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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

QUANDO AS CANETAS LUTARAM CONTRA BAIONETAS – A II GUERRA MUNDIAL E A GUERRA DOS LIVROS – PARTE 1


Em 10 de maio de 1933, na cidade Berlim, houve um evento chocante, que seria acompanhado com preocupação em todo o mundo.

Milhares de estudantes, vestidos com uniformes universitários, percorreram um caminho iluminado por tochas, até a Bebelplatz, entre a Universidade Freidrich Wilhem e a Ópera de Berlim. Cerca de 80 mil pessoas estavam lá reunidas, aguardando ansiosamente o início do espetáculo.

No centro da praça, uma pira de toras cruzadas, medindo 3,5 metros de largura x 1,5 metros de altura aguardava pacientemente, até que os primeiros manifestantes lá despejaram suas tochas. Labaredas azuis ganharam o céu.

Uma outra procissão, de automóveis, cercou a Bebelplatz. Um estudante se aproximou do primeiro veículo. Em seu interior havia uma pilha de livros. Retirou-se o primeiro deles e foi passado para um segundo estudante, e assim procedeu-se até que o livro chegasse às mãos do estudante mais próximo da fogueira. Este, arremessou o livro às chamas.

Ouviram-se aplausos.

Repetiu-se o gesto, até que todos os livros estivessem ardendo na fogueira. Alguns estudantes pareciam carregar consigo todos os livros que eram capazes de transportar.

Por alguns instantes a cerimônia macabra foi interrompida. Um estudante resolveu fazer um discurso. Em suas palavras, deveria-se assegurar a pureza da literatura alemã; era necessário queimar todos os livros e documentos não-alemães. Isso incluía todas as obras de autores judeus: “... o judeu, que é poderoso em intelecto, mas fraco de sangue ...continua sem ser compreendido na presença do pensamento alemão, não consegue dignificá-lo e, portanto, está destinado a ofender o espírito alemão”.  

Reiniciada a encenação trágica, outro estudante anunciou os nomes dos autores cujas obras seriam incineradas, a par dos motivos para tanto: Sigmund Freud, foi acusado de falsificar a literatura alemã e degradar grandes nomes da história; Emil Ludwig foi criticado por sua “desonestidade literária e alta traição contra a Alemanha”; Erich Maria Remarque foi condenado por denegrir a língua lema e os ideais nacionais. E assim prosseguiu.

A influência do Partido Nazista sobre esse evento foi inicialmente negado, mas posteriormente comprovado. Paul Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda, chegou ao local. Goebbels supervisionava a Câmara de Cultura do Reich, responsável por supervisionar obras de literatura, imprensa, rádio, teatro, música, artes plásticas e cinema.

Goebbels repudiava os autores politicamente progressistas, isto é, quem defendia o pacifismo, o socialismo, reformas e liberdade sexual. Todos os livros que abordavam esses temas estavam condenados  queimar na fogueira nazista.

Após subir à tribuna, declarou que “o intelectualismo judeus” estava “morto” e que o “nacional-socialismo” tinha “desbastado o caminho”. Prosseguiu: “Nunca antes os jovens tiveram tal direito de limpar os escombros do passado. Se os velhos não entendem o que está acontecendo, deixem que eles compreendam que nós, os jovens, avançamos e fizemos acontecer”.

Após, uma canção ecoou: “A nação às armas”. O ato fúnebre foi transmitido a toda a nação, por rádio, e filmado em película. Cinemas de todo o país exibiram o triste espetáculo, com legendas, explicando as razões para tal, como se essas de fato houvessem.

Outras 93 fogueira se somaram à de Berlim, causando o mesmo impacto e recebendo a mesma atenção. Apenas aquela da Universidade de Kiel queimou 2 mil livros. Em Munique, os estudantes reuniram 100 obras, retiradas da Biblioteca universitária.

Também em Munique, alunos de escolas secundárias lançaram às chamas obras de cunho marxista. Em Breslau, o total de livros incinerados chegava a 2 toneladas – fizeram-no em apenas 1 dia.

A perseguição literária envolvia também buscas em domicílio, atrás de obras “transgressoras”.
A lista divulgada pelos nazistas, contendo os autores banidos, incluía: Karl Marx, Upton Sinclair, Jack London, Heinrich Mann, Helen Keller, Albert Einstein, Thomas Mann e Arthur Schnitzler.

Hellen Keller divulgou uma carta, em que expunha seu choque e sua incredulidade quanto ao que estava acontecendo, quanto mais no país onde surgiu a prensa tipográfica: “Se vocês acham que podem matar as idéias, a história não lhes ensinou nada. OS tiranos muitas vezes tentaram fazer isso antes, e as idéias se ergueram com toda a força e os destruíram. Vocês podem queimar meus livros e os livros das maiores mentes da Europa, mas as idéias neles já se infiltraram através de milhões de canais e continuarão a estimular outras mentes”, vaticinou.

Sinclair Lewis afirmou que os autores cujas obras eram lançadas nas chamas “deviam só sentir satisfação em receber essa homenagem involuntária de uma turba organizada.” H. G. Wells afirmou que as queimas de livros “jamais destruíram um livro, pois os livros, depois de impressos, possuem uma vitalidade que supera qualquer ser humano, e continuam falando como se nada tivesse acontecido.” Wells via apenas “uma revolução tosca e grosseira contra o pensamento, a sensatez e os livros.”

Inconformado com a celebração à ignorância encenada na Alemanha, Weels fundou a Biblioteca dos Livros Queimados, em Paris, onde abrigava exemplares de todos os livros proibidos ou queimados pelos nazistas.
O jornal New York Times chamou o evento de “holocausto literário”. A revista Times batizou de “bibliocausto”. Soava simplesmente absurdo que o país que, por tanto tempo se orgulhara de suas Universidades, tenha instantaneamente as visto se transformarem em sua vergonha, sob os olhos do mundo.
Protestos eclodiram em Nova York, Chicago e na Filadélfia.

Após chegar ao poder, Hitler fez aprovar uma série de leis que procuravam ajustar a nação a suas concepções políticas. Em 1935, por exemplo, Mein Kampf (livro escrito por Hitler quando de sua prisão, no início dos anos 1920) tornou-se leitura obrigatória nas escolas. Um exemplar do “manual nazista” era dado a cada casal, assim que trocavam alianças.

Hitler e os nazistas objetivavam criar a impressão de que apenas alemães de sangue puro tinham realizado contribuições artísticas e culturais relevantes, dignas de figurarem em um museu. Com tal intuito criou o Dia da Arte Alemã. Ele mesmo selecionava os trabalhos que seriam exibidos e aqueles que seriam agraciados com um prêmio.

Os museus também foram “purificados” por Hitler e Goebbels, expurgando obras da lavra de judeus e outros artistas considerados indignos.

Os diretores de escolas também foram especialmente orientados acerca dos novos padrões artísticos definidos pelos nazistas. Esses profissionais foram ordenados a ensinar “tudo o que concerne à pátria e à história alemã, com ênfase especial em relação aos últimos vinte anos, e a ciência racial, hereditariedade e genealogia.” Foram orientados também a “enfatizar sistematicamente que a infiltração de sangue estrangeiro no povo alemão, sobretudo judeu e negro, devia ser totalmente impedida.” Os professores deveriam deixar claras as diferenças mentais e espirituais entre as raças, nas aulas de biologia racial. Os perigos da deterioração racial deveriam ficar patentes a todos os alunos.

Professores judeus e de tendência progressista foram demitidos: em algumas escolas, eles eram 33% do quadro de funcionários. Goebbels criou mecanismos para que o preço dos aparelhos de rádio na Alemanha fosse reduzido, de forma a cada família poder ter um em casa e, assim, tivessem acesso às mensagens do Fuhrer. Não poderiam escapar da lavagem-cerebral em curso.

Os produtores de cinema trabalhavam sob os olhares atentos do regime. Goebbels aprovava roteiros, vetava produções e decidia se dada obra poderia ser exibida ou não.

Diante das novas regras de produção, o público passou a reclamar da qualidade dos filmes, julgando-os tolos, superficiais, infantis e absolutamente acríticos. Goebbels culpou os críticos por fazerem os alemães assim pensarem. Resultado: a crítica de cinema foi banida do país em 1936.

Em 1938, o saldo da proibição era: 18 categorias de livros censuradas; 4.175 títulos e obras completas de 565 autores vetados.

(Continua!)
  
       
Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Quando os livros foram à guerra”

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