Após empreenderem mais uma matança em larga escala e eliminarem
mais um povo de bárbaros da face da Terra, deixando atrás de si corpos
decepados e amontoados sobre o chão encharcado de sangue, cansados mas
aliviados após mais um missão “civilizadora” cumprida, agora na Bretanha, os
soldados romanos tomaram o caminho de casa.
Conforme marchavam para o sul, percorriam cidades que já
haviam sido conquistadas décadas antes. Em nada lembravam uma terra arrasada.
Não se viam ruínas, nem refugiados desesperados pedindo ajuda; viam-se campos
bem cuidados, cidades prósperas e mercadores tentando seduzir a clientela com
seus produtos.
Fazendeiros bem sucedidos exibiam taças importadas, em que
deliciavam bons vinhos, produzidos localmente. Não raramente avistavam-se casas
luxuosas. Os líderes locais adotavam as togas romanas e seus filhos iam à
escola, onde tinham lições de latim.
A famosa “Pax Romani” tinha características particulares que
podem ser descritas com o exemplo a seguir. Marco Túlio Cícero, idolatrado
orador romano, tinha um irmão, Quinto, então governador de uma Província onde
hoje se localiza o oeste da Turquia. Após saber da insatisfação da população
local em relação a Quinto, Cícero lhe enviou uma totalmente preenchida por
conselhos e em tom bastante severo.
No entanto, ainda que soubesse do temperamento explosivo do
irmão, Cícero acrescenta que os problemas do governo local não se deviam
exclusivamente a Quinto. Os gregos também tinham culpa. Assim dispôs Cícero: “Deixe
a Ásia (nome pelo qual os romanos chamavam a Província) refletir sobre isso. Se
ela não estivesse sob nosso governo, não escaparia de nenhuma calamidade
advinda de guerra externa ou de disputas internas. E, como não há maneira de prover
governo sem cobrar impostos, a Ásia deveria estar feliz em comprar a paz
perpétua ao preço de um punhado de seus produtos.”
Parecem surpreendentes tais palavras quando contrapostas às
de Cálgaco (post anterior), mas é revelador do papel exercido pelas guerras em
geral, ainda que involuntariamente.
No tempo em que Cálgaco e seus homens enfrentaram o fio das
espadas romanas, a extensão do Império Romano equivalia a metade do território
continental dos EUA, compreendendo 60 milhões de pessoas, das quais 40 milhões
viviam nas riquíssimas cidades orientais, enquanto que 20 milhões se espalhavam
pelas rústicas cidades no ocidente.
Fazia parte da estratégia de expansão romana referir-se
sempre depreciativamente a quem sabiam que deveriam exterminar futuramente. Portanto
a imagem dos “bárbaros do ocidente”, traçada pelos romanos, era pior do que
poderia ter sido de verdade. A crônica do dia a dia “bárbaro” compreendia lutas,
ataques de surpresa a tribos inimigas e batalhas. Todas as cidades eram
fortificadas, diziam.
Relatos de cultos a cabeças decepadas, dependuradas do lado
de fora das portas das residências eram bastante comuns. Sacrifícios de pessoas,
como forma de oferenda a deuses eventualmente irados se multiplicavam. Alguns dos
rituais testemunhados descreviam seres humanos queimados vivos dentro de
estátuas enormes de madeira. Tácito resumiu tudo o que pensava sobre as tribos
germânicas em uma frase: “Os germânicos não gostam de paz.”
Mais instrutivo ainda é notar que durante a Era dos Impérios
europeus, nos últimos séculos, a tarefa dos romanos de descrever os povos
bárbaros como endiabrados assassinos em série, desalmados devoradores de
inimigos, foi muito raramente questionada. Somente no século XX, com o fim dos
impérios europeus, que os estudos clássicos começaram a questionar a imagem
descrita a partir de Roma, sobre seus inimigos, antes de conquistá-los.
Segundo acadêmicos, os antigos imperialistas usavam a mesma
tática contra seus inimigos e infelizes vitimas: eram descritos como
incivilizados, corruptos, para os quais a conquista deveria ser vista como um
favor. Cícero usou sua habilidosa retórica para justificar a extorsão
tributária praticada na Grécia; Júlio César escreveu uma obra literária visando
a justificar a invasão e tomada da Gália (atual França); Tácito queria
transformar seu sogro em herói militar.
Impossível não lembrar de Rudyard Kipling e seu odioso “fardo
do homem branco”.
Seja como for, medir o nível de violência que reinava em
dada sociedade parece ser uma tarefa um tanto subjetiva. É fácil taxar
sociedades menos complexas e desenvolvidas de tribos violentas. Mas a longa série
de guerras empreendidas por Roma ao longo de sua extensão não fez um número
modesto de vítimas.
Esse invencível alargamento territorial se iniciou nos
séculos V e IV a.C.; no século III a.C. alcançou os domínios mediterrâneos; no
século II a.C. moldou a região a Leste de Roma e, no século I a.C., deitou
domínio no noroeste da Europa. O número de vítimas é estimado em 5 milhões,
desconsiderando-se os milhões transformados em escravos.
Mas, individualmente, a violência utilizada variava.
Normalmente, dependia do nível de resistência encontrada. No caso da tribo dos
sênones, em 283 a.C., a devastação foi de tal forma completa que a região
passou décadas sem ver qualquer ser humano. Políbio, historiador grego
transformado em escravo romano após ver seu país cair sob o domínio do Império,
afirmou que as guerras entre Roma e Cartago, no século III a.C., normalmente
eram finalizadas após “exterminar toda forma de vida que encontrassem, sem
poupar nada... assim, quando as cidades são tomadas pelos romanos, você com freqüência
pode ver não apenas cadáveres de seres humanos, mas também cães cortados pela
metade, e também membros mutilados de outros animais.”
Se resistir à invasão romana rendia uma nauseante matança,
não impor resistência mas criar revoltas posteriormente poderia revelar um
destino ainda pior. Júlio César invadiu a Gália entre os anos 58 e 56 a.C.
Essas batalhas vitimaram um número relativamente pequeno de soldados. No
entanto, após a conquista, os invasores sofreram seis anos de incessantes revoltas
intestinais. O saldo final revelou o assombroso número de 1 milhão de mortes de
homens gauleses com idade de lutar, dos 3 milhões então existentes, além de 1
milhão vendidos como escravos.
Os embates contra os judeus também produziram boa quantidade
de sangue. Entre 66 e 73 d.C., ocorreu a grande revolta judaica. O melhor
testemunhou foi oferecido por Josefo, general judeu que debandou para as
fileiras romanas após o início da turbação. Segundo este, os romanos
incendiaram o Templo de Jerusalém, roubaram os tesouros sagrados e mataram mais
de 1 milhão de judeus, além de escravizarem 100 mil.
Em 132 d.C., os indomáveis judeus se rebelaram mais uma vez.
Mais uma vez, Roma reagiu, mas agora da maneira mais sádica imaginável. Segundo
uma testemunha judia: “continuaram matando até que seus cavalos ficaram
mergulhados em sangue até as narinas”. Exagerado ou não, o episódio vitimou
mais de 500 mil judeus.
Após o massacre, a Província da Judeia foi rebatizada: agora
se chamava Palestina. Quanto aos seus habitantes, filisteus e judeus foram
banidos de Jerusalém, passando a viver exilados na Europa e no Oriente Médio, exceto
por um dia no ano: a Páscoa judaica.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a
humanidade”.
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