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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

DO BICHO À MÁFIA: COMO TORTURADORES E BICHEIROS MOLDARAM O CRIME ORGANIZADO NO RIO DE JANEIRO - PARTE 1


Em 1892, no Rio de Janeiro, nascia o assim chamado “jogo do bicho”. Uma espécie de jogo de azar, foi criado por barão de Drummond, no bairro de Vila Isabel, no antigo Jardim Zoológico. Visava, dizem, a financiar a construção e manutenção do parque, haja vista os cofres públicos vazios, incapazes de fazer frente a tais gastos.

No seu primeiro sorteio, 25 bichos foram selecionados, dando avestruz na cabeça. Alguém poderia alcançar a ironia de uma contravenção penal se iniciar metaforicamente com uma ave conhecida por esconder sua cabeça num buraco, mas os responsáveis pela jogatina eram um tanto atrevidos.

Nas sua primeiras décadas, o jogo do bicho trazia consigo um ar romântico, cuja imagem mais conhecida era a do “apontador”, sentado numa banquinha, numa esquina de um bairro do subúrbio. No entanto, cresceu. A infinidade de banqueiros do bicho foi sendo eliminada por seus concorrentes mais violentos. Após uma série de assassinatos, muitos deles brutais, um punhado de bandidos protegidos por um aparelho policial inteiramente corrompido, somando-se a eles militares a serviço da repressão, consolidou-se na chefia da jogatina.

Um século após sua concepção, o jogo do bicho chegou a seu apogeu. Já no formato de uma organização criminosa, dentre as mais bem organizadas, foi alvo da Operação da Polícia Federal Furacão, em 2007. Flagrou-se um Ministro do STJ, Paulo Medica, sendo subornado por um banqueiro “do bicho”, pela quantia de 1 milhão de reais. Foi afastado.

No seu estertor, os bicheiros recolhiam as apostas em caixotes de frutas. Um século depois, a associação com a máfia italiana trouxe ao país as infames máquinas caça-níqueis.

Se antes a proteção contra o poder público ocorria corrompendo policias e delegados, agora buscavam proteção no STJ.

Se um dia a disputa ocorreu por banquinhas num esquina, agora a organização trabalhava com divisão clara de territórios, controlava o fluxo de caixa de cada uma das atividades criminosas agregadas ao jogo do bicho, além de controlar diversas atividades legais, por onde ocorre a lavagem de dinheiro.

O ponto de virada ocorreu nos anos 1960 e 1970, no turbilhão inaugurado pelo Golpe de 1964, e em meio ao conflito que se seguiu, repressão contra grupos armados.

Para lutar contra os “comunistas”, ou “terroristas”, o regime militar criou uma terrível máquina de tortura, com autoridade irrestrita para perpetrar as técnicas mais insanas visando a arrancar de presos políticos informações que considerassem relevantes. Essa máquina foi responsável pelos episódios mais sangrentos e vergonhosos da nossa história recente.

Os membros dessa máquina homicida eram agentes secretos. Usavam cabelos comprido, não freqüentavam quartéis, não vestiam fardas. Recebiam verbas sem que tivessem que prestar contas, seus nomes não apareciam na folha de pagamento, trabalhavam em instalações clandestinas e, mais importante, tinham amplo acesso a dados privados e autoridade para decidir quando a vida de dada pessoa chegava ao fim.

Chegando ao fim o detestável regime, tais agentes, sofrendo de “crise de abstinência” por não mais poder matar à vontade, e sobretudo sentindo-se traídos e abandonados, ou bem retornavam aos quartéis, às sua rotinas bocejantes, ou procuravam outra atividade lucrativa e sangrenta, como aquela que deixavam para trás, a contragosto.

Foi então que surgiu o jogo do bicho para acudi-los. Os “capi do bicho” emergiram como um porto seguro, oferecendo uma miríade de oportunidades de enriquecimento fácil a quem aceitasse compartilhar os conhecimentos “dos porões” com seus novos empregadores.

Essa parceria “bicheiros-ditadura” criou a face mais conhecida do crime organizado no Rio de Janeiro, e no Brasil. Ao trazerem normas de hierarquia e disciplina, a máfia do bicho se organizou, cresceu e se diversificou. Às atividades clássicas da contravenção, os novos integrantes trouxeram conhecimentos de logística, administração financeira, divisão de tarefas e espionagem. A máfia do bicho se tornou uma facção criminosa à parte, com características próprias e inconfundíveis.

Os anos pós-ditadura, já em ambiente democrático, mostraram também uma capacidade de adaptação e de total desprendimento ideológico de seus “cabeças”. Os velhos-parceiros da ditadura nadaram de braçada ao lado dos governantes civis. A entrada no mundo das Escolas de Samba, objetivando criar uma imagem social mais tragável e simpática, evoluiu a ponto de privatizarem uma das maiores riquezas culturais e imateriais do país, quando fundaram a LIESA.

Apenas na década de 1990 uma força-tarefa judiciária e do Ministério Público foi capaz de pôr obstáculos no caminho de nossos gângsteres.

Um dos mais famosos “capi do bicho” atendia por Capitão Guimarães. Popularmente mais associado à Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, onde foi presidente por vários anos, sua história de crimes e contravenções se inicia muitas décadas antes, quando ainda se alinhava nas fileiras do Exército.

Para entender sua história, deve-se ter em mente que uma das atividades criminosas mais utilizadas por bicheiros, a que eles se dedicavam com quase a mesma presteza que dedicavam ao jogo do bicho, era o contrabando de mercadorias.

Já em 1971, banqueiros do bicho no Rio de Janeiro passaram a sofrer ataques indefensáveis de uma quadrilha especializada em extorquir dinheiro de contrabandistas.Essa quadrilha seqüestrava as mercadorias contrabandeadas, entravam em contato com o destinatário, em geral bicheiro, e exigiam uma quantia como resgate. Esse golpe era chamado de “golpe do arrepio” . Uma das maiores vítimas desse golpe era o Tio Patinhas (Ângelo Maria Longa), conhecidíssimo bicheiro que atuava em Niterói, território fluminense. O chefe da quadrilha era Guimarães, oficial do Exército.

A quadrilha de Guimarães era tão eficiente nas suas atividades que Tio Patinhas, em vez de enfrentá-lo, ofereceu-lhe diversas bancas pertencentes a Guto, apontador com quem trabalhava. Embora comandasse um grupo de extermínio composto por policiais cariocas, Tio Patinhas ficou impressionado com o jovem e ambicioso oficial.

Guimarães deveria apenas eliminar Guto e pagar uma quantia a Tio Patinhas. Proposta bastante tentadora para quem via suas possibilidades de ascensão na carreira militar a cada dia mais distantes.

Aos 38 anos, Ailton Guimarães Jorge sabia que a associação da sua imagem com um grupo que extorquia criminosos congelara sua ascensão na carreira. Mesmo absorvido após investigações internas, sua imagem enterrara suas pretensões.    

Proposta aceita, pouco depois Guto estava morto. Guimarães nunca admitiria esse feito. Guimarães, egresso da AMAN e aspirante ao generalato alguns anos antes, transformou a patente em alcunha e se lançou ao crime, em tempo integral agora.

Ainda na Academia das Agulhas Negras, Guimarães aprendeu a repudiar os militares que se alinhavam à legalidade, ao lado do presidente João Goulart, ao chamá-los de melancias: verdes por fora, vermelhos por dentro.

Da turma freqüentada por Guimarães, saíram futuros generais, como Enzo Martins Peri, comandante nos governos Lula  e Dilma, Sérgio Ernesto Alves Conforto, encarregado de refazer, de maneira mais decente, o IPM relativo ao Caso Riocentro, Roberto Jugurtha Câmara Senna, comandante em invasões e ocupações de morros no Rio de Janeiro, em 1994.      

Guimarães, por sua vez, desligou-se do Exército em 1981, após 19 anos de mediocridade e muita violência. Mas levou a sua nova “tropa” de sanguinários uma estrutura interna que lembrava aquela única que conhecera. De fato, que conhecera muitos anos antes, desde que ingressara no Colégio Militar do Rio de Janeiro, em 1953, aos 12 anos. Por sua pele, de tonalidade tendendo ao escuro, foi chamado ao longo de todo o curso de Negro Guimarães. Nunca deu ouvidos a isso. Estudou na classe de Geraldo Castro Filho, o Castrinho.

A retórica anticomunista, insana e exaustivamente repetida nas salas da AMAN, era inflamada pelos eventos de fundo político que assolavam o país e as Forças Armadas. Como a operação contra uma rebelião liderada por 600 cabos, sargentos e suboficiais, em Brasília, revoltados contra uma decisão do STF, que impedia um sargento de assumir o cargo como deputado estadual.   

O Golpe de 31 de março de 1964 foi ouvido como um alívio, a Guimarães. Em razão de sua dedicação ao golpe, e pelo enfrentamento contra militares anti-golpistas, Guimarães escalou fileiras na frente anti-subversão.

Seu primeiro golpe foi desferido na sede da 1ª Companhia Independente da Polícia do Exército, na Vila Militar do Rio. Esta região representava a maior concentração militar da América Latina. Do seu íntimo surgiram as sementes das ações que aterrorizariam o país nos anos seguintes em manchariam a imagem do país por muitos outros.

Logo após a “Revolução Redentora” – como era chamado o golpe, nas fileiras do exército -, a missão dos militares da Vila era “limpar” a Baixada Fluminense. OS alvos eram: trabalhismo getulista e pequenos traficantes de drogas. As armas eram já conhecidas de longa data nas delegacias da região: violência desinibida e pau de arara. Os militares apenas garantiram que o modelo seria aplicado a presos políticos, a exemplo do que já ocorria com os alvos de costume, pretos e pobres. Desde então, a demarcação entre militares e policiais se tornou pouco perceptível, sendo ambos vistos com a mesma freqüência das delegacias. Inquéritos policiais sumários pululavam e vitimavam os líderes trabalhistas de então.

Mas o ambiente ficaria ainda mais insalubre. Uma série de acidentes ferroviários deixou os generais do I Exército – Rio de Janeiro - de orelhas em pé. Em 1965, um trem descarrilou em Nova Iguaçu e atingiu um outro. O saldo foi de 20 mortos e mais de 50 feridos. Não demorou para que o regime culpasse grupos de “comunistas” pelo incidente – mesmo sendo de amplo conhecimento o péssimos estado do sistema ferroviário local.

As primeiras investigações revelaram que 2 funcionários de estações ferroviárias da Baixada eram ligados ao PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista. Essa descoberta e a dedução “lógica” de que tais grupos eram os responsáveis pelos desastres, inaugurou um período terrível de prisões arbitrárias, interrogatórios brutalmente violentos e outros episódios que levariam a Vila Militar a ser reconhecida como incubadora das torturas oficiais de presos políticos no Brasil.   

Diante dos progressos que o Regime fazia na luta contra grupos subversivos, a Justiça Militar passou a vomitar uma quantidade inimaginável de mandados de prisão. Agora, todos os psicopatas poderiam se divertir à vontade. Ah! O AI-5 ainda não era sequer cogitado nesse período.

Se, por um lado, o Exército engrossava o discurso, por outro, a subversão tentava reagir na mesma moeda. No dia 12 de julho de 1966, um ataque a bomba no Aeroporto de Guararapes, em Recife, mudaria a sorte do governo. A ato procurou vitimar o presidente marechal Costa e Silva. Mas este escapou milagrosamente, após alterar seus planos de pouso, de Recife para Maceió.

Diante da ameaça, até então incogitada, as Forças Armadas adotaram medidas mais sérias. Foi instituído um curso de Informações no CEP – Centro de Estudos de Pessoal, no forte do Leme, tendo como público-alvo sargentos e oficiais, e específico para enfrentar organizações de esquerda armada.

Guimarães passou então, a exemplo de toda sua geração de militares, a freqüentar delegacias, atuava em IPM`s, prendia e se tornava amigos de delegados e policiais diversos.

No ambiente da Baixada Fluminense, as oportunidades de ganhos financeiros para policiais e militares se multiplicavam. Desde 1962, quando uma onda de saques vitimou mais de 2 mil estabelecimentos locais, comerciantes e forças policiais passaram a viver de maneira mais umbilical. Essa propina deu origem a diversos grupos de extermínio. Inimputáveis – haja vista serem policiais – e agora bastante populares entre a população local, esses grupos puseram a Baixada Fluminense no topo do ranking mundial de violência, nos anos 1970.

Testemunho dado por Valdimir Palmeira, preso em 1968 após participar da Passeata dos Cem Mil, ficou detido por três dias na solitária, o primeiro deles sem roupa. Era interrogado a qualquer momento, enquanto um soldado ficava com o fuzil engatilhado às suas costas. Guimarães era um dos interrogadores. A detenção foi de cerca de dois meses. Valdimir não foi torturado, mas não dormia várias noites por ouvir gritos vindos das outras celas. Diversos corpos foram achados boiando no Rio Guandu.

Dentre os torturadores, o mais famosos era um ex-campeão de luta livre, o cabo Marco Antônio Povoleri,um Hércules de músculos que era temido até pelos colegas de farda.

Vladimir conseguiu seu habeas corpus, impetrado pelo advogado Marcelo Allencar.    

Mas poucos poderiam supor o que estava por vir. Em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva assinaria o infame Ato Institucional nº 5. Diversos grupos armados atuavam no país, a subversão ganhava batalhas, mas o governo reagiu.

Esse dia inaugurou um novo e lamentável capítulo, como se verá.

(Continua!)


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Os porões da contravenção”

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