Em 1892, no Rio de Janeiro, nascia o assim chamado “jogo do bicho”.
Uma espécie de jogo de azar, foi criado por barão de Drummond, no bairro de
Vila Isabel, no antigo Jardim Zoológico. Visava, dizem, a financiar a
construção e manutenção do parque, haja vista os cofres públicos vazios,
incapazes de fazer frente a tais gastos.
No seu primeiro sorteio, 25 bichos foram selecionados, dando
avestruz na cabeça. Alguém poderia alcançar a ironia de uma contravenção penal
se iniciar metaforicamente com uma ave conhecida por esconder sua cabeça num
buraco, mas os responsáveis pela jogatina eram um tanto atrevidos.
Nas sua primeiras décadas, o jogo do bicho trazia consigo um
ar romântico, cuja imagem mais conhecida era a do “apontador”, sentado numa
banquinha, numa esquina de um bairro do subúrbio. No entanto, cresceu. A
infinidade de banqueiros do bicho foi sendo eliminada por seus concorrentes
mais violentos. Após uma série de assassinatos, muitos deles brutais, um
punhado de bandidos protegidos por um aparelho policial inteiramente corrompido,
somando-se a eles militares a serviço da repressão, consolidou-se na chefia da
jogatina.
Um século após sua concepção, o jogo do bicho chegou a seu
apogeu. Já no formato de uma organização criminosa, dentre as mais bem
organizadas, foi alvo da Operação da Polícia Federal Furacão, em 2007.
Flagrou-se um Ministro do STJ, Paulo Medica, sendo subornado por um banqueiro “do
bicho”, pela quantia de 1 milhão de reais. Foi afastado.
No seu estertor, os bicheiros recolhiam as apostas em
caixotes de frutas. Um século depois, a associação com a máfia italiana trouxe
ao país as infames máquinas caça-níqueis.
Se antes a proteção contra o poder público ocorria
corrompendo policias e delegados, agora buscavam proteção no STJ.
Se um dia a disputa ocorreu por banquinhas num esquina,
agora a organização trabalhava com divisão clara de territórios, controlava o
fluxo de caixa de cada uma das atividades criminosas agregadas ao jogo do
bicho, além de controlar diversas atividades legais, por onde ocorre a lavagem
de dinheiro.
O ponto de virada ocorreu nos anos 1960 e 1970, no turbilhão
inaugurado pelo Golpe de 1964, e em meio ao conflito que se seguiu, repressão contra
grupos armados.
Para lutar contra os “comunistas”, ou “terroristas”, o
regime militar criou uma terrível máquina de tortura, com autoridade irrestrita
para perpetrar as técnicas mais insanas visando a arrancar de presos políticos
informações que considerassem relevantes. Essa máquina foi responsável pelos
episódios mais sangrentos e vergonhosos da nossa história recente.
Os membros dessa máquina homicida eram agentes secretos.
Usavam cabelos comprido, não freqüentavam quartéis, não vestiam fardas. Recebiam
verbas sem que tivessem que prestar contas, seus nomes não apareciam na folha
de pagamento, trabalhavam em instalações clandestinas e, mais importante,
tinham amplo acesso a dados privados e autoridade para decidir quando a vida de
dada pessoa chegava ao fim.
Chegando ao fim o detestável regime, tais agentes, sofrendo
de “crise de abstinência” por não mais poder matar à vontade, e sobretudo
sentindo-se traídos e abandonados, ou bem retornavam aos quartéis, às sua
rotinas bocejantes, ou procuravam outra atividade lucrativa e sangrenta, como
aquela que deixavam para trás, a contragosto.
Foi então que surgiu o jogo do bicho para acudi-los. Os “capi
do bicho” emergiram como um porto seguro, oferecendo uma miríade de
oportunidades de enriquecimento fácil a quem aceitasse compartilhar os
conhecimentos “dos porões” com seus novos empregadores.
Essa parceria “bicheiros-ditadura” criou a face mais
conhecida do crime organizado no Rio de Janeiro, e no Brasil. Ao trazerem
normas de hierarquia e disciplina, a máfia do bicho se organizou, cresceu e se
diversificou. Às atividades clássicas da contravenção, os novos integrantes
trouxeram conhecimentos de logística, administração financeira, divisão de
tarefas e espionagem. A máfia do bicho se tornou uma facção criminosa à parte,
com características próprias e inconfundíveis.
Os anos pós-ditadura, já em ambiente democrático, mostraram
também uma capacidade de adaptação e de total desprendimento ideológico de seus
“cabeças”. Os velhos-parceiros da ditadura nadaram de braçada ao lado dos
governantes civis. A entrada no mundo das Escolas de Samba, objetivando criar
uma imagem social mais tragável e simpática, evoluiu a ponto de privatizarem
uma das maiores riquezas culturais e imateriais do país, quando fundaram a
LIESA.
Apenas na década de 1990 uma força-tarefa judiciária e do
Ministério Público foi capaz de pôr obstáculos no caminho de nossos gângsteres.
Um dos mais famosos “capi do bicho” atendia por Capitão
Guimarães. Popularmente mais associado à Escola de Samba Unidos de Vila Isabel,
onde foi presidente por vários anos, sua história de crimes e contravenções se
inicia muitas décadas antes, quando ainda se alinhava nas fileiras do Exército.
Para entender sua história, deve-se ter em mente que uma das
atividades criminosas mais utilizadas por bicheiros, a que eles se dedicavam
com quase a mesma presteza que dedicavam ao jogo do bicho, era o contrabando de
mercadorias.
Já em 1971, banqueiros do bicho no Rio de Janeiro passaram a
sofrer ataques indefensáveis de uma quadrilha especializada em extorquir
dinheiro de contrabandistas.Essa quadrilha seqüestrava as mercadorias
contrabandeadas, entravam em contato com o destinatário, em geral bicheiro, e
exigiam uma quantia como resgate. Esse golpe era chamado de “golpe do arrepio” .
Uma das maiores vítimas desse golpe era o Tio Patinhas (Ângelo Maria Longa),
conhecidíssimo bicheiro que atuava em Niterói, território fluminense. O chefe
da quadrilha era Guimarães, oficial do Exército.
A quadrilha de Guimarães era tão eficiente nas suas
atividades que Tio Patinhas, em vez de enfrentá-lo, ofereceu-lhe diversas
bancas pertencentes a Guto, apontador com quem trabalhava. Embora comandasse um
grupo de extermínio composto por policiais cariocas, Tio Patinhas ficou impressionado
com o jovem e ambicioso oficial.
Guimarães deveria apenas eliminar Guto e pagar uma quantia a
Tio Patinhas. Proposta bastante tentadora para quem via suas possibilidades de
ascensão na carreira militar a cada dia mais distantes.
Aos 38 anos, Ailton Guimarães Jorge sabia que a associação da
sua imagem com um grupo que extorquia criminosos congelara sua ascensão na
carreira. Mesmo absorvido após investigações internas, sua imagem enterrara
suas pretensões.
Proposta aceita, pouco depois Guto estava morto. Guimarães
nunca admitiria esse feito. Guimarães, egresso da AMAN e aspirante ao
generalato alguns anos antes, transformou a patente em alcunha e se lançou ao
crime, em tempo integral agora.
Ainda na Academia das Agulhas Negras, Guimarães aprendeu a
repudiar os militares que se alinhavam à legalidade, ao lado do presidente João
Goulart, ao chamá-los de melancias: verdes por fora, vermelhos por dentro.
Da turma freqüentada por Guimarães, saíram futuros generais,
como Enzo Martins Peri, comandante nos governos Lula e Dilma, Sérgio Ernesto Alves Conforto,
encarregado de refazer, de maneira mais decente, o IPM relativo ao Caso
Riocentro, Roberto Jugurtha Câmara Senna, comandante em invasões e ocupações de
morros no Rio de Janeiro, em 1994.
Guimarães, por sua vez, desligou-se do Exército em 1981,
após 19 anos de mediocridade e muita violência. Mas levou a sua nova “tropa” de
sanguinários uma estrutura interna que lembrava aquela única que conhecera. De
fato, que conhecera muitos anos antes, desde que ingressara no Colégio Militar
do Rio de Janeiro, em 1953, aos 12 anos. Por sua pele, de tonalidade tendendo
ao escuro, foi chamado ao longo de todo o curso de Negro Guimarães. Nunca deu
ouvidos a isso. Estudou na classe de Geraldo Castro Filho, o Castrinho.
A retórica anticomunista, insana e exaustivamente repetida
nas salas da AMAN, era inflamada pelos eventos de fundo político que assolavam
o país e as Forças Armadas. Como a operação contra uma rebelião liderada por
600 cabos, sargentos e suboficiais, em Brasília, revoltados contra uma decisão
do STF, que impedia um sargento de assumir o cargo como deputado estadual.
O Golpe de 31 de março de 1964 foi ouvido como um alívio, a
Guimarães. Em razão de sua dedicação ao golpe, e pelo enfrentamento contra
militares anti-golpistas, Guimarães escalou fileiras na frente anti-subversão.
Seu primeiro golpe foi desferido na sede da 1ª Companhia
Independente da Polícia do Exército, na Vila Militar do Rio. Esta região
representava a maior concentração militar da América Latina. Do seu íntimo
surgiram as sementes das ações que aterrorizariam o país nos anos seguintes em
manchariam a imagem do país por muitos outros.
Logo após a “Revolução Redentora” – como era chamado o
golpe, nas fileiras do exército -, a missão dos militares da Vila era “limpar”
a Baixada Fluminense. OS alvos eram: trabalhismo getulista e pequenos
traficantes de drogas. As armas eram já conhecidas de longa data nas delegacias
da região: violência desinibida e pau de arara. Os militares apenas garantiram
que o modelo seria aplicado a presos políticos, a exemplo do que já ocorria com
os alvos de costume, pretos e pobres. Desde então, a demarcação entre militares
e policiais se tornou pouco perceptível, sendo ambos vistos com a mesma freqüência
das delegacias. Inquéritos policiais sumários pululavam e vitimavam os líderes
trabalhistas de então.
Mas o ambiente ficaria ainda mais insalubre. Uma série de
acidentes ferroviários deixou os generais do I Exército – Rio de Janeiro - de
orelhas em pé. Em 1965, um trem descarrilou em Nova Iguaçu e atingiu um outro.
O saldo foi de 20 mortos e mais de 50 feridos. Não demorou para que o regime
culpasse grupos de “comunistas” pelo incidente – mesmo sendo de amplo
conhecimento o péssimos estado do sistema ferroviário local.
As primeiras investigações revelaram que 2 funcionários de
estações ferroviárias da Baixada eram ligados ao PORT – Partido Operário
Revolucionário Trotskista. Essa descoberta e a dedução “lógica” de que tais
grupos eram os responsáveis pelos desastres, inaugurou um período terrível de
prisões arbitrárias, interrogatórios brutalmente violentos e outros episódios
que levariam a Vila Militar a ser reconhecida como incubadora das torturas
oficiais de presos políticos no Brasil.
Diante dos progressos que o Regime fazia na luta contra
grupos subversivos, a Justiça Militar passou a vomitar uma quantidade
inimaginável de mandados de prisão. Agora, todos os psicopatas poderiam se
divertir à vontade. Ah! O AI-5 ainda não era sequer cogitado nesse período.
Se, por um lado, o Exército engrossava o discurso, por
outro, a subversão tentava reagir na mesma moeda. No dia 12 de julho de 1966,
um ataque a bomba no Aeroporto de Guararapes, em Recife, mudaria a sorte do
governo. A ato procurou vitimar o presidente marechal Costa e Silva. Mas este
escapou milagrosamente, após alterar seus planos de pouso, de Recife para Maceió.
Diante da ameaça, até então incogitada, as Forças Armadas
adotaram medidas mais sérias. Foi instituído um curso de Informações no CEP –
Centro de Estudos de Pessoal, no forte do Leme, tendo como público-alvo
sargentos e oficiais, e específico para enfrentar organizações de esquerda
armada.
Guimarães passou então, a exemplo de toda sua geração de
militares, a freqüentar delegacias, atuava em IPM`s, prendia e se tornava
amigos de delegados e policiais diversos.
No ambiente da Baixada Fluminense, as oportunidades de
ganhos financeiros para policiais e militares se multiplicavam. Desde 1962,
quando uma onda de saques vitimou mais de 2 mil estabelecimentos locais,
comerciantes e forças policiais passaram a viver de maneira mais umbilical. Essa
propina deu origem a diversos grupos de extermínio. Inimputáveis – haja vista
serem policiais – e agora bastante populares entre a população local, esses
grupos puseram a Baixada Fluminense no topo do ranking mundial de violência,
nos anos 1970.
Testemunho dado por Valdimir Palmeira, preso em 1968 após
participar da Passeata dos Cem Mil, ficou detido por três dias na solitária, o
primeiro deles sem roupa. Era interrogado a qualquer momento, enquanto um
soldado ficava com o fuzil engatilhado às suas costas. Guimarães era um dos
interrogadores. A detenção foi de cerca de dois meses. Valdimir não foi
torturado, mas não dormia várias noites por ouvir gritos vindos das outras celas.
Diversos corpos foram achados boiando no Rio Guandu.
Dentre os torturadores, o mais famosos era um ex-campeão de
luta livre, o cabo Marco Antônio Povoleri,um Hércules de músculos que era temido
até pelos colegas de farda.
Vladimir conseguiu seu habeas corpus, impetrado pelo
advogado Marcelo Allencar.
Mas poucos poderiam supor o que estava por vir. Em 13 de
dezembro de 1968, Costa e Silva assinaria o infame Ato Institucional nº 5.
Diversos grupos armados atuavam no país, a subversão ganhava batalhas, mas o
governo reagiu.
Esse dia inaugurou um novo e lamentável capítulo, como se verá.
(Continua!)
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Os porões da contravenção”
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