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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

GUERRA E PAZ: SEMPRE NESSA ORDEM?


Quando surgiram as primeiras comunidades de humanos, ainda na Idade da Pedra, tais comunidades eram pequenas e sua organização interna, simples. Nesse tipo de configuração, as pessoas tendiam a agir com suspeição ou desconfiança em relação a forasteiros.

Usavam-se métodos pacíficos para a solução de conflitos, mas a restrição ao uso da violência era reduzida. Embora a escala de uso da violência fosse pequena, em geral restrita à família, a população reduzida fazia com que a estimativa de vítimas girasse em torno de 10% a 20% da população.

Esse número é gritantemente superior ao das sociedades modernas. O século XX presenciou duas Guerras Mundiais, diversos genocídios e períodos de fome aguda em diversas partes. O número de mortes relacionadas a guerras, estima-se, variou entre 100 e 200 milhões de pessoas.

Embora as 150 mil vítimas das bombas atômicas lançadas sobre o Japão fossem mais numerosas do que a população do planeta em 50 mil a.C., em 1945 havia algo em torno de 2,5 bilhões de pessoas no planeta. No século XX, estima-se que tenham vivido cerca de 10 bilhões de pessoas. Isso faz com que o número de vítimas de mortes relacionadas a guerras representem de 1% a 2% da população mundial.

Ou seja, se você nasceu no século XX, suas chances de morrer em conseqüência da violência inerente aos desalmados humanos era 100 vezes menor do que se você tivesse vivido em cavernas.

Mas o crescimento das sociedades humanas criou ambientes mais complexos, que necessitavam de ordem e paz para seu bom funcionamento. Criaram-se leis que reprimiam mais fortemente o assassinato, por exemplo. Afinal, súditos bem-comportados são mais facilmente governados, e taxados. Súditos revoltosos costumam criar problemas para o poder estabelecido.

A conseqüência foi abordada acima: os índices de violência no período entre a Idade da Pedra e o século XX caíram vertiginosos 90%.

Evidentemente não houve uma redução linear. Por diversos períodos, muitas sociedades reviveram a matança dos povos da Idade da Pedra: de 1914 a 1918, por exemplo, 1 em cada 6 sérvios morreu de forma violenta, de doença ou de fome.

Não é difícil concluir o real papel exercido pelas guerras no desenvolvimento das sociedades. A cada guerra, formavam-se sociedades maiores e mais complexas, controladas por governos mais fortes, que usavam sua força para impor a paz, criando assim condições para a prosperidade.

Há 10 mil anos, viviam na Terra cerca de 6 milhões de pessoas, vivendo em média 30 anos e consumindo o equivalente a menos de 2 dólares por dia.

Hoje, somos cerca de 7 bilhões (mais de mil vezes maior), que vivem o dobro (67 anos, na média global), com rendimentos 12 vezes maior (25 dólares, na média global).

Trótski teria dito: talvez você não esteja muito interessado na guerra, mas a guerra está muito interessada em você. De qualquer forma, Basil Liddell Hart, criador da guerra de tanques, afirmou categoricamente: “a guerra é sempre uma questão de fazer o mal com a esperança d que disso resulte o bem”. Paradoxal, mas segue o raciocínio “dos males, o menor”.

Mesmo nosso cérebro age de maneira diversa quando processa esse paradoxo. Caso você se imagine torturando um terrorista, seu cérebro trabalhará mais intensamente a região do córtex orbital. Mas, ao contrário, se você estivesse calculando o número de vitimas que poderia salvar ao agir de dada maneira, seu cérebro intensificará a região do córtex dorsolateral. A sensação de conflito levará à intensificação da região do córtex anterior cingulado.

A relação entre guerras intensas e a criação dos Estados recebeu contribuição fundamental do filósofo inglês Thomas Hobbes. A década de 1640 foi de uma violência exuberante na terra da Rainha. Fugindo para Paris em razão da guerra civil em sua terra natal, Hobbes soube do massacre de mais de 100 mil compatriotas, e concluiu: se fossem deixadas por sua conta, as pessoas tenderiam a se engalfinhar e matar um aos outros para conseguirem seus objetivos almejados.

Hobbes via da seguinte forma: apenas um governo forte, no estilo Leviatã, seria capaz de conter os dissabores causados pelas onipresentes pobreza e ignorância, que levavam a assassinatos irrestritos. O tal Leviatã poderia ser um rei absoluto ou uma Assembléia, mas deveria ser sempre intimidador aos olhos dos súditos, a ponto de levá-los a se submeterem às leis do Leviatã.

A imagem dos “povos selvagens” usada por Hobbes, foram os ameríndios recentemente contatados.
A conseqüência mais imediata para Hobbes decorrente de sua obra “Leviatã” foi sua expulsão de Paris, levando-o a retornar à Inglaterra: os franceses odiaram suas idéias. Em casa, chegou a ser salvo de uma condenação por heresia pelo rei recém-restaurado.

Cerca de 75 anos após, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau publicou suas críticas. Este, via o homem em seu estado natural como “alheio à guerra e a qualquer vínculo social, sem nenhuma necessidade de seus semelhantes, bem como nenhum desejo de prejudicá-los”. Para Rousseau, o Leviatã corrompeu o homem.
Mas as conseqüências que Rousseau sofreu foram piores que a de Hobbes. O suíço teve de fugir para a região alemã de seu país; lá chegando, sua casa foi apedrejada; fugiu para a Inglaterra; depois voltou escondido a Paris , ainda que estivesse exilado da França.

Essa famosa oposição entre Hobbes e Rousseau se estende a nossos dias. Nas palavras de Reagan, em seu discurso de posse: “O governo não é a solução; o governo é o problema”. Hobbes ouviria horrorizado essas palavras. Ainda que fizéssemos a concessão de que a oposição correta é entre governos grandes versus governos pequenos, a discussão era essencialmente a mesma. Reagan declarou uma vez: “As 10 palavras mais aterrorizantes em inglês são ‘Hi, I`m from the government, and I`m here to help’” – “Oi, eu sou do governo e vim para ajudar”.  

Ainda que a discussão acerca do tamanho ótimo ou mesmo da existência do Estado permaneça, a relação de causa e consequência entre Estado e Guerra não aceita muitos argumentos contrários. Nas palavras do sociólogo Charles Tilly: “A guerra fez o Estado, e o Estado fez a guerra”.    


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

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