O bicheiro Castor de Andrade tinha um baú de histórias
cômicas, verdadeiras caricaturas, típicas de um gângster tupiniquim.
Em novembro de 1966, Castor se encontrava à beira do gramado
do Maracanã, acompanhando aflito o desenrolar de uma partida decisiva, em que
seu time, o Bangu, enfrentava seu arquirrival, o América. Aos 27 minutos do
segundo tempo, o Bangu vencia por 2 x 1 quando, após um entrada por trás de
Cabrita, do Bangu, em Edu, do América, o juiz marcou o pênalti que poderia empatar
a partida.
Castor explodiu! Correu, transtornado, em direção ao juiz,
revólver em punho e uma mão na cintura. Foi contido pelos demais jogadores e
depois retirado de campo pelo major responsável pela segurança no estádio. Sua
arma foi recolhida, mas pôde continuar assistindo à partida da beira do
gramado.
O Bangu converteu em gol e empatou. Tudo igual: 2 x 2.
Mas o inesperado ocorreu, conforme descreveu O Globo: “Mas
aos 42 minutos, possivelmente na marcação mais infeliz de toda sua carreira de
bom juiz que foi nos certames juvenis, Idovan marcou um pênalti de Luciano em
Paulo Borges, em um lance limpo, em que o zagueiro americano não teve a mínima
má intenção.”
Placar final, após a conversão: Bangu 3 x América 2. E o
Bangu se tornou o campeão carioca de 1966, após derrotar o Flamengo, na final.
Castor de Andrade, na época vice-presidente do Bangu, puxou
o coro: “Um, dois, três, se não corre é de seis...”.
No ano seguinte, Castor se notabilizaria por invadir um
estúdio de TV e apontar uma arma contra o jornalista João Saldanha (futuro
técnico da Seleção brasileira), que havia suscitado a possibilidade de o
goleiro Manga, do Botafogo, ter sido subornado por Castor para deixar o Bangu
vencer – com o detalhe de que o Botafogo havia vencido a partida.
Mas Castor teria sua forra. No jantar da vitória, no clube
Mourisco, Saldanha correu armado em direção ao goleiro Manga, ainda por conta
das suspeitas de suborno. Castor diria, sem esconder um certo sorrido no canto
da boca: “Depois dizem que sou eu o marginal do futebol...”.
São apenas algumas das histórias que pontuam a biografia desse
ícone da bandidagem carioca. Frequentou delegacias, presídios, estádios,
dividiu mesas de jantar no Itamaraty, representou a CBF no exterior, e muito
mais.
Nascido em 1926, Castor estudou no Colégio São Bento, freqüentado
pela elite da cidade, e no Colégio Pedro II, tradicional escola fundada por
nosso segundo Imperador. Formou-se em Direito na Faculdade Nacional, atual
UFRJ.
Seu pai era proprietário de algumas bancas de jogo do bicho
em Bangu. Quando se afastou da contravenção, seu filho herdou a atividade.
Castor tinha cerca de vinte anos e, mesmo formado, nunca abraçou a advocacia.
Castor iniciou sua carreira a todo-vapor. Em 1968, um corpo
foi achado, perfurado de balas, em Itaguaí. Era de Denilson Claudio Brás, conhecido
como Zé Pequeno. Era sobrinho de Natal da Portela. Denilson esteve preso por 10
anos, pelo assassinato de três empregados de Castor, visando a tomar-lhes os
pontos de bicho. Natal acusou Castor pelo homicídio do sobrinho.
Castor, como era de seu feitio, negou o envolvimento em
depoimento na Delegacia de Homicídios de Niterói. Ao ser perguntado se se
dedicava ao jogo do bicho, disse que “teve em sua família contraventores”, mas que
isso não significava que vivesse da contravenção. Disse ao delegado que aquela
era sua primeira vez dentro de uma delegacia. Acrescentou que conhecia Natal da
Portela, a quem o apresentaram na condição de diretor de futebol do Madureira.
Após o AI-5, iniciou-se uma caçada aos bicheiros. Entre 1968
e 1969, banqueiro do bicho foram presos, acusados de enriquecimento ilícito.
Foram eles: Castor de Andrade, Natal, Newton Camelo, Elídio Gomes de Oliveira,
José Caruzzo Escafura, o Piruinha, e Mário Stanile. Primeiro foram para o DOPS.
Após, foram para Ilha Grande, na Penitenciária Cândido Mendes. Sua permanência
na Ilha foi um episódio surreal – ou seria, se não estivéssemos no Brasil...
Advogado, Castor tinha direito a cela especial. Como o
presídio não contava com esse tipo de acomodação, Castor foi abrigado em uma
casa mobiliada, com oito quartos, empregados e quintal, fora do presídio. Os
demais bicheiros ficaram nas celas regulares de 2 x 4 metros quadrados.
Em suas palavras: “Estava confinado na Ilha, mas me deram
uma casa enorme, de oito quartos, que reformei toda. Contratei quatro
empregados, além de um mordomo, e promovia apresentações de escolas de samba,
tinha salão de jogos, telefone, cinema, ficou tão bacana que passou a ser
chamada de ‘Casa de Visitas’. Quando tinha uma visita importante na Ilha, como
não havia lugar para hospedá-lo, o diretor levava-o para a minha casa”, contou
ao Pasquim.
Em parceria com Carlos Imperial, compôs a música “A ilha”.
Em 10 de abril, 4 meses após ser preso, seu Habeas Corpus foi
concedido pelos desembargadores, por unanimidade.
Voltou ao Rio no helicóptero do estado. Quando pousou, foi
preso novamente, no aeroporto de Manguinhos. Agora eram agentes do Cenimar, sob
acusação de contrabando. Castor foi
preso na Ilha das Flores, na Baía da Guanabara. Ficou em cela isolada.
Castor foi, então, vizinho de cela de um preso político, de
quem não sabia o nome, mas que conseguiu fazer passar para a cela do bicheiro
um bilhete: “Meu prezado amigo Castor de Andrade, nesse dia memorável, em que
inauguramos a telecomunicação via tomada entre Subversópolis e Corruptópolis,
quero parabenizá-lo.” Castor traria consigo esse bilhete por muito e muitos
anos.
Foi solto em 1969.
Castor continuaria sob vigilância do governo, mas menos por
suas atividades de bicheiro e mais por seus novos empreendimentos, ligados ao
contrabando. Essa atividade incomodava por prejudicar a indústria nacional,
foco dos investimentos que procuravam desenvolver o país.
O governo sabia que Castor havia montado um negócio
pesqueiro em Porto Seguro, Bahia. A Marinha não engolia a versão de sincero
interesse nos lucros dos pescados. Foi o monitoramento de seus movimentos nesse
novo nicho que o levaram à prisão na Ilha das Flores.
Foram identificados movimentos contrabandistas de Castor em Itaguaí,
no Rio, e em Ponta Negra, Maricá, em parceria com uma empresa, Imperial Volks, DNA
de uma ilha, onde a muamba era desembarcada. Até mesmo redes de eletroeletrônicos faziam parte
do esquema contrabandista, que se estendia de Itaguaí a Paraty, ao longo de
diversos pontos do litoral fluminense.
Outro relatório, aponta que Castor era “receptador de
contrabando”. O movimento se iniciava com uma firma, Navegação e Comércio
Motonave S.A., cujos navios eram abastecidos no Uruguai, quando se direcionavam
à Argentina, para serem carregados de trigo. O comércio internacional e dependia
de autorização do Banco do Brasil e da Marinha Mercante. Essa investigação
suscitou suspeitas de que Castor tivesse a conivência de altas autoridades no
governo.
Desde 1975, as autoridades na Bahia também estavam ao par
das atividades de Castor no estado. Em vistoria no local da empresa pesqueira
de Castor, foi flagrada a presença de Daniel Guedes, vulgo Pinguim (foi
assassinado dentro de um Galpão, em Oswaldo Cruz). Sabia-se que a costa baiana
era propícia para a desova de caixas de mercadorias contrabandeadas, que seriam
recolhidas pelos barcos da empresa.
Já em 1977, suspeitava-se de atividades de Castor, não mais
no contrabando, mas no tráfico de entorpecentes, usando-se das mesmas instalções.
Conforme matéria d’O Estado de S. Paulo: “Porto Seguro, entrada leste do
entorpecente.” Porém agora o movimento eram de muito maior envergadura. Navios sairiam
do Oriente Médio com morfina, cocaína; eram desembarcados no frigorífico de
Porto Seguro e postos na barriga de peixes; eram enviados ao Rio em
caminhões-frigorífico; o viciado escolhia o “peixe” que queria. Essa estratégia
contaria até com a conivência de empregados da Petrobras, dona dos navios, além
dos órgãos de fiscalização.
Castor também recrutou seu corpo de seguranças particulares
a partir das fileiras da repressão oficial, quando do seu desmonte. Por
exemplos, o delegado Mauro Magalhães e o detetive Fernando Gargaglione.
Esses dói nomes surgiram em uma planilha encontrada no
imóvel de Castor, em Bangu, no âmbito da chamada Operação Mãos Limpas
Tupiniquim, primeira referência àquela italiana. Além dos dois policias,
surgiam nomes de autoridades como Nilo Batista, então governador, advogados,
jornalistas, membros da cúpula da segurança no estado, etc. Todos recebiam
propina do bicheiro.
Essa Operação coordenada pelo MPRJ e seu nome derivava da
Operação homônima, na Itália, que tinha como alvo a influência da máfia local
sobre negócios lícitos, ilícitos e mesmo a política local. Sem dúvidas algo
bastante semelhante com o que ocorria aqui.
O Procurador responsável foi Paulo Biscaia e a juíza, Denise
Frossard.
Nilo explicou que seu nome estava nas planilhas por ter
intermediado uma doação do bicheiro à Abia, Associação de apoio a pessoas com
Aids, coordenada por Betinho (sociólogo Herbert de Souza). Betinho admitiu ter
recebido 40 mil dólares para a sua associação beneficente dessa maneira.
Quanto aos agente supra, Magalhães laborou nas
interrogatórios de presos políticos confinados no Estádio Caio Martins, em
Niterói. Foi transferido para uma delegacia em Petrópolis. Em depoimento, admitiu
ter conhecimento de torturas e da existência da Casa da Morte. Negou relação
com o jogo do bicho, acusou o MP de perseguição, por seu nome figurar nas
planilhas do Castor.
Magalhães também foi o delegado da Polinter, quando da
prisão dos bicheiros, já em conseqüências da Operação. Nesse período, Castor
foi acusado de pagar por diversas reformas na carceragem. Em retribuição, os
bicheiros tinham diversas regalias, como uso de celulares. Magalhães negou ter
dado essa autorização.
Quanto a Gargaglione,
este admitiu sua atuação na repressão, em entrevista. Quando perguntado se ele
se dedicara a realizar interrogatórios ou a dirigir sessões de tortura,
respondeu: “Olha, filho, bateu-se muito nesse Rio. Bateu-se com vontade. Alguns
interrogavam, mas tinha um grupo que já chegava botando o cara no pau de arara.
Vi muita gente roxa de porrada. Fizeram muita barbaridade.”
As funções delegadas aos seus agentes por Castor eram:
garantir uma rede de proteção aos seus territórios; ser informado
antecipadamente sobre eventuais operações; eliminar desafetos e inimigos.
Quanto à caçada aos bicheiros, empreendida pelo regime
militar a partir do AI-5, em 1968, sobreviveu por menos de 10 anos.
As investigações sobre jogos de azar, exploração da
prostituição e tráfico de drogas ficavam a cargo de uma espécie de Tribunal de
exceção, chamada CGI – Comissão Geral de Investigação. Desde janeiro de 1969,
essa Comissão teve seu papel ampliado. Podia investigar servidores públicos ou
particulares e era presidida pelo Ministro da Justiça.
Até 1974, a CGI tinha em seu poder mais de 2 mil processos
que investigavam bicheiros. A grande maioria era arquivada, pois dependiam de
orientação do Ministro, que nunca a emitia.
Em 1976, a atuação da CGI contra bicheiros foi
definitivamente enterrada. Geisel orientou o Ministro da Justiça Armando Falcão
no sentido de que o combate ao jogo do bicho era atribuição dos Estados. Todos
os processos em curso foram estavam extintos.
Interessante observar o senso crítico e a sinceridade das
análises escritas nos relatórios da época: “... não interessa atingir os
miseráveis, aqueles que vendem o jogo, mas sim os banqueiros, os donos das
chamadas ‘fortalezas’. Esses são resguardados e protegidos.”
Como os demais contraventores, Castor também cultivava o
sonho de se tornar uma figura mais bem vista, aceita socialmente, sem despertar
repúdio ou vergonha nas classes altas pelo simples fato de estarem no mesmo
ambiente. A tática também foi a mesma: tornar-se patrono de uma Escola de
Samba. O sucesso dos desfiles, atraindo turistas e a atenção de todo o mundo
apontava o caminho que deveriam trilhar.
(Continua!)
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Os porões da contravenção”
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