro, globalização de mercados.
Trump vê nesses atores as razões para o declínio econômico de seu país.
Pois bem. O mais interessante nesse contexto é perceber que
esses inimigos foram criados por seu país, de maneira quase que solitária, e
tendo em foco o engrandecimento da nação. A geopolítica manipulada por
Washington ao longo de décadas deram origem aos “demônios” que agora assombram
nosso vizinho do norte.
Com o fim da I Guerra Mundial, os EUA eram o maior credor do
mundo (em termos relativos, só perdia para a Suíça), concentravam praticamente
todas as reservas de ouro do mundo e tinham a maior base industrial do planeta
Terra.
Teoricamente, poderiam repetir o que fizeram ao fim da I
Guerra Mundial, isto é, dar as costas ao mundo, fechar suas fronteiras e “deixar
esse tal de resto do mundo afundar em sua própria desgraça. Mas não foi isso que
ocorreu. Por quê?
Porque algumas décadas antes da II GM, houve um evento de
proporções igualmente trágicas: a Crise de 1929. Após uma década de crescimento
acelerado, os EUA viram uma simples crise bancária se tornar um pântano de onde
nada escapava. Engolia indústrias, empregos, bancos, serviços públicos, a
infraestrutura do país... E o pior: piorava ano a ano.
Naquela época vigia o conhecido Padrão Ouro. Todas as moedas
do mundo relevante seguiam taxas de conversão fixas. Isso impulsionou o
comércio internacional, estabilizou economias e tinha como base a moeda mais
forte do mundo então: a Libra esterlina.
Esse sistema era visto como algo próximo da perfeição, a
ponto de ter sido suspendo apenas no período da I Guerra Mundial.
Após 4 anos de profunda recessão, aliás, depressão econômica
que legou à extrema pobreza milhões de norte-americanos, o recém eleito
Franklin Roosevelt fez o que seu antecessor não tivera a sensibilidade de
fazer: retirar os EUA do Padrão-Ouro.
Pouco após, a economia parou de afundar, o governo passou a
investir de maneira mais decidida em grandes obras, o emprego voltou e a
profunda depressão parecia estar ficando para trás. Este conjunto de
iniciativas ficou conhecido como New Deal. Franklin foi reeleito, mantinha uma popularidade
invejável.
Mas a escalada em direção aos padrões de consumo pré-1929
parecia ser algo muito distante de ser alcançado. O país teria que escalar
índices de crescimento econômico que pareciam ser uma distante miragem no
deserto.
Contudo, no final daquela década, iniciou-se na Europa a II
Guerra Mundial. O isolacionismo americano parecia-se decidido por manter o país
distante daquele conflito. O que foi, por algum tempo, uma posição confortável.
Haja vista o fato de estarem vendendo insumos e armas para seus aliados,
especialmente a Grã-Bretanha.
Mas ocorreu um ataque, dentro de suas fronteiras: o Japão
atacou Pearl Harbor. Tendo ou não conhecimento prévio e a possibilidade real de
impedi-lo, o fato é que aquele evento exaltou sobremaneira o ânimo da nação,
que se lançou firmemente em direção ao conflito.
O envolvimento norte-americano exigiu investimentos até
então impensáveis. Após anos de gastos estratosféricos em economia de guerra, a
economia americana deixou os anos de crise para trás. A idéia de que
investimentos estatais em períodos de recessão são capazes de reverter o
cenário negativo estava consolidada.
Tiros e bombas anos depois, terminada a Guerra, o cenário era:
Europa em frangalhos; EUA maiores credores do mundo e centro fabril mais
importante do mundo; Japão na lona; URSS ameaçadoramente grande e próxima da
Europa.
Ainda em 1944, autoridades americanas se adiantaram e iniciaram
discussões que almejavam desenhar o mundo pós-conflito. As reuniões mais
importantes ocorreram num hotel: Mount Washington, em Bretton Woods, New
Hampshire.
Essa conferência, que reuniu representantes dos Aliados,
definiu o cenário das finanças mundiais dali em diante. O objetivo não-vocalizado
não era difícil de imaginar: Crise de 1929, nunca mais! Analistas econômicos,
temerosos de que a redução de investimentos que se seguiria ao fim da guerra
pudesse lançar os EUA e o mundo numa nova crise, basicamente decidiram-se por
lançar o mundo num projeto keynesiano liderados pelos EUA. E assim fizeram.
Naquela conferência de 1944, foram definidas duas instituições
que seriam as bases do mundo a partir de 1945: o BIRD, atual Banco Mundial,
criado para empresar recursos visando à reconstrução da combalida Europa; e
FMI, criado como um emprestador de emergência, uma espécie de bombeiro que não
deixaria que “focos de incêndio” se convertessem em incêndios financeiros.
O público-alvo dessas instituições eram os Aliados: Europa,
basicamente. E esse grupo incluía a URSS, que foi convidada a se juntar ao novo
clube capitalista, mas as condições foram tratadas de tal forma que Stalin não
poderia fazer nada além de rejeitar o convite. E assim o fez.
As autoridades americanas, todas envolvidas no New Deal de
Roosevelt, planejavam criar uma economia globalizada. Isto é, o mundo deveria
ser o mercado potencial de toda a produção industrial dos EUA. Para tanto,
deveriam erguer um novo sistema financeiro internacional.
Nesse ponto, a Conferência em Bretton Woods se decidiu em
duas propostas: uma era oriunda da mente genial do economista britânico John
Maynard Keynes; a outra saiu da mente patriótica do representante americano,
Mr. White.
O primeiro planejou um sistema equilibrado e saudável, sem
que nenhum país fosse capaz de manipulá-lo: todas as moedas teriam taxas de
conversão fixas entre si e em relação do dólar, moeda da economia mais forte do
mundo, portanto única capaz de trazer estabilidade ao sistema; uma taxa fixa de
conversão do dólar em relação a uma moeda virtual, administrada por uma
autoridade monetária independente. Mr. White, por sua vez, desejava ver a
posição defendida por seu país prevalecer: a nova potência mundial eram os EUA,
portanto a moeda internacional é o dólar e ponto final.
O planejamento vencedor, o dos EUA, definiu taxas fixas das
moedas de todo o mundo entre si e em relação ao dólar. Este, tinha uma taxa
fixa de conversão em relação ao ativo de reserva por excelência, isto é, o
ouro: 35 dólares por onça. Como as reservas de ouro do mundo todo já atulhavam
os cofres de Fort Knox, parecia um sistema relativamente confiável.
A preocupação subjacente passava pelo que em economia é
chamado de mecanismo de reciclagem de superávits. A idéia é a seguinte: imagine
que o estado de São Paulo venda muitos produtos, por meio de suas fábricas, a
diversos estados do Brasil; imagine que o Rio de Janeiro compre muitas dessas
mercadorias; ao final de um período, São Paulo acumulou superávits comerciais
em detrimento do Rio de Janeiro. Um poder nacional, a União, cria mecanismos
para que o estado do Rio de Janeiro receba investimentos, repasses
orçamentários ou participação sobre tributos recolhidos, de forma a equilibrar
as economias subnacionais.
Esse equilíbrio pode ser buscado nas relações
internacionais. Para tanto, é necessário um mecanismo de reciclagem de
superávits. E os EUA fizeram precisamente isso. Mas, para tanto, era preciso “engolir
dois sapos”: Alemanha e Japão.
Ao fim do conflito mundial, a Alemanha era o patinho feio da
Europa, profundamente odiada por ingleses e franceses, especialmente. Charles
de Gaulle se esforçava bastante para que todas as punições prometidas fossem
aplicadas sobre a Alemanha, o que pode ser resumido assim: destruição completa
e absoluta de todo o parque fabril alemão, até que o país voltasse a ser agropastoril!
Quanto ao Japão, país ocupado pelos EUA, o general McArthur
era o novo soberano, escreveu a nova Constituição do país e seguia ordens
expressas de afundar o país num lodaçal, para nunca mais de lá ressurgir. O
foco asiático encontrava-se sobre a China, que os EUA planejavam transformar
numa colônia asiática, de modo a usarem como plataforma de exportação, uma
espécie de México asiático.
Mas esses “belos” planos se mostrariam imediatamente
impraticáveis.
O novo sistema monetário planetário sendo desenhado exigia
duas outras moedas fortes, que fossem um tipo de reserva, caso o dólar
afundasse em razão de alguma crise nos EUA. Após refletirem sobre quais
poderiam ser as alternativas, a resposta foi constrangedora: Alemanha e Japão.
Embora a Alemanha estivesse em frangalhos, antes da I Guerra
Mundial era a economia mais forte da Europa. Ainda dispunha de mão de obra
excelente, infraestrutura invejável, posição central dentro da Europa etc. O
Marco alemão surgiu como uma excelente alternativa. Só havia um obstáculo:
acalmar de Gaulle.
Quanto ao Japão, suas indústrias estavam praticamente intacta
após Guerra. E surgiu um novo inimigo no meio do caminho: Mao Tsé Tung. Em
1949, Mao expulsou o aliado americano para Taiwan e fechou o país. Tornou-se
claro que surgiu uma nova URSS, agora na Ásia. Os EUA não teriam ingerência,
não manipulariam e as fronteiras estavam fechadas para qualquer aventura yankee.
A melhor solução seria usar um aliado local para enfrentar a
China. A resposta recaía sobre o Japão, mas seria necessário parar o desmente
de suas fábricas. McArthur entendeu rapidamente o novo contexto e conseguiu
explicar a seus colegas no Capitólio. Agora, o Japão era amigo e deveria ter
sua economia incentivada, não mais desmontada.
A China atacou na Coréia, procurando unificar o país, cujo
sul estava ocupado por tropas americanas. A Guerra da Coréia forneceu o mercado
para produtos japoneses, que deu um novo impulso à economia do país. Ao lado da
Guerra do Vietnã, esse conflito forneceu a base econômica para o crescimento
das economias do sudeste asiático.
Pois bem. O novo mecanismo de reciclagem de superávits do
mundo funcionaria assim: o grande concentrador de superávits, os EUA, usariam
seus saldos comerciais para reinvestir onde havia déficit, porém considerando
suas posições estratégicas relevantes (Alemanha e Japão), investindo pesadamente
nessas economias além de abri-lhes o mercado para importações.
Essa foi a base sobre a qual se ergueram dois milagres
econômicos bem famosos.
Contudo, todo o planejamento acima somente teria sentido se
a posição dos EUA como concentrador de superávits fosse mantida. Isso não
ocorreu.
Após algumas décadas sustentando esse concerto monetário, período
esse conhecido como Anos Dourados nas economias desenvolvidas, a Europa esta
refeita, produzindo e exportando bastante para os EUA; o Japão, idem; as taxas
de juros praticadas nos países centrais, muito baixas, levaram à fuga de
capitais em direção ao Terceiro Mundo, aumentando seus produtos industriais.
Resultado: já no início da década de 1970 os EUA passaram a
uma economia deficitária. O jogo mudou, e os jogadores deveriam se adaptar. E o
fizeram.
O cenário no início daquela década, nos EUA, denunciava:
inflação elevada; estagnação econômica; posteriormente, dois choques no preço
do petróleo. O caos parecia ter invadido o país de maneira decisiva.
Para combater esses obstáculos, algumas medidas foram
tomadas: extinção dos programas governamentais implantados pelos democratas, como
Nova Fronteira e Grande Sociedade, que visavam a trazer mais igualdade dentro
dos EUA; aumento das taxas de juros, que foram de 5% a.a. para mais de 21%;
acordo com os países produtores de petróleo para que aumentassem livremente
seus preços, desde que se mantivessem vendendo seu ouro negro em dólares,
apenas. Regra que vale para todas as commodities.
O fim dos programas sociais, ao lado do aumento do
desemprego provocado por uma recessão causada pelo aumento dos juros, jogou na
lona o salário daquela que era a sociedade mais bem remunerada do mundo (os
salários de 1973 ainda são os mais elevados da história do EUA, escalada essa
que tinha se iniciado em 1850); as taxas de juros elevadas atraíram capitais do
mundo inteiro; o aumento do preço do petróleo foi mais decisivo na Europa e no
Japão, países concorrentes dos EUA, afinal os EUA importavam 32% do petróleo
que consumiam, enquanto o Japão importava cada gota que consumia.
O Choque do Petróleo também aumentou a rentabilidade das petroleiras
americanas.
Essas medidas melhoraram sobremaneira a perspectiva da
economia dos EUA na década de 1980, quando Reagan pôde usar todos esses
recursos para sufocar a URSS, com seu insano Star Wars.
O sistema monetário mundial agora via os EUA não mais como
emprestadores de recursos, que acumulavam com exportações, mas como mercado
consumidor importante, e como mercado onde pudessem inflar sua rentabilidade,
pois contavam com custos muito competitivos. Sem falar em Wall Street, sempre
com uma boa oportunidade de aplicar seus recursos (petrodólares, dinheiro de
tráfico, propinas, vendas de armas etc.).
O aumento exponencial das taxas de juros também ajudou no
novo posicionamento yankee, pois quebrou nações do Terceiro Mundo, na América
Latina, na África, no Leste Europeu e na Ásia. Muitas dessas nações não se
recuperaram ainda hoje da bomba nuclear monetária que os EUA explodiram sobre
suas cabeças.
O cenário agora trazia uma nação-mamute que aspirava
recursos de todo o planeta, de modo a financiar seus déficits.
Déficits esses agora conhecidos como “défits gêmeos”:
Balança Comercial e Orçamento Público negativos, em trilhões de dólares. No seu
auge, o planeta Terra direcionava de 5 a 8 bilhões de dólares por dia útil para
os EUA, de modo a fechar as contas dos irmãos do norte.
Com a entrada da China no tabuleiro internacional, desde os
anos 2000, passaram a contar com ainda mais recursos voando para seus cofres, em
troca de títulos que rendem menos que a inflação local (ICU).
Afinal, após o fluxo intenso inicial de recursos, e com a
queda acentuada da inflação, ainda n anos 1980 os EUA puderam reduzir
significativamente sua taxa de juros, sem reduzir o fluxo de capitais para o
país.
Esses recursos financiaram saltos tecnológicos que
aumentaram ainda mais a lucratividade das firmas americanas – e a produtividade
invejável que exibem até hoje.
Nasceram, assim, diversas bolhas que marcaram saltos na
economia mundial. Por exemplo, a bolha das “ponto-com” levaram à aquisição de
companhias americanas por empresas de todo o mundo, trazendo assim ainda mais
capitais para o país.
A concorrência dentro dos EUA, contando com produtos de todo
o mundo, ao lado de mercados internacionais abertos e taxas de juros baixas,
levaram à derrocada das empresas do meio oeste, isto é, o cinturão da ferrugem,
a região que historicamente concentrava empresas industriais de base, em função
de sua localização central, ótima para o planejamento logístico.
A crise do petróleo levou a uma reação inesperada da
Alemanha e do Japão, especialmente. Se até meados dos anos 1970 eles exportavam
máquinas e veículos “beberrões”, após tal crise investiram muito em motores que
poupavam gasolina. Esses veículos detonaram a indústria automobilística
americana, ainda ligada aos “muscle cars”.
Se a Costa Leste se beneficiava com a explosão de Wall
Street nos anos 1980; se a Costa Oeste se beneficiava com as empresas de
tecnologia, impulsionadas ainda mais nos anos 1990; o meio oeste só afundava.
Surgiram cidades fantasma e os empregos até então tradicionais foram limados do
país.
Restou o complexo industrial militar, praticamente
independente do restante da economia do país, e sem dúvidas responsável por
trazer mais divisas para o país... além de petróleo e outras matérias primas a
preços bem reduzidos.
Esses fatos, sem dúvidas, levaram ao estado de ânimo
propício para quem se põe “contra tudo isso”. O desafio, porém, é desenhar um
cenário internacional, econômico e geopolítico, que permita substituir o
financiamento aos déficits gêmeos por algo prático e que mantenha o americano
médio com dinheiro para comer.
Como reativar uma base industrial relevante e eliminar os
déficits gêmeos, sem perder espaço geopolítico?
Como aumentar a taxa de juros básica, sem tirar dinâmica da
economia?
Como conseguirá manter salários relativamente reduzidos, sem
apelar para mão de obra de imigrantes?
Como fazer algo inteligente sem Paul Volcker e Henry
Kissinger, e contando apenas com parentes “imigrantes”, que parecem desconhecer
a Constituição e a história do país a que servem?
Como pagar os juros devidos a países do mundo inteiro,
credores de trilhões de dólares?
Have a good luck, Mr. Trump!
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “O Minotauro Global”
Nenhum comentário:
Postar um comentário