Diferente de Cazuza, que não via sentido em viver sem
ideologia, os bicheiros não tinham qualquer preocupação com relação a esse
assunto: repudiavam ideologias. Segundo Castor: “A contravenção tem um princípio.
Ela é governo e não tem culpa que o governo mude a toda hora.” Seja democracia,
seja ditadura, seja conservador, seja progressista o que importa aos
contraventores é ser amigo, aliado, achar um modus vivendi comum, cômodo para
todas as partes.
Mas a ambição não se restringia ao domínio da contravenção. A
criação da Liesa equivaleu a uma conquista armada. Privatizaram a celebração
popular e a repartiram entre comparsas: o primeiro presidente foi Castor; o
segundo foi Anísio; por fim, Capitão Guimarães fechou a trilogia.
A Liesa surgiu quando as 10 maiores Escolas de Samba,
lideradas pelos “irmãos metralha”, anunciaram seu desligamento da Associação
das Escolas de Samba, tradicional representante das Escolas.
A ideia de um Liga Independente seduziu a todos com
promessas econômicas relacionadas com direitos de transmissão, de
comercialização da marca, até então controlados pela Riotur. Com a Liesa, a
negociação com o poder público ocorreria sem intermediários. A conseqüência mais
importante foi o alijamento de 34 agremiações menores e sem recursos da
contravenção. Até os sambistas mais tradicionais ficaram afastados das decisões
referentes à festa que eles mesmos criaram.
Com a melhoria da imagem junto ao público, os bicheiros
passaram a se apresentar como empresários e desejavam levar profissionalismo
para a arena do samba. Foi com esse “enredo” que manipularam a criação de uma
liga independente.
Na política nacional, 1984 foi um ano de indefinições e
causou muitas preocupações. Afinal, foi o ano em que a emenda constitucional
das Diretas Já foi rejeitada pelo Congresso. O apoio a Tancredo tomava
proporções alarmantes para o governo que se despedia. O PDS, antiga Arena, racharia
diante do apoio a Paulo Maluf nas eleições presidenciais seguintes – pelo mecanismo
indireto, haja vista a rejeição à emenda.
Após a redemocratização, uma proposta de legalização do jogo
do bicho foi enviada ao Ministério da Justiça por secretários estaduais de segurança,
em 1983 – exceto o do Espírito Santo. Mas o governo Figueiredo não a levou
adiante.
Um relatório do SNI denominado “Análise sobre os prós e
contras referentes à regulamentação de jogos de azar no Brasil” defendia que a
regulamentação era “necessária e urgente, como um meio de tornar lícito aquilo
que existe e sobrevive ao arrepio da lei.”
Segundo o SNI, a ilegalidade “estimula a corrupção,
incentiva o crime e proporciona,m a uma minoria, lucros fabulosos (enriquecimento
ilícito)”. O documento elenca 9 argumentos pró-legalização e apenas 3 contra. “Reconhecer,
por lei, essa situação é apenas sancionar o que de fato já é uma vibrante e
evidente realidade, pois se o mal existe e se é tolerado, embora ilegal, é
preferível legalizá-lo a permitir sua propalação, com visível afronta à ordem
legal.”
Alerta também o documento para o desgaste da imagem da
Administração Pública e do Poder Judiciário, após as freqüentes denúncias de
envolvimento delas com os bicheiros.
Quanto aos impactos decorrentes da extinção dessas
atividades, o documento trata também dos impactos sociais negativos sobre as
pessoas mais humildes, que vêem no bicho e nos cassinos clandestinos um meio de
sustento, com ganhos bastante razoáveis. Trata também do mercado artístico, com
a criação de postos de trabalho para cantores, músicos, atores etc.
Em 1988, a emenda que legalizava os cassinos teve 2781 votos
a favor e 118 contra. Eram necessários 280 votos para sua aprovação. A emenda
referente ao jogo do bicho foi rejeitada por 208 votos.
Na eleição estadual para governador em 1986, os bicheiros
apoiaram o antropólogo Darcy Ribeiro, do PDT. O bicho já desembarcara dos
antigos donos do poder.
Foi desconcertante para Darcy participar de um almoço, numa
churrascaria, ao lado de Capitão Guimarães, Anísio, Miro, Maninho, Turcão,
Manola, e outros. O homem que fora inimigo do regime militar e obrigado a se
exilar no exterior, agora buscava apoio junto a ex-torturadores e
contraventores que apoiavam os ditadores.
Nas palavras de Guimarães: “Brizola deu a maior tranqüilidade
de todos os tempos ao jogo do bicho e nunca nos pediu dinheiro por isso. Agora
chegou a hora de retribuir e eleger Darcy Ribeiro governador, além de votar em
Marcello Alencar e Frejat para o Senado.”, continuou. Frejat era advogado e pai
do vocalista do Barão Vermelho.
Porém, nova reviravolta. Agora a vitória foi de Moreira
Franco.
Ao final de seu mandato, Moreira mostraria novamente o poder
dos bicheiros no estado. Em fevereiro de 1991, Moreira recebeu Capitão
Guimarães, Anísio, Luizinho Drumond e Carlinhos Maracanã no Salão Verde do
Palácio Guanabara. A cerimônia era para o anúncio da doação de um terreno para
o Museu do Samba. O escândalo teve as mesmas proporções do almoço oferecido a
Darcy, 4 anos antes.
Moreira se defendeu: “Fiz isso para causar uma discussão,
rasgar uma hipocrisia.” Completou dizendo que aquele evento era equivalente à condecoração
dada pela Rainha Elizabeth aos Beatles.
Em 21 de maio de 1993, a juíza Denise Frossard condenou a
cúpula do bicho a seis anos de prisão por formação de quadrilha armada. Foram
atribuídos a ele 53 homicídios – e um segurança armado foi preso nas imediações
do Fórum.
Mas as atividades criminosas continuaram no mesmo compasso.
As quadrilhas continuavam operando a partir de dentro da cadeia – além dos
comparsas de fora dos muros.
Outra descoberta, um pouco mais recente, foi a existência de
um Tribunal próprio: Clube Barão de Drummond.
É a Corte Superior do jogo do bicho: arbitra disputas, decide sobre bens,
heranças etc. E, claro, elimina quem desrespeita suas decisões.
Sua jurisdição vale para todo o país, deixando os limites
restritos do estado do Rio de Janeiro.
Em 13 de março de 2012, os bicheiros retornaram à cadeia. Agora,
no âmbito da Operação Furacão. A juíza agora era Ana Paula Vieira de Carvalho.
Cada um foi condenado a mais de 48 anos de cadeia. Os crimes agora são corrupção
ativa e formação de quadrilha. Dos 23 condenados, 10 tiveram prisão decretada.
Como alguns bicheiros já haviam falecido, seus familiares herdeiros das
atividades criminosas ocuparam o banco dos réus.
Em maio, o Ministro do STF Marco Aurélio de Mello determinou
a soltura dos presos, acatando o argumento da defesa, de que decisão do STF
datada de 2007 determinava a prisão apenas após o trânsito em julgado.
As sentenças continuaram emitindo novas condenações contra
os bicheiros, mas a decisão do STF os manteve respondendo em liberdade.
Para completar o quadro digno das máfias mais poderosas do
mundo, a revelação do escândalo Swissleaks apontou a existência de uma conta no
HSBC da Suíça em nome do Capitão Guimarães, em março de 2015.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Os porões da contravenção”
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