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terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

DO BICHO À MÁFIA: COMO TORTURADORES E BICHEIROS MOLDARAM O CRIME ORGANIZADO NO RIO DE JANEIRO – PARTE 4


Quando Luiz Cláudio de Azeredo Vianna era delegado em Petrópolis, Joel Ferreira Crespo era seu auxiliar. Portanto estava ciente da Casa da Morte e de todos os outros aparelhos repressivos em pleno funcionamento, na década de 1970.

Na década seguinte, Guimarães e Anísio como “capi” do bicho, Crespo e Malhães como responsáveis pelo aparelho repressivo da contravenção, trabalhariam de maneira bastante harmoniosa.

Crespo se relacionava com a família de Anísio desde os anos 1960. A amizade sobreviveu às décadas. Seu filho, o policial Paulo Sérgio Crespo, o Paulinho, teria papel de destaque nas “Organizações Anísio” na década de 1980.

Mas papai e filhinho Crepos não tinham contrato de exclusividade com Anísio. Após o assassinato de Marco Aurélio Corrêa de Mello, o Marquinho, filho do bicheiro Raul Côrrea de Mello, o Raul Capitão, Crespo pai e Crespo filho foram solicitados a matar o bicheiro suspeito Jaider Soares. Segundo os jornais, o entrevero foi suscitado por causa de disputas por pontos de jogo em Petrópolis. Jaider é patrono da escola de samba Grande Rio e filho do Poderoso Chefão do bicho em Caxias, Antônio Soares.
Marquinho havia herdado os pontos do pai, Raul, e se lançou a uma estratégia de expansão desenfreada, à base do tiro e da violência. Seguiu essa lógica no Triângulo Mineiro e em São Paulo. No Rio, no entanto, essa lógica entrou em choque com os “capi”. E estes ficaram do lado de Antônio e Jaider.

O homicídio de Marquinho segue não solucionado.

O nome de Paulo Crespo figuraria ainda como suspeito em outros crimes. Foi investigado no âmbito do caso Misaque-Jatobá. Em 1986, surgiu como suspeito do seqüestro de Jorge Elias Geraldo, ex-chefe de segurança do TCE-RJ e bicheiro. Ambos os crimes não foram solucionados.

Paulinho caiu em desgraça com Anísio, após ter sido flagrado em grampos telefônicos em conversas nas quais reclamava tratamento que o capo vinha lhe dispensando. Ganhou uma indenização, em troca das bancas que administrava e morreu em 2013, administrando um boteco em Nilópolis.

Embora todo-poderoso, Anísio não controlava a todos. Órgãos de inteligência o monitoravam e procuravam desenrolar o novelo de crimes e contravenções em que estava enredado. De fato, os primeiros informes contendo o nome de Anísio datam do final da década de 1960. Relatório do Ministério do Exército, de 1975, cujo assunto era “jogo do bicho e tráfico de drogas”, afirmava: “Esta agência (DGIE) foi informada que o cidadão Anísio Sessim (primo do prefeito de Nilópolis), residente à avenida Gal. Mena Barreto, nº 551, em Nilópolis, é banqueiro de jogo do bicho, com várias bancas em atividade no município, e que o elemento acima citado é traficante de tóxicos, fazendo o transporte do mesmo em sacolas de supermercados.”

O relatório supracitado cita incorretamente o sobrenome de Anísio, com o de seu primo Simão. A partir do documento seguinte esse erro seria corrigido.

Tornou-se claro como a luz do sol para o Governo que qualquer eventual caçada a Anísio esbarraria em obstáculos criados pelos próprios policiais locais. Isso também foi objeto de arapongagem oficial, em relatório que leva seu nome: “qualquer policial que contrarie as ações do Sr. Anízio, os seus parentes, remove-o (sic sic) para outro lugar do estado.” Explicava-se assim, ao menos parcialmente, a omissão policial e a proteção de que gozava. E assim prossegue o documento oficial: “O Sr. Anizio tem uma residência (mansão) na praia de Piratininga, onde se recolhe quando se acha perseguido.” O documento termina citando um enorme Centro Espírita, localizado na residência de Nilópolis, para melhor informar sobre as dimensões da propriedade do bicheiro.

Para dar um exemplo do atrevimento do bicheiro, o documento cita que Anísio esteve preso na PE (Polícia do Exército) “e diz para todos que foi hóspede do Exército, pois tinha regalias, tudo o que queria, inclusive televisão.”

Continuando com o relatório, este cita o território controlado por Anísio: Nova Iguaçu, Nilópolis, Belford Roxo, Mesquita e Paracambi. Afirma também que Anísio financiou as campanhas do prefeito de Nilópolis Simão Sessim e do deputado Jorge David.

Outros relatórios chegam a apontar São João de Meriti e Anchieta como territórios sob o controle de Anísio.

As suspeitas quanto à prática de tráfico de drogas não tinham provas mais concretas. Mas foram elaborados organogramas nos quais se traçavam as diversas atividades sob a batuta de Anísio, contendo também os nomes dos responsáveis pelos diversos ramos de atividade. Figuravam nas caixinhas abaixo do chefão: “Michel Abdala”, “corridas de cavalos”; “Nelson Abraão David”, “bicho” e “escola de samba Beija-Flor”; “Jezuino”, “bicho e tóxico” e “traficante de cocaína”.

Este último, suspeita-se, trata-se de Jesuíno Abraão Jorge, o Capitão Jesuíno, primo de Anísio, também diretor da Beija-Flor.

Com a entrada de bicheiros, os desfiles das escolas de samba tomaram proporções empresariais. Esse fenômeno foi responsável pelo enfraquecimento dos reais criadores do carnaval, os bambas do samba.
Se, antes, os sambistas passavam o ínclito livro de ouro de comerciante a comerciante, pedindo uma contribuição para fazer frente às despesas para o fabrico das fantasias, agora os bicheiros eram patronos e patrocinadores. Alguns desses bicheiros já eram relacionados há décadas com as escolas que patrocinavam, como Natal, bicheiro cujo pai era dono da casa em cujo quintal foi fundado o Bloco Carnavalesco Conjunto Oswaldo Cruz, que daria origem à Portela. Foi em 1926, e o dono da casa era o seu Napoleão.

Aqueles tempo românticos eram, de fato, bastante violentos. Mas os anos de chumbo seguintes excederam quaisquer previsões. As guerras sangrentas lutadas nas ruas e esquinas por conta de pontos de jogo do bicho deram surgimentos aos barões, que se apropriaram das escolas de que eram patronos, ainda que nada tivessem com a história do samba e com o feito fantástico dos bambas, criadores das escolas e dos sambas-enredo.

A própria Beija-Flor foi fundada, inicialmente, como um bloco, em 1948, por pessoas muito pobre, negras, moradores do recém-emancipado município de Nilópolis. Tornou-se escola em 1954. Nessa época, Anísio era torcedor de outro bloco, o Centenário, do qual foi presidente. Também freqüentava a Mangueira e para ela torcia. Só se aproximou da Beija-Flor anos depois.

Quando seu irmão, Nelson se tornou presidente da escola, a Beija-Flor adotou enredos de exaltação ao governo e ufanistas. Alguns sambas chegavam ao ponto de citar elogiosamente programas do governo militar, como o tema de 1975 “O grande decênio”, que homenageava aos 10 anos do golpe militar de 1964, e que perseguiria a escola, como um pesadelo de que não se esquece jamais. Valeu-lhe o apelido de “Unidos da Arena”.

Subir em 1973 para o Grupo A, com o tema “Educação para o desenvolvimento”. Ficou em segundo lugar e deu o recado sobre seu posicionamento no espectro político.

O compositor responsável pelos “coros ufanistas” foi o jornalista Manoel Antônio Barroso, quem o Jornal do Brasil apresentava como “assessor do Supremo Tribunal” e “que abandonou a linha afro-brasileira em favor de se cantar as realizações do governo federal na avenida”. O jornal Opinião o descrevia como chefe do gabinete civil do STF.

Barroso escrevia, mas não era carnavalesco. Em 1974, as carnavalescas eram Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, formadas na Escola de Belas Artes da UFRJ.

Muitas escolas usavam a frase dita por Médici: “Ninguém segura esse país.”

A Mangueira, em 1971, exaltava o Correio Aéreo Nacional com o tema “Modernos Bandeirantes”.

Evidentemente há uma linha divisória, um tanto tênue, entre sambas nacionalistas e sambas pró-governo. Os primeiros reverenciavam o Mobral, a Transamazônica, a integração nacional; os segundos, a miscigenação de raças, a grandiosidade do território. Em 1972, a Imperatriz Leopoldinense trouxe o clássico “Martim Cererê”. Inspirado num poema ardorosamente nacionalista, a escola não deixou de soar governista – “Gigante pra frente a evoluir / Milhões de gigantes a construir ...”.

A verdade é que o regime limitar, a exemplo do que fizera Getúlio em relação ao samba, interessava-se pelo poder de difusão representado pelas escolas de samba. Amaury Jório, presidente das escolas de samba do estado, foi a Brasília buscar auxílio financeiro para os desfiles. Segundo o Jornal do Brasil de 1970, foi “aconselhado pelo Planalto a se empenhar para que os temas e as alegorias carnavalescas busquem um sentido mais construtivo e voltado para a atualidade do país.”

Desde 1970, sambas, fantasias e alegorias eram submetidos à Censura. Agentes do Dops acompanhavam os ensaios.  

A maneira de protestar encontrada pelos sambistas era usar outro tema: Liberdade. Em 1969, primeiro carnaval pós-AI-5, o Império Serrano foi obrigado a mudar um verso de “Herpois da liberdade”. Falava da Inconfidência Mineira e da Abolição. Mudaram “É a revolução / em sua legítima razão” para “É a evolução / em sua legítima razão”.

Em 1972, foi a vez de Martinho da Vila deixar seu recado. No samba “Onde o Brasil aprendeu a liberdade”, que falava da expulsão dos holandeses de Pernambuco, ele deixava sua ode à liberdade.
Em 1974, outro samba de Martinho, agora chamado “Aruanã-Açu”, falava sobre os índios Carajás. A composição foi cortada da disputa pela escolha do samba-enredo por pressão dos censores e a Escola foi obrigada a escolher outro enredo para o carnaval. O samba escolhido foi, por fim, uma composição de Paulinho da Viola exaltando a Transamazônica.

Por fim, em 1980, após a Lei da Anistia, mestre Martinho, herdeiro de Noel por honra e mérito, pode se sentir à vontade para compor o clássico “Sonho de um sonho”, inspiração divina advinda de um poema de Carlos Drummond de Andrade.

Pela primeira vez, teve-se a audácia de pôr a palavra “tortura” em uma letra de samba para o carnaval.
Em 1975, logo após o carnaval, começaram a circular rumores sobre a saída do carnavalesco bicampeão Joãozinho Trinta, do Salgueiro. Reclamava da estrutura, ou falta dela. Laíla, diretor de carnaval, também anunciava que deixaria a escola.

Embora o destino alentado pela dupla fosse a Unidos de Vila Isabel, Nelson e Anísio os contrataram para a Beija-Flor. Levaram também o figurinista Viriato Ferreira.

Para o carnaval de 1976, Anísio queria definir o enredo. E era um enredo especial, ao menos para o “AL Cappone do bicho”: Natal da Portela. O mais popular dos bicheiros, velha guarda da contravenção, banqueiro dos tempos românticos, havia morrido em abril de 1975, deixando seus fãs, como Anísio, desolados.

Joãozinho topou, mas adicionou o elemento lúdico, o sonho popular com a vitória em uma aposta, de forma a confirmar um palpite. Além disso, por que não contar a história do jogo, desde o barão de Drummond? Nascia assim “Sonhar com o rei dá leão”, samba composto por Neguinho da Beija-Flor.

Joãozinho Trinta tornava-se sinônimo de carnaval no Rio de Janeiro. Em 1974 e em 1976, fora campeão pelo Salgueiro: “O rei da França na ilha da assombração” e “O segredo das minas do rei Salomão”.
A Beija-Flor tornou-se uma Escola tão cool que atraía personalidades como os dois filhos do general-presidente João Batista Figueiredo: o Paulinho e o Johnny Figueiredo. Agora torciam e desfilavam pela Escola da moda.

Quando visitou o Brasil em 1978, príncipe Charles assistiu a uma apresentação da icônica Escola, em uma apresentação dada pelo prefeito do Rio, Marcos Tamoyo, no Palácio da Cidade.

Porém, em 1979, a Beija-Flor não repetiu o feito. Deu Mocidade em primeiro lugar. E o seu patrono, o folclórico e icônico bicheiro Castor de Andrade, entraria com tudo nos anos 1980, dominando a contravenção e o carnaval carioca.    

(Continua!)    
  

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Os porões da contravenção”

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