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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

PAX SEM VOZ NÃO É PAX, É MEDO


Na atual Grã Bretanha, nos arredores do monte Graupius, no ano 83 d.C., romanos e bretões finalmente se enfrentavam. A resistência bretã passaria história em cantos e versos até hoje entoados.

Sabe-se do seu desenrolar graças a Tácito, um dos mais importantes historiadores romanos. Tácito não esteve no local do conflito, mas era casado com a filha do general romano que liderou a invasão: Agrícola.
Por seu turno, os opositores, conhecidos como caledônios, eram liderados pelo seu mais terrível soldado: Cálgaco. Conhecidos pelos romanos como “homens do norte”, somavam 30 mil naqueles dias. E não estavam dispostos a deixar que os romanos os conquistassem facilmente.

Antes da batalha, Cálgaco juntou seus homens e gritou a plenos pulmões: “Homens do norte!” – o alarido dos soldados abafava sua voz. Aumentou o tom: “Homens! Ouçam!” – e o respeito que aquele guerreiro impunha fez as vozes se calarem. “Homens do norte! Esta é a aurora da liberdade para a Bretanha! Vamos lutar, todos juntos. É um dia para heróis – e, mesmo que você seja um covarde, lutar é a coisa mais segura a fazer agora!”

Naquela hora, o sol conseguiu romper a escuridão das primeiras horas da manhã. De novo, sua voz foi abafada pelos uivos dos seus homens sedentos por sangue romano. Cálgaco ergueu a cabeça e urrou: “Ouçam-me! Vivemos no fim do mundo. Somos os últimos homens livres sobre a Terra. Não há ninguém mais depois de nós – não há nada ali exceto rochas e ondas, e mesmo estas estão cheias de romanos. Não há como escapar deles. Roubaram o mundo, e agora vêm roubando tudo o que encontram pela terra, saqueiam até mesmo o mar. Se imaginam que você tem algum dinheiro, tacam-no por cobiça; se você não tem nada, atacam-no por arrogância. Eles roubaram todo o oriente e todo o ocidente, mas ainda não estão satisfeitos. São o único povo da Terra que rouba tanto ricos quanto pobres. Dão ao roubo, à matança e ao estupro o mentiroso nome de governo! Criam a devastação e chamam-na paz!”

Suas palavras finais foram completamente abafadas pelos gritos de seus homens, somados ao tilitar das espadas batendo contra os escudos. Sem que se precisasse ordenar, começaram a marchar em direção ao inimigo, que se encontrava a menos de 1 quilômetro dali, aguardando-os. Aliás, aguardavam esse encontro há mais de 6 anos. Os romanos estavam em menor número.

Agrícola assim dispôs seus soldados: à frente, os ajudantes (lutavam pelo dinheiro que conseguiam saquear das cidades e eram agraciados com a cidadania romana após 25 anos de serviços prestados), em geral não eram romanos; atrás, seguiam-se os legionários, a elite do exército romano, os melhores soldados do mundo; por último, os porta-estandartes. Agrícola pôs-se à frente desses últimos.

Ao notar o inimigo totalmente reunido no vale, Agrícola mandou que seus homens avançassem.

Seguiu-se um banho de sangue e de espadas e lanças atravessando corpos e extirpando membros inteiros. Os ajudantes mantinham a marcha, arrastando suas pesadas armaduras, perfuravam costelas e pisoteavam suas vítimas, deixando para os soldados que vinham imediatamente atrás a tarefa de tirar o último sopro do inimigo abatido.

O avanço era duro. Conforme subiam as encostas, encharcados de sangue e suor, os romanos desfaziam suas ordenadas fileiras. Ao mesmo tempo, os caledônios não se rendiam. Conforme viam o inimigo reduzir sua marcha decidida, mais se ordenavam e se amontoavam, dificultando ainda mais a vida dos romanos.

A cavalaria Caledônia, montada em pôneis, tomou coragem e avançou ameaçadoramente em direção aos romanos.

Apreensivo, Agrícola fez soar a trombeta, sinal para o avanço da cavalaria, até então recuada. Imediatamente, a coluna tornou-se linha. Novo trombetear, agora os homens baixaram suas lanças. Após o terceiro toque, a cavalaria partiu, exalando a selvageria que lhe era característica.

A matança se prolongou até o cair da noite. Calcula-se que tenham massacrado cerca de 10 mil caledônios. Cálgaco teria sido um deles. Agrícola saiu da batalha sem um arranhão sequer. Dentre os ajudantes “romanos” – como se sabe, eram todos bárbaros -, apenas 360 baixas. Dentre os legionários, zero mortos.
Tácito descreve o cenário testemunhado com o nascer do sol na manhã seguinte: “Um silêncio terrível se instalara por toda parte. Os montes estavam desertos, as casas fumegavam a distância e nossos batedores não encontraram ninguém”.

O que Cálgaco professara, os romanos reafirmaram: Roma fizera uma devastação e chamava isso de paz.    
     

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

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