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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O SILÊNCIO QUE SUCEDE O ESPORRO: DE TERRAS ARRASADAS A CIDADES DOMINADAS


Após empreenderem mais uma matança em larga escala e eliminarem mais um povo de bárbaros da face da Terra, deixando atrás de si corpos decepados e amontoados sobre o chão encharcado de sangue, cansados mas aliviados após mais um missão “civilizadora” cumprida, agora na Bretanha, os soldados romanos tomaram o caminho de casa.

Conforme marchavam para o sul, percorriam cidades que já haviam sido conquistadas décadas antes. Em nada lembravam uma terra arrasada. Não se viam ruínas, nem refugiados desesperados pedindo ajuda; viam-se campos bem cuidados, cidades prósperas e mercadores tentando seduzir a clientela com seus produtos.

Fazendeiros bem sucedidos exibiam taças importadas, em que deliciavam bons vinhos, produzidos localmente. Não raramente avistavam-se casas luxuosas. Os líderes locais adotavam as togas romanas e seus filhos iam à escola, onde tinham lições de latim.

A famosa “Pax Romani” tinha características particulares que podem ser descritas com o exemplo a seguir. Marco Túlio Cícero, idolatrado orador romano, tinha um irmão, Quinto, então governador de uma Província onde hoje se localiza o oeste da Turquia. Após saber da insatisfação da população local em relação a Quinto, Cícero lhe enviou uma totalmente preenchida por conselhos e em tom bastante severo.

No entanto, ainda que soubesse do temperamento explosivo do irmão, Cícero acrescenta que os problemas do governo local não se deviam exclusivamente a Quinto. Os gregos também tinham culpa. Assim dispôs Cícero: “Deixe a Ásia (nome pelo qual os romanos chamavam a Província) refletir sobre isso. Se ela não estivesse sob nosso governo, não escaparia de nenhuma calamidade advinda de guerra externa ou de disputas internas. E, como não há maneira de prover governo sem cobrar impostos, a Ásia deveria estar feliz em comprar a paz perpétua ao preço de um punhado de seus produtos.”

Parecem surpreendentes tais palavras quando contrapostas às de Cálgaco (post anterior), mas é revelador do papel exercido pelas guerras em geral, ainda que involuntariamente.

No tempo em que Cálgaco e seus homens enfrentaram o fio das espadas romanas, a extensão do Império Romano equivalia a metade do território continental dos EUA, compreendendo 60 milhões de pessoas, das quais 40 milhões viviam nas riquíssimas cidades orientais, enquanto que 20 milhões se espalhavam pelas rústicas cidades no ocidente.

Fazia parte da estratégia de expansão romana referir-se sempre depreciativamente a quem sabiam que deveriam exterminar futuramente. Portanto a imagem dos “bárbaros do ocidente”, traçada pelos romanos, era pior do que poderia ter sido de verdade. A crônica do dia a dia “bárbaro” compreendia lutas, ataques de surpresa a tribos inimigas e batalhas. Todas as cidades eram fortificadas, diziam.

Relatos de cultos a cabeças decepadas, dependuradas do lado de fora das portas das residências eram bastante comuns. Sacrifícios de pessoas, como forma de oferenda a deuses eventualmente irados se multiplicavam. Alguns dos rituais testemunhados descreviam seres humanos queimados vivos dentro de estátuas enormes de madeira. Tácito resumiu tudo o que pensava sobre as tribos germânicas em uma frase: “Os germânicos não gostam de paz.”

Mais instrutivo ainda é notar que durante a Era dos Impérios europeus, nos últimos séculos, a tarefa dos romanos de descrever os povos bárbaros como endiabrados assassinos em série, desalmados devoradores de inimigos, foi muito raramente questionada. Somente no século XX, com o fim dos impérios europeus, que os estudos clássicos começaram a questionar a imagem descrita a partir de Roma, sobre seus inimigos, antes de conquistá-los.

Segundo acadêmicos, os antigos imperialistas usavam a mesma tática contra seus inimigos e infelizes vitimas: eram descritos como incivilizados, corruptos, para os quais a conquista deveria ser vista como um favor. Cícero usou sua habilidosa retórica para justificar a extorsão tributária praticada na Grécia; Júlio César escreveu uma obra literária visando a justificar a invasão e tomada da Gália (atual França); Tácito queria transformar seu sogro em herói militar.

Impossível não lembrar de Rudyard Kipling e seu odioso “fardo do homem branco”.

Seja como for, medir o nível de violência que reinava em dada sociedade parece ser uma tarefa um tanto subjetiva. É fácil taxar sociedades menos complexas e desenvolvidas de tribos violentas. Mas a longa série de guerras empreendidas por Roma ao longo de sua extensão não fez um número modesto de vítimas.
Esse invencível alargamento territorial se iniciou nos séculos V e IV a.C.; no século III a.C. alcançou os domínios mediterrâneos; no século II a.C. moldou a região a Leste de Roma e, no século I a.C., deitou domínio no noroeste da Europa. O número de vítimas é estimado em 5 milhões, desconsiderando-se os milhões transformados em escravos.

Mas, individualmente, a violência utilizada variava. Normalmente, dependia do nível de resistência encontrada. No caso da tribo dos sênones, em 283 a.C., a devastação foi de tal forma completa que a região passou décadas sem ver qualquer ser humano. Políbio, historiador grego transformado em escravo romano após ver seu país cair sob o domínio do Império, afirmou que as guerras entre Roma e Cartago, no século III a.C., normalmente eram finalizadas após “exterminar toda forma de vida que encontrassem, sem poupar nada... assim, quando as cidades são tomadas pelos romanos, você com freqüência pode ver não apenas cadáveres de seres humanos, mas também cães cortados pela metade, e também membros mutilados de outros animais.”

Se resistir à invasão romana rendia uma nauseante matança, não impor resistência mas criar revoltas posteriormente poderia revelar um destino ainda pior. Júlio César invadiu a Gália entre os anos 58 e 56 a.C. Essas batalhas vitimaram um número relativamente pequeno de soldados. No entanto, após a conquista, os invasores sofreram seis anos de incessantes revoltas intestinais. O saldo final revelou o assombroso número de 1 milhão de mortes de homens gauleses com idade de lutar, dos 3 milhões então existentes, além de 1 milhão vendidos como escravos.

Os embates contra os judeus também produziram boa quantidade de sangue. Entre 66 e 73 d.C., ocorreu a grande revolta judaica. O melhor testemunhou foi oferecido por Josefo, general judeu que debandou para as fileiras romanas após o início da turbação. Segundo este, os romanos incendiaram o Templo de Jerusalém, roubaram os tesouros sagrados e mataram mais de 1 milhão de judeus, além de escravizarem 100 mil.
Em 132 d.C., os indomáveis judeus se rebelaram mais uma vez. Mais uma vez, Roma reagiu, mas agora da maneira mais sádica imaginável. Segundo uma testemunha judia: “continuaram matando até que seus cavalos ficaram mergulhados em sangue até as narinas”. Exagerado ou não, o episódio vitimou mais de 500 mil judeus.

Após o massacre, a Província da Judeia foi rebatizada: agora se chamava Palestina. Quanto aos seus habitantes, filisteus e judeus foram banidos de Jerusalém, passando a viver exilados na Europa e no Oriente Médio, exceto por um dia no ano: a Páscoa judaica.     
   

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

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