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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

DO BICHO À MÁFIA: COMO TORTURADORES E BICHEIROS MOLDARAM O CRIME ORGANIZADO NO RIO DE JANEIRO – PARTE 6


A Escola de Samba Mocidade Independente de Padre de Miguel é famosa pela sua bateria, de notável beleza rítmica. Desde os anos 1960 essa bateria revoluciona o modo de se tocar samba-enredo. Comandada por José Pereira da Silva, o Mestre André, a indefectível “paradinha” ousava e abusava da criatividade. Sebastião Esteves, o Tião Miquimba, foi quem inventou a marcação do surdo de terceira.
A história da Mocidade começa no futebol, com time Independente Futebol Clube. Em 1955, nasceu a Escola de Samba, reunindo os sambistas moradores da Vila Vintém. Não tinha um dono: pertencia aos sambistas.

Em 1970, alcançou um inédito quarto lugar, com o enredo “Meu pé de laranja lima”, baseado no best-seller de José Mauro de Vasconcelos. Em 1971, com o enredo “Rapsódia da saudade”, a escola ficou na penúltima posição. Deveria ter sido rebaixada, com a Unidos de Padre Miguel, última colocada. Mas uma alteração no regulamento, de última hora, evitou a queda de ambas.

Castor era o notório dono das bancas de jogo do bicho nos bairros de Bangu e adjacências, portanto vizinhas da Escola. Seria inevitável a aproximação.

Instalou-se na Escola, definitivamente, desde 1973, quando a agremiação terminou em sétimo lugar. Inicialmente, evitou os holofotes da presidência: indicou o policial Osman Pereira Leite para o cargo. Castor seria o presidente de honra.

Castor investiu. Contratou o carnavalesco Arlindo Rodrigues, campeão pelo Salgueiro nos anos 1960. Para a bateria, providenciou o retorno do glorioso Mestre André, que se afastara em 1972 e 1973.

Em 1974, apresentando como enredo “A festa do divino”, a Escola terminou na quinta colocação; Em 1975, com “O mundo fantástico de uirapuru”, ficou em terceiro; em 1976 apresentou “Mãe menininha do Gantois” e terminou em sexto; em 1978, trouxe “Brasiliana” e terminou no quarto lugar; em 1979, ostentando o enredo “O descobrimento do Brasil”, por fim, a Escola de Padre Miguel conquistou o primeiro lugar do carnaval carioca.

Todos os enredos acima foram assinados pelo ilustre Arlindo Rodrigues.      

Mas a escalada acima não fácil. Em 1974, a Escola sofreu um incêndio na Vila Hípica, seu ateliê. Perderam-se nas chamas “300 (fantasias se) baianas, 150 fantasias de carregadores de alegorias, centenas de vestimentas de 12 alas – cada qual com 35 a sessenta figurantes -, além de Cr$ 40 mil em lamê, oito máquinas de costura e vários metros de fazenda em geral”, conforme noticiado pelo Jornal do Brasil.
A mesma publicação descreveu também as providências tomadas pelo novo patrono: “o presidente de honra da Mocidade, advogado Castor de Andrade, conseguiu a liberação do campo de futebol do Bangu Atlético Clube para que ali se desenvolvam, em ritmo acelerado, os trabalhos finais, e para onde, ainda hoje, será transportado todo o material necessário. Guardas de segurança serão contratados para que se evitem novos transtornos.”

Osman cria em incêndio criminoso. A razão alegada por ele era o fato de os concorrentes terem conhecimento do aumento brutal do orçamento disponível para os desfiles: foi dos Cr$ 100 mil para mais de meio milhão. E ainda confessou: “Se eu pego o responsável por isso, mato-o sem nenhum remorso.”   
Por mais inacreditável que possa parecer, apenas em razão de uma inesperada nota 4 em fantasia (justamente a fantasia...) a Escola saiu da disputa pela vitória. O Salgueiro ficou com a vitória. Salgueiro era a Escola do diretor Luiz Fernando do Carmo, o Laíla, de Joãozinho Trinta e do bicheiro Osmar Valença. O enredo campeão foi “O Rei de França na ilha da assombração”.

Apesar dos esforços de Castor, envidados em nome da Escola e no sentido de limpar seu próprio nome, a policia continuava insistindo em tirar-lhe a paz. Em 1977, uma comissão da Secretaria de Segurança apurava as atividades do bicho, como o assassinato de China Cabeça Branca, prendeu Anísio. A lista de suspeitos a serem interrogados incluía o nome de “Osman Pereira Leite, presidente da Mocidade Independente de Padre Miguel e afilhado de Castor de Andrade, em Bangu”, conforme redação da própria comissão.

Essa movimentação ocorreu poucos dias antes do início dos desfiles. Devido aos transtornos causados, o delegado Newton Costa declarou: “Não temos nada contra o samba, mas a verdade é que quase todas as escolas estão entregues aos contraventores, e temos de ouvi-los. Por isso acabamos criando problemas como esses.”

Na noite do desfile, Osman foi informado de que seria preso logo após a apresentação de sua escola. A acusação era sua ligação com Castor.

Dias após, Osman não foi preso, mas o desfile da Mocidade foi um desastre. Osman acusava a polícia de persegui-lo e a Riotur, de sabotar a Escola, ao lado de concorrentes. A solução que ele encontrou? “Vou botar o Castor de Andrade como presidente da escola e eu ficarei como vice-presidente. Ele cuidará de toda a parte administrativa e financeira. Eu, ao contrário do que vem acontecendo, estarei liberado para me preocupar apenas com a organização do carnaval.”

A comissão queria os depoimentos de Osman e de Castor. Este era acusado pelo assassinato do bicheiro Vicente Paula da Silva, seu funcionário. Fora seqüestrado e assassinado em abril d 1973 e seu corpo foi achado cheio de perfurações a bala, na rodovia Rio-Magé, além da mão esquerda cortada. O motivo do crime? Vicente chamou Castor de ladrão em público. Os suspeitos da execução do crime foram dois policiais: Sebastião José da Silva, o Tião Tripa, e Osman.

De qualquer maneira, assim como todos os demais, esse crime nunca foi solucionado.

E Osman seguia presidindo a Mocidade por mais de uma década.

A vitória em 1979 trouxe uma apresentação inesquecível: baianas fantasiadas de branco e preto carregavam caravelas sobre a cabeça, esculturas de elefantes representando as Índias deixavam o público embevecido. Arlindo Rodrigues se superara. O samba “O descobrimento do Brasil” fora composto por Toco e Djalma Cril. Tão belo quanto ufanista, o que soava um tanto “governista”, mas em nada obscureceu o espetáculo proporcionado pela agremiação. Segue um trecho:

“Convocando o povo / Para entoar um poema de amor / Brasil, Brasil, avante, meu Brasil / Vem participar do festival / Que a Mocidade Independente / Apresenta neste Carnaval.”


Como um El Cid, Castor conquistava novas terras para seu império.

O poderoso-bicheiro também maquinava como incrementar as receitas que obtinha com as apostas. Parecia-lhe pouco o que faturava com suas banquinhas nas esquinas de Bangu. Iniciou uma estratégia de “desenvolvimento de mercado”. A oportunidade surgiu com a conexão com a máfia italiana, cuja aproximação remonta à década de 1960, quando Castor conheceu Antonino Salamone, capo da máfia italiana que, fugindo da polícia italiana, chegou ao Rio.

Castor empregou o novo amigo na sua Tecelagem Bangu. Mas isso era só disfarce: Antonino estava em São Paulo.

Na década de 1970, Castor usou suas conexões com autoridades do regime militar e conseguiu algo que pareceria impossível a qualquer ser humano normal: o governo brasileiro emitiu cidadania brasileira ao foragido Antonino, concessão oriunda da lavra do Ministro da Justiça Armando Falcão, ainda no governo Geisel.

Segundo o juiz Walter Maierovitch: “Ele jamais poderia ter obtido a cidadania porque cumpria pena quando fugiu para o Brasil. Havia um mandado de prisão internacional. Os seus processos já tinham transitado em julgado.”

Evidentemente profundamente grato pela ajuda descomunal que recebera, Antonino soube retribuir. Ele foi o principal elo de Castor para, nos anos 1980, fazer desembarcar no Brasil uma enxurrada de máquinas caça-níqueis.

(Continua!)  


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Os porões da contravenção”

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