A máquina da repressão militar tomou corpo a partir de 1970,
quando ocorreram as primeiras missões dos DOIs – Departamentos de Operações de
Informações. Mas a masmorra continuava sendo a Vila Militar, agora sob o
comando do major Ênio de Albuquerque Lacerda. A primeira vítima dói Severino
Viana Colou, presidente da Associação de Cabos e Sargentos da PM do estado da
Guanabara e integrante do Comando de Libertação Nacional – Colina. O Exército
alegou que ele se enforcou na prisão, usando as próprias calças, embora a foto
do óbito revele um homem com os pés apoiados no chão.
Embora, vez ou outra, a repressão enfrentasse pessoas com
preparo militar, em geral, eram jovens despreparados e que lutavam apenas pelo
desejo de lutar contra o que rejeitavam. Um deles, Eremias Delizoicov,
estudante paulista de 18 anos, em 1969, foi encarregado do enfrentamento às
tropas que procuravam destruir o aparelho do qual fazia parte, a Vanguarda
Popular Revolucionária – VPR, no subúrbio do Rio de Janeiro. Em meio ao
confronto, Eremias conseguiu acertar dois tiros, um deles na perna de Guimarães.
O contraventor mancaria pelo resto da vida. Eremias teve o corpo perfurado por
33 tiros.
Ao fim do tiroteio cerrado, e aos 29 anos apenas, Guimarães
recebeu uma medalha e o respeito que o tornaria imune à descoberta de sua
atuação no submundo do contrabando. Essa foi a razão de não ter sido
imediatamente expulso do Exército.
No dia 21 de novembro do mesmo ano, Guimarães e sua tropa
foi acionado para o estouro de outro aparelho da subversão. Agora o alvo era a
Vanguarda Armada Revolucionária Palmares – VAR-Palmares -, na rua Aquidabã, no
bairro Lins de Vasconcelos, RJ.
Estavam presentes no tal aparelho, Chael Charles Schneider,
ao lado de um casal. Tentaram resistir, mas foram derrotados. Chael fazia parte
da dietoria da VAR-Palmares, usando o codinome Joaquim, ao lado de Dilma
Rousseff.
Presos, os três – Chael e o casal de amigos – começaram a
apanhar. Chael morreria 24 horas depois, à base de murros e pontapés. Levado ao
Hospital Central do Exército, o general responsável pelo estabelecimento se
recusou a recebê-lo como se vivo estivesse, pedido feito pelos militares que o
mataram. O laudo confirmou as múltiplas lesões por ele sofridas. Seu pênis
estava dilacerado.
Mas isso não impediu o Exército de declarar que Chael
morrera de ataque cardíaco.
Liberado dos cuidados médicos, Guimarães recobrou sua rotina
de missões e noites dormidas em delegacias. Segundo amigos, não interrogava
ninguém com capuz na cabeça. Fazia-o de cara limpa.
Uma das pessoas que Guimarães interrogara foi a psicóloga
Cecília Coimbra, em agosto de 1970, no quartel da Polícia do Exército (PE),
localizado na rua Barão de Mesquita, Tijuca, RJ. O objeto da investigação era o
seqüestro do Embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben. Cacília foi acusada de
ligação com o Movimento Revolucionário Oito de Outubro, MR-8. Não chegou a ser
agredida fisicamente, apenas verbalmente. A psicóloga se lembra do quadro que
ornava a parede atrás de Guimarães: uma caveira e duas tíbias (ossos) cruzados,
além de duas letras brancas “EM”, sobre um fundo negro. EM seria Esquadrão da
Morte.
Guimarães foi aluno no CEP. Os interrogatórios eram a parte
prática do curso de tortura que realizara. Esse curso formaria a mão-de-obra
macabra que exterminou todos os grupos da subversão, entre 1968 e 1974.
Em agosto de 1970, Guimarães iniciou a segunda parte do
curso, na categoria B. Mudou-se também para Copacabana.
Os cursos das categorias B e C, começaram em 1966, e visavam
ao combate às ações da esquerda armada. Ensinavam-se técnicas de interrogatório,
a disfarçar-se, a penetrar em residências sem deixar vestígios e a pensar como
o inimigo etc.
A técnica vigente até então, que se usava de aberta
violência física no pau-de-arara, passou a coexistir com outros métodos de
tortura, por meio do terror psicológico. Também aprenderam a montar cárceres
clandestinos, onde poderiam torturar e matar tranquilamente, sem as poucas
restrições dos quartéis.
Casou-se em 1971 e se mudou para a rua Domingos Ferreira,
também em Copacabana. Tornou-se instrutor dos cursos do CEP e teve um filho,
Ailton Guimarães Jorge Júnior.
Ao mesmo tempo, Guimarães passou a se cercar de policiais afamados
por suas atividades junto ao crime organizado. De fato, equilibravam-se entre o
combate e a adesão co crime.
Esses policiais perfaziam os malfadados “homens de ouro” da
Polícia Civil. Montados pelo ex-secretário de segurança no governo Negrão de
Lima, estado da Guanabara, em 1969, diante de uma escalada do crime. Os 11 “homens
de ouro” tinham carta branca para agir, matar. Seu fundador foi também quem
criou a sanguinária Scuderie Le Cocq, criada para vingar a morte do delegado
Milton Le Cocq, assassinado pelo bandido Cara de Cavalo.
O Brasil era àquela época uma economia fechada. Nesse
ambiente, uma atividade bastante lucrativa é o contrabando. Contrabandeava-se
de tudo: uísque, calça Lee, perfumes etc. Esse mercado era explorado
basicamente por bicheiros e policiais.
Um dos maiores contrabandistas do estado era também amigo de
Guimarães, chamava-se Euclides Nascimento, atendia mais frequentemente pelo
apelido de Garotinho, e era um dos “homens de ouro” da Polícia Civil. Já era
proprietário de uma fazenda de gados – eram ferrados com a marca da caveira,
cruzada por duas tíbias – e uma lancha no Iate Clube de Ramos.
Pretendendo ampliar suas atividades no contrabando, Garotinho
abriu as portas ao amigo Guimarães. Em
pouco tempo já eram diversos os militares e policiais presos em flagrante,
contrabandeando mercadorias. O que antes faziam por obrigação advinda da
profissão, agora o faziam por dinheiro.
A primeira missão do grupo foi a invasão de um sítio em
Campo Grande, no Rio. As mercadorias seqüestradas pertenciam a três policiais
militares – um major e dois capitães. As caixas de uísque House of Lords,
perfumes Artmatic e milhares de calças e jaquetas Lee. Parte foi entregue a um
comerciante que pagou 15 mil dólares por cada caixa. O restante, foi devolvido,
em troca de mais informações sobre mais contrabandistas para extorquir.
Mas algo saiu do seu controle. Guimarães foi denunciado e
preso. Sua reputação foi reduzida a pó e teve de deixar o DOI, sendo
transferido para um trabalho burocrático: auxiliar de almoxarife, em São
Cristóvão.
Nessa época, nasceu sua filha, Danielle Brasiliense Guimarães
Jorge.
Abusando da impunidade e do corporativismo, algum tempo
depois Guimarães foi preso novamente, dessa feita após pedir ajuda de uma
viatura de polícia para afastar outros dois policiais que flagraram o bando em
ação.
Agora a denúncia apareceu nos radares do SNI – Serviço Nacional
de Inteligência – e da Polícia Federal. A investigação desmontou toda a
quadrilha – Guimarães, um major, oito militares da PE e um do DOI, além de um
civil. Foi preso e abriu-se um IPM contra Guimarães.
Os atos dos presos ensejaram ira na cúpula das Forças
Armadas. Presos, receberam do veneno que se acostumaram a ministrar: violência
extrema, até darem todos os nomes. Usou-se a geladeira, prisão-frigorífico e o
frio intenso como técnica de tortura. Estavam presos no DOI.
Euclides Nascimento, o Garotinho, sofre arritmia cardíaca.
Dois contrabandistas sofreram de pneumonia. Manuel Português, civil membro da
quadrilha perdeu quase todos os dentes por socos.
Aberto o processo contra si na Auditoria Militar, Guimarães
teve de deixar os quartéis. Foi agregado em julho de 1976. O afastamento
forçado duraria até 1981. Durante esse intervalo, Guimarães chafurdou ainda
mais no submundo do crime e da contravenção.
Antes de deixar a vida militar, Guimarães ajudou na fuga do
presídio Candido Mendes, em Ilha Grande, de Mariel Maryscotte de Mattos, a
bordo de uma lancha. Mariel também era m “homem de ouro” da Polícia Civil, que
debandara para o crime organizado. Eram amigos desde os tempos de operações
polícia-militares.
Guimarães também teve seu momento “breaking bad”. Sua filha
teve escorbuto, na época chamada também de “doença do marinheiro”.
Caracterizava-se por deficiência de vitamina C.
Foi então que Ângelo Maria Longa, o Tio Patinhas, gângster do
bicho, ofereceu-se para pagar o tratamento. A filha morreu, mas a gratidão
sobreviveu.
As torturas sofridas nos porões pelos contrabandistas, resultariam
num destino bastante diverso daquele das vítimas comuns. A Justiça Militar
anulou todas as provas do IPM e absolveu os réus. Nem sempre o pau que bate em
Chico bate em Francisco...
O corporativismo ficou patente ao não se individualizarem as
condutas, de modo a punir os responsáveis por perpetrar as torturas. Mas aí já
seria exigir demais...
Guimarães foi
reintegrado, mas o Exército já o considerava persona non grata. O coronel Ari
de Aguiar Freire foi encarregado de dar o recado: não o queremos mais.
O citado coronel Aguiar, membro do SNI e envolvido na morte
do jornalista Alexandre Von Baumgarten e ao esândalo Capemi, julgava que
Guimarães seria um excelente informante, caso ganhasse as ruas.
Deixou o Exército, oficialmente, em 13 de maio de 1980. Mas
não ficaria somente nisso. Guimarães levou também contingentes militares para
suas novas atividades. Abriria caminho no peito e na marra em direção ao
controle do jogo do bicho e das atividades a ele periféricas. Ao levar o que
aprendera até então para o mundo da contravenção, lançaria as bases de um novo
patamar no crime organizado.
A aparência, contudo, seguia o lugar-comum dos bicheiros:
relógio Cartier de ouro, blazer sobre uma camisa de botão aberta, cordão de
ouro bem grosso, topete de artista de cinema dos anos 1950 e uma pistola 9mm a
tiracolo.
Sua fama: valente e matador.
(Continua!)
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Os porões da contravenção”
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