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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

DO BICHO À MÁFIA: COMO TORTURADORES E BICHEIROS MOLDARAM O CRIME ORGANIZADO NO RIO DE JANEIRO – PARTE 2


A máquina da repressão militar tomou corpo a partir de 1970, quando ocorreram as primeiras missões dos DOIs – Departamentos de Operações de Informações. Mas a masmorra continuava sendo a Vila Militar, agora sob o comando do major Ênio de Albuquerque Lacerda. A primeira vítima dói Severino Viana Colou, presidente da Associação de Cabos e Sargentos da PM do estado da Guanabara e integrante do Comando de Libertação Nacional – Colina. O Exército alegou que ele se enforcou na prisão, usando as próprias calças, embora a foto do óbito revele um homem com os pés apoiados no chão.

Embora, vez ou outra, a repressão enfrentasse pessoas com preparo militar, em geral, eram jovens despreparados e que lutavam apenas pelo desejo de lutar contra o que rejeitavam. Um deles, Eremias Delizoicov, estudante paulista de 18 anos, em 1969, foi encarregado do enfrentamento às tropas que procuravam destruir o aparelho do qual fazia parte, a Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, no subúrbio do Rio de Janeiro. Em meio ao confronto, Eremias conseguiu acertar dois tiros, um deles na perna de Guimarães. O contraventor mancaria pelo resto da vida. Eremias teve o corpo perfurado por 33 tiros.

Ao fim do tiroteio cerrado, e aos 29 anos apenas, Guimarães recebeu uma medalha e o respeito que o tornaria imune à descoberta de sua atuação no submundo do contrabando. Essa foi a razão de não ter sido imediatamente expulso do Exército.

No dia 21 de novembro do mesmo ano, Guimarães e sua tropa foi acionado para o estouro de outro aparelho da subversão. Agora o alvo era a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares – VAR-Palmares -, na rua Aquidabã, no bairro Lins de Vasconcelos, RJ.

Estavam presentes no tal aparelho, Chael Charles Schneider, ao lado de um casal. Tentaram resistir, mas foram derrotados. Chael fazia parte da dietoria da VAR-Palmares, usando o codinome Joaquim, ao lado de Dilma Rousseff.

Presos, os três – Chael e o casal de amigos – começaram a apanhar. Chael morreria 24 horas depois, à base de murros e pontapés. Levado ao Hospital Central do Exército, o general responsável pelo estabelecimento se recusou a recebê-lo como se vivo estivesse, pedido feito pelos militares que o mataram. O laudo confirmou as múltiplas lesões por ele sofridas. Seu pênis estava dilacerado.

Mas isso não impediu o Exército de declarar que Chael morrera de ataque cardíaco.

Liberado dos cuidados médicos, Guimarães recobrou sua rotina de missões e noites dormidas em delegacias. Segundo amigos, não interrogava ninguém com capuz na cabeça. Fazia-o de cara limpa.
Uma das pessoas que Guimarães interrogara foi a psicóloga Cecília Coimbra, em agosto de 1970, no quartel da Polícia do Exército (PE), localizado na rua Barão de Mesquita, Tijuca, RJ. O objeto da investigação era o seqüestro do Embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben. Cacília foi acusada de ligação com o Movimento Revolucionário Oito de Outubro, MR-8. Não chegou a ser agredida fisicamente, apenas verbalmente. A psicóloga se lembra do quadro que ornava a parede atrás de Guimarães: uma caveira e duas tíbias (ossos) cruzados, além de duas letras brancas “EM”, sobre um fundo negro. EM seria Esquadrão da Morte.

Guimarães foi aluno no CEP. Os interrogatórios eram a parte prática do curso de tortura que realizara. Esse curso formaria a mão-de-obra macabra que exterminou todos os grupos da subversão, entre 1968 e 1974.
Em agosto de 1970, Guimarães iniciou a segunda parte do curso, na categoria B. Mudou-se também para Copacabana.

Os cursos das categorias B e C, começaram em 1966, e visavam ao combate às ações da esquerda armada. Ensinavam-se técnicas de interrogatório, a disfarçar-se, a penetrar em residências sem deixar vestígios e a pensar como o inimigo etc.

A técnica vigente até então, que se usava de aberta violência física no pau-de-arara, passou a coexistir com outros métodos de tortura, por meio do terror psicológico. Também aprenderam a montar cárceres clandestinos, onde poderiam torturar e matar tranquilamente, sem as poucas restrições dos quartéis.
Casou-se em 1971 e se mudou para a rua Domingos Ferreira, também em Copacabana. Tornou-se instrutor dos cursos do CEP e teve um filho, Ailton Guimarães Jorge Júnior.   

Ao mesmo tempo, Guimarães passou a se cercar de policiais afamados por suas atividades junto ao crime organizado. De fato, equilibravam-se entre o combate e a adesão co crime.

Esses policiais perfaziam os malfadados “homens de ouro” da Polícia Civil. Montados pelo ex-secretário de segurança no governo Negrão de Lima, estado da Guanabara, em 1969, diante de uma escalada do crime. Os 11 “homens de ouro” tinham carta branca para agir, matar. Seu fundador foi também quem criou a sanguinária Scuderie Le Cocq, criada para vingar a morte do delegado Milton Le Cocq, assassinado pelo bandido Cara de Cavalo.

O Brasil era àquela época uma economia fechada. Nesse ambiente, uma atividade bastante lucrativa é o contrabando. Contrabandeava-se de tudo: uísque, calça Lee, perfumes etc. Esse mercado era explorado basicamente por bicheiros e policiais.

Um dos maiores contrabandistas do estado era também amigo de Guimarães, chamava-se Euclides Nascimento, atendia mais frequentemente pelo apelido de Garotinho, e era um dos “homens de ouro” da Polícia Civil. Já era proprietário de uma fazenda de gados – eram ferrados com a marca da caveira, cruzada por duas tíbias – e uma lancha no Iate Clube de Ramos.

Pretendendo ampliar suas atividades no contrabando, Garotinho abriu as portas ao amigo Guimarães.  Em pouco tempo já eram diversos os militares e policiais presos em flagrante, contrabandeando mercadorias. O que antes faziam por obrigação advinda da profissão, agora o faziam por dinheiro.

A primeira missão do grupo foi a invasão de um sítio em Campo Grande, no Rio. As mercadorias seqüestradas pertenciam a três policiais militares – um major e dois capitães. As caixas de uísque House of Lords, perfumes Artmatic e milhares de calças e jaquetas Lee. Parte foi entregue a um comerciante que pagou 15 mil dólares por cada caixa. O restante, foi devolvido, em troca de mais informações sobre mais contrabandistas para extorquir.

Mas algo saiu do seu controle. Guimarães foi denunciado e preso. Sua reputação foi reduzida a pó e teve de deixar o DOI, sendo transferido para um trabalho burocrático: auxiliar de almoxarife, em São Cristóvão.
Nessa época, nasceu sua filha, Danielle Brasiliense Guimarães Jorge.

Abusando da impunidade e do corporativismo, algum tempo depois Guimarães foi preso novamente, dessa feita após pedir ajuda de uma viatura de polícia para afastar outros dois policiais que flagraram o bando em ação.

Agora a denúncia apareceu nos radares do SNI – Serviço Nacional de Inteligência – e da Polícia Federal. A investigação desmontou toda a quadrilha – Guimarães, um major, oito militares da PE e um do DOI, além de um civil. Foi preso e abriu-se um IPM contra Guimarães.

Os atos dos presos ensejaram ira na cúpula das Forças Armadas. Presos, receberam do veneno que se acostumaram a ministrar: violência extrema, até darem todos os nomes. Usou-se a geladeira, prisão-frigorífico e o frio intenso como técnica de tortura. Estavam presos no DOI.   

Euclides Nascimento, o Garotinho, sofre arritmia cardíaca. Dois contrabandistas sofreram de pneumonia. Manuel Português, civil membro da quadrilha perdeu quase todos os dentes por socos.

Aberto o processo contra si na Auditoria Militar, Guimarães teve de deixar os quartéis. Foi agregado em julho de 1976. O afastamento forçado duraria até 1981. Durante esse intervalo, Guimarães chafurdou ainda mais no submundo do crime e da contravenção.  

Antes de deixar a vida militar, Guimarães ajudou na fuga do presídio Candido Mendes, em Ilha Grande, de Mariel Maryscotte de Mattos, a bordo de uma lancha. Mariel também era m “homem de ouro” da Polícia Civil, que debandara para o crime organizado. Eram amigos desde os tempos de operações polícia-militares.

Guimarães também teve seu momento “breaking bad”. Sua filha teve escorbuto, na época chamada também de “doença do marinheiro”. Caracterizava-se por deficiência de vitamina C.

Foi então que Ângelo Maria Longa, o Tio Patinhas, gângster do bicho, ofereceu-se para pagar o tratamento. A filha morreu, mas a gratidão sobreviveu.

As torturas sofridas nos porões pelos contrabandistas, resultariam num destino bastante diverso daquele das vítimas comuns. A Justiça Militar anulou todas as provas do IPM e absolveu os réus. Nem sempre o pau que bate em Chico bate em Francisco...

O corporativismo ficou patente ao não se individualizarem as condutas, de modo a punir os responsáveis por perpetrar as torturas. Mas aí já seria exigir demais...

Guimarães foi reintegrado, mas o Exército já o considerava persona non grata. O coronel Ari de Aguiar Freire foi encarregado de dar o recado: não o queremos mais.

O citado coronel Aguiar, membro do SNI e envolvido na morte do jornalista Alexandre Von Baumgarten e ao esândalo Capemi, julgava que Guimarães seria um excelente informante, caso ganhasse as ruas.

Deixou o Exército, oficialmente, em 13 de maio de 1980. Mas não ficaria somente nisso. Guimarães levou também contingentes militares para suas novas atividades. Abriria caminho no peito e na marra em direção ao controle do jogo do bicho e das atividades a ele periféricas. Ao levar o que aprendera até então para o mundo da contravenção, lançaria as bases de um novo patamar no crime organizado.

A aparência, contudo, seguia o lugar-comum dos bicheiros: relógio Cartier de ouro, blazer sobre uma camisa de botão aberta, cordão de ouro bem grosso, topete de artista de cinema dos anos 1950 e uma pistola 9mm a tiracolo.

Sua fama: valente e matador.

(Continua!)


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Os porões da contravenção”

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