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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

DE DRAGÃO A BANQUEIRO DO MUNDO: A CHINA E O MUNDO PÓS-CRISE


Em 4 de dezembro de 2010, o Wikileaks postou uma troca de mensagem (provavelmente ocorrida em 2009) entre a Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton e o Primeiro Ministro da Austrália Kevin Rudd. Lê-se no mesmo: “A Secretária também comentou sobre os desafios representados pela ascensão econômica da China, perguntando: ‘Como se negocia fortemente com seu banqueiro?’”.

Esse poder, como vemos hoje, é até mesmo capaz de alterar programas de governo de presidentes eleitos nos EUA, caso se oponha aos interesses de seu banqueiro...

O caminho trilhado pela China foi modelado por Deng Xiaping à imagem de Japão e tigres do sudeste asiático. Planejou-se desde o início uma economia dual, na qual zonas econômicas especiais pontilhavam a China com pequenas Cingapuras e Hong Kongs – ilhas de intensa atividade capitalista num mar infinito de mão de obra. Enquanto isso, o centro direcionaria investimentos (de novo, espelhando o Japão) mas também negociaria transferências tecnológicas e investimentos diretos estangeiros com corporações multinacionais japonesas e ocidentais.

Com vistas ao posicionamento global da China, esta mimetizaria o sudeste asiático, à procura de fontes de demanda para seu crescimento baseado em exportações, tanto nos EUA quanto na Europa.

Multinacionais americanas, européias e japonesas tiveram papel crucial em estabelecer compras na China e usar seus baixos custos para exportar para o resto do mundo, especialmente para os EUA.

Ao mesmo tempo, importações baratas oriundas da China para os EUA auxiliaram companhias americanas do estilo Walmart a espremer preços para níveis inacreditavelmente baixos, ajudando na trajetória de diminuição da inflação relativa tanto dos salários relativos dos norte-americanos quanto do preço da energia, requisitos-chave para a manutenção do fluxo de capitais para dentro dos EUA.

Conforme a China foi se tornando um ator principal no teatro mundial, seus líderes se tornaram observadores atentos das decisões do governo dos EUA capazes de afetar seu país. Particularmente, os Acordos de Plaza, de 1985, que condenaram o Japão a décadas infindas de crise e recessão, e a Crise 1998 no sudeste asiático, cuja causa foi a abertura irresponsável dos mercados de capitais e financeiros locais à banca internacional.

Diz-se que foi o trauma representado por essas duas hecatombes que levaram a China a resistir à pressão asfixiante de Washington no sentido de fazer os chineses valorizarem sua moeda. As razões da pressão pela valorização do yene nos anos 1980 são as mesmas da valorização do renmimbi hoje.

Mas o cenário acima não poderia ser mais falso. O mundo é muito mais complexo que esse.

Enquanto empresas americanas predominantemente baseadas nos EUA pressionam por uma apreciação cambial chinesa, outros atores igualmente relevantes tendem a ver o cenário sob outra perspectiva. Em Primeiro lugar, não parece haver um entendimento claro dos burocratas yankees de que o déficit gêmeo que exibem há décadas deva ser combatido desde logo. Em segundo lugar, algumas das maiores, mais dinâmicas e bem posicionadas firmas americanas seriam prejudicadas fortemente por uma valorização do renmimbi. Suas margens de lucro seriam reduzidas. Alternativamente, os americanos veriam seus IPad, computadores HP e até carros americanos sendo vendidos mais caros.

E mais. Muitas multinacionais americanas ameaçam deixar a China e transferir suas operações para a Índia ou África, caso o renmimbi deixe de ser competitivo frente ao dólar.

A despeito de todo o exposto, o crescimento brilhante da China nas últimas décadas deixou uma marca indelével no grupo das nações emergentes. Alguns foram devastados pela competição, mas outros foram liberados de sua relação de dependência em relação a nações e corporações ocidentais.

O México é um exemplo de nação que perdeu sobremaneira com a ascensão chinesa. Seu papel de manufatura de baixo custo localizada na periferia dos EUA (o exato papel que exerce no NAFTA), a emergência chinesa foi um pesadelo para os fabricantes mexicanos.

Entretanto, essa mesma China foi uma bênção par outros países – desde a Austrália (que pôs seus vastos recursos minerais à disposição de firmas chinesas) até a Argentina, e do Brasil à Angola (que, em 2007, recebeu mais recursos, na forma de investimentos diretos, principalmente no seu setor petrolífero, do que o FMI emprestou em todo o mundo).       

Provavelmente a América Latina seja o único continente que a China remodelou para sempre. A argentina e o Brasil verteram seus campos em produtores de alimentos que sustentam 1,3 bilhão de chineses, além de abrirem seus subsolos à sanha das fábricas, necessitadas de minérios.

Após sua entrada na OMC, a China usou seus baixos custos trabalhistas para extirpar concorrentes do México e de outras partes da América Latina em setores de manufaturas de baixo valor adicionado, como calçados, brinquedos e têxteis.

A conseqüência do cenário acima foi a desindustrialização da América Latina e seu retorno ao estágio de produtor de bens primários.

Este fenômeno teve escala global. Porque se o Brasil e a Argentina voltassem seus olhos em direção à Ásia, como já haviam feito, ele poderiam abandonar sua longa luta para entrar nos mercados de alimentos dos EUA e da Europa, dos quais foram barrados por severas leis protecionistas.

De qualquer maneira, a velha orientação de que a América Latina era o quintal dos EUA foi, de alguma maneira, alterada.

Os governos da região têm mostrado pouca resistência às investidas chinesas. Provavelmente se vêem tendo de escolher entre desindustrialização ou crises “à moda de 1998-2002”, seguidas por uma indesejável visita do FMI.              


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

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