A chegada de Capitão Guimarães ao mundo da contravenção (e
do crime, a segunda em decorrência da primeira), trouxe ares de Estado-Maior à
cúpula dos “corleone-do-bicho”. Adotaram-se procedimentos técnicas
empresariais, investiu-se em informática, adotaram-se normas de hierarquia. As
reuniões agora contavam com atas (em lugar do fio-do-bigode).
A divisão formal de territórios foi comentada pelo próprio
Guimarães: “Antes, você podia dormir com 50 pontos e acordar sem nenhum. Reuni
os banqueiros daqui e loteamos Niterói.” Fez o mesmo com o Rio de Janeiro e sua
Região Metropolitana. Qualquer território, agora, tinha um dono, com direitos
reconhecidos pelos demais.
O coronel Paulo Malhães declarou à Comissão Estadual da
Verdade a estratégia de negócios utilizada por Guimarães para sua ascensão: “saiu
matando”. Era o novo capo de Niterói.
Em 1981, Guimarães desligou-se definitivamente do Exército,
época em que a repressão dava seus últimos suspiros. De 1981 a 1985, com a
redemocratização, apenas 4 perseguidos políticos desapareceram; um claro contraste
com os 434 contabilizados nos anos anteriores.
As técnicas utilizadas pela repressão também mudaram, privilegiando-se
técnicas de espionagem e inteligência, em lugar do sadismo e da tortura,
adotados até então. Entravam em cena os jacarés (aparelho de interceptação
telefônica), a criptografia, o uso de pessoal infiltrado e a conversão de
criminosos em espiões, a serviço do SNI.
Com apenas um mês afastado dos quartéis, Guimarães foi captado
pelos radares do antigo empregador. Foi flagrado até entregando propina a
policiais.
No mês de abril seguinte, ocorreu o famoso caso do Rio
Centro. Durante um show em homenagem ao Dia do Trabalhador, uma explosão de uma
bomba dentro de um carro, no estacionamento do Rio Centro vitimaria seus dois
ocupantes: um sargento e um capitão do Exército. As investigações constataram
que, após descobrirem que a bilheteria do show seria usada para financiar
grupos de esquerda, agentes do SNI e do COI planejaram um atentado contra 20
mil jovens presentes no evento.
Mas um acidente de percurso levaria à explosão dos dois
executores. Um morreu, o outro saiu gravemente ferido. O Exército só admitiu os
fatos acima em 1999.
Decorridas mais algumas apurações, chegou-se ao nome do
autor intelectual da tragédia. Freddie Perdião Pereira era violento, era mau,
era sádico, era conspirador. Foi o responsável por converter as instalações
voltadas à tortura em centros de conspiração da contravenção.
Desde os anos 1970, Perdição recebia propinas do bicho em
troca de proteção. Após a constatação de seu envolvimento na explosão no Rio Centro,
Perdição caiu em desgraça no Exército. Daí, com a ajuda do amigo, tornou-se soldado
da milícia de Guimarães.
Guimarães já tinha amealhado um bom patrimônio. Um informe do
SNI atribuía-lhe a propriedade de dois automóveis Miura, um Puma e de uma
Brasília. Morava na Rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Tinha um escritório
na rua Mariz e Barros, em Niterói – sede de suas movimentações no jogo do
bicho.
Perdição era um sujeito reservado, discreto, evitava ser fotografado.
Passou 12 anos nos porões da ditadura, usando e abusando da violência que lhe
era característica. Usava o codinome Doutor Roberto. Segundo Inês Romeu, única
sobrevivente da Casa da Morte: “Doutor Roberto, um dos mais brutais
torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando pelos cabelos. Depois, tentou me
estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me
pancadas na cabeça. Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no cimento
molhado, quando a temperatura estava baixíssima. Petrópolis é intensamente fria
na época que estive lá.”
Perdigão também foi o responsável pelos dois tiros cabeça,
desferidos contra o casal de estudantes Catarina Helena e João Antônio Abi-Eçab,
da ALN (Ação Libertadora Nacional), em 1968.
Ressentido com o tratamento que vinha recebendo da
corporação após o desmantelamento dos aparelhos da subversão, Perdigão iniciou uma
série de explosões pelas ruas, visando a jogar a culpa sobre os “comunistas”.
Essas ações tiveram um fim após a tragédia no Rio Centro. O general Newton
Cruz, chefe do SNI, desembarcou no Rio e deu ordens para que cessassem as
explosões imediatamente.
Diante dos seguidos “banhos de água fria”, Perdiga aceitou o
convite do colega Guimarães e se filiou às trincheiras do bicho. Tinha 45 anos,
mancava em decorrência de um tiro na perna, exibia uma Medalha do Pacificador,
também em decorrência do episódio no qual foi baleado por guerrilheiros.
Perdigão foi afastado do SNI durante o governo Sarney, em
1987. Nesse ano, Guimarães assumia a presidência da LIESA – Liga Independente
das Escolas de Samba. Criada para ocupar o lugar da antiga Associação das
Escolas de Samba, a LIESA visava à apropriação dos desfiles de Escolas de Samba
pela cúpula do bicho: Anísio, Castor, Luizinho Drummond e Guimarães. Os
desfiles, diante do manancial de dinheiro investido pelos bicheiros,
tornaram-se um espetáculo caro e, pari passu, gerador de receitas. E o melhor:
negócio ideal para a lavagem de dinheiro sujo.
Após a LIESA, a influência do poder público sobre os
desfiles foi alijado, a Riotur foi excluída do negócio dos desfiles, e a gestão
dos recursos gerados pelos desfiles foi privatizado pelos bicheiros. As
pequenas Escolas, que não contavam com um patrono contraventor, perderam quaisquer
chances de concorrerem com as grandes.
Os capi, visionários apesar de tudo, investiram em empresas fabricantes
de fantasias e alegorias, explorando um nicho lucrativo que eles mesmos
criaram. Em geral, eram negócio gerenciados por parentes e amigos.
Perdigão assumiu a chefia de uma empresa de segurança, que
prestava às empresas de ônibus dos bicheiros, na Baixada Fluminense.
Perdigão foi autorizado pelo “superior” a abrir uma mesa de
jogos de bilhar em Cabo Frio. Nessa época ele já era responsável por chefia
toda a escolta dos capi da cúpula do bicho. Em seu nome, tinha um minimercado,
uma empresa de importação e exportação e uma concessionária de veículos. Diz-se
também que foi sócio no negócio de importação de xampus Pantene.
Algum tempo depois, Perdigão se desentenderia com Guimarães,
após este ficar ao lado de Anísio Abraão, por desavenças financeiras.
Perdigão morreria aos 60 anos, em 1996, de aneurisma
cerebral. Guimarães não compareceu ao enterro.
(Continua!)
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Os porões da contravenção”
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