Cássia mais parecia ser duas do que uma pessoa, apenas. Fora
dos palcos era tímida, calma. Já nos palcos com o microfone na mão, se
transformava. Coçava um pseudo-saco, mostrava os peitos, cuspia no chão.
Lésbica assumida, cultivava um longo relacionamento com
Eugênia. Mas isso não a impediu de assumir um namoro com a percussionista Lan
Lan, já no final da vida. Também foi realizou o sonho de ser mãe.
Já a caretice, essa não se instalou. Bebia muito, fumava
muito e cheirava sem moderação.
Cássia era filha de um militar do exército. Quando este
tentou trazer a guarda do neto para si, abriu um precedente judicial que
terminou em jurisprudência e tanto garantiu a Eugênia a manutenção da
maternidade, quanto estendeu os efeitos a milhares de outros casais na mesma
situação.
Sua parceria com o compositor Nando Reis rendeu clássicos
até hoje bastante ouvidos e influentes musicalmente.
Apesar de ter diversas paixões, nenhuma parecia superar a
paixão pela música. Por diversas vezes pôs a música à frente de tudo.
Cássia Rejane Eller nasceu em 1962, no Rio de Janeiro. Seu
pai era Altair Eller, oficial paraquedista do Exército. Desde criança tinha
como um dos programas prediletos ir ao quartel em que o pai trabalhava.
Ainda cedo ganha um violão, mas não teve aulas particulares,
muito em função da timidez que a afastava das pessoas e dificultava fazer novas
amizades.
A profissão do pai os levou a morar em Belo Horizonte, onde
Cássia desenvolve seu amor pelo Atlético Mineiro.
Ainda criança, um problema de saúde deixaria seqüelas que
Cássia carregaria até sua morte e, eventualmente, a levaria embora. Após uma
febre reumática – a mesma que vitimou Dolores Duran –Cássia teve lesões no
coração. A partir daí ela não mais poderia fazer atividades extenuantes.
Passaria a necessitar de cuidados especiais.
Em 1972, vão morar em Santarém, no Pará. Lá, Cássia é vítima
de inchaços nas articulações. Tendo apenas 12 anos, sofria de arritmia
cardíaca. Nesse período ela ganha um violão e aprende a tocá-lo por meio de
revistinhas.
Anos depois, sua família regressa ao Rio de Janeiro. Aos 18
anos, conhece Moema, por quem se apaixona. Quando seus pais descobrem o
relacionamento, a reação é diversa: o pai aceita tranquilamente, enquanto a mãe
se desespera. Chega ao ponto de conseguir fazer o Exército transferir o marido
para Brasília, com o único fim de terminar a relação indesejada. Partem em 1981
para o Planalto Central.
Na Capital, Cássia inicialmente estuda num curso normal,
para professora. Depois, é aprovada para atuar no musical “Veja você,
Brasília”, de Oswaldo Montenegro. Atua ao lado de Zélia Cristina, futura Zélia
Duncan. Em um Carnaval, chega a cantar em cima de um trio elétrico.
Na escola, abandona os estudos antes de completar o segundo
grau.
E busca da carreira artística, Cássia ingressa no grupo
Malas & Bobagens e, por meio desse, grava uma canção, “For no one”, dos
Beatles.
Chega a cantar no festival Rock Way 2, onde conhece os
Paralamas, Raul Seixas, Lulu Santos.
Aos 20 anos, conhece a jornalista Elisa, 10 anos mais velha.
É uma época difícil, em função da separação dos pais e de estar sem nenhum
tostão no bolso. Depende dos amigos até para comer.
Em 1985, estando com 22 anos, atua no musical Gigolôs, de
Marcelo Saback. Lá, conhece uma performer que, em breve, estará cuidando de sua
carreira. Passam a dividir um apartamento. No entanto também é a época em que
Cássia conhece Eugênia, que passa a ser freqüentadora desse mesmo apartamento.
As três garotas terminam formando um trio amoroso.
Após a performer e amiga de Cássia ir-se embora, Eugênia,
que nunca tinha tido um relacionamento com uma garota, passa a ser a única
companheira de Cássia.
Então a cantora consegue fazer apresentações fixas num bar
chamado Bom Demais. Foi um sucesso, dando início a um proto-fã clube. Cássia
enchia a cara e soltava a voz, por quase dois anos.
Após se apresentar no Festival Latino-Americano de Arte e
Cultura, a cantor chama a atenção de uma produtora musical, Déborah Dornellas,
que investe numa fita demo para a garota. Ela grava “Já deu pra saber”, de
Itamar Assumpção, “Labirinto”, de Marcos Faraco, “Ne me quitte pas”, de Jacques
Brel, e “I ain`t gotr nothing but blues”, de Duke Ellington.
Com Deborah, Cássia assina com uma gravadora obscura do Rio,
a RKA e, depois, embarca para Sampa, de mudança com Eugênia, em busca de um
mercado para explorar.
Já em Sampa, em 1989, seu tio, Wanderson Clyton Eller,
empresário musical, investe numa fita demo. Nessa fita ele gravou “Por
enquanto”, de Renato Russo, versão elogiadíssima até pelo próprio. Em breve,
será a música mais executada nas rádios.
Após ahows no teatro Mistura Fina, em Ipanema, Ezequiel
Neves, o Zeca, fica boquiaberto com a artista. Após perder o amigo Cazuza,
Cássia parecia ocupar o vácuo deixado. Por meio dele, Zeca assina contrato com
a Universal.
Seu primeiro álbum tem músicas de Arrigo Barnabé, Itamar
Assumpção, Cazuza, Bocato, John Lennon e Paul McCartney e Renato Russo. Também
compõe a faixa Lullaby ao lado de Márcio Faraco. Ali ela deixou bem claro todo
o seu ecletismo musical.
Interessante que Cássia tenta incluir uma versão de “Por
enquanto”, como gravara na fita demo. Diante de incapacidade de reproduzir
aquele momento tão inspirado, optam por incluir aquela gravação original.
Cássia e o tio se mudam para o Rio de Janeiro. Compram uma
casa grande no Recreio dos Bandeirantes. No entanto, Eugênia teve de retornar a
Brasília, onde trabalhava no TST.
No Rio, Cássia abre a Eller`s Produções, ainda com o tio.
Dividem o imóvel com músicos e produtores, num ambiente meio hippie. Com um
estúdio bem aparelhado, passam o dia inteiro bebendo, fumando, cheirando... e
fazendo música. Após denúncia de vizinhos, a polícia dá uma batida no imóvel e
acha 10 pés de maconha no quintal.
A polícia leva todos para a Delegacia. Cássia, entupida de
calmantes e álcool, discute com o delegado. A situação não ficou ainda mais
difícil para a cantora porque Eugênia – por um acaso presente quando desses fatos
- conseguiu conter a namorada.
Em 1992, prestes a completar 30 anos, lança o álbum
“Marginal”. Nele se incluem músicas de Itamar Assumpção a Jimi Hendrix,
passando por Luís Melodia e Rita Lee. Participa do Free Jazz Festival, cantando
ao lado do guitarrista Victor Biglione. Estendem as apresentações ao Circo
Voador, também.
Apesar do burburinho que suscita, a produtora está indo de
mal a pior, Cássia está descontente com os sócios e o rumo dos negócios. A cada
dia se afunda mais nas drogas. A gota d`água ocorre quando seu tio tenta
impedi-la de se apresentar de graça no Bom Demais, onde tudo começou. Cássia
demite o tio e contrata Rafael Borges, então Legião Urbana.
Ainda nesse ano, num show em Salvador, Cássia teve um “rolo”
com Tavinho Fialho, baixista da banda. Cássia engravida, aos 30 anos. Como
Tavinho era casado, não o obriga a assumir o filho. Diante da felicidade da
amiga, Renato Russo compõe “10 de julho” para ela.
Quanto a Tavinho, ainda antes do nascimento de Chicão
(Francisco Ribeiro Eller), infelizmente morre tragicamente num acidente de
carro.
Ainda sem dinheiro, a gravadora paga o parto de Cássia.
Durante os primeiros três anos de maternidade, Cássia se afasta da bebida,
cigarros, drogas.
Enquanto Eugênia ficava em casa cuidando do filho do casal,
Cássia lançava o terceiro disco, “Cássia Eller”.
Em 1994, Cássia atinge a vendagem de 100 mil cópias. Conhece
o presidente da gravadora, Marcos Maynard. Após horas de conversa,
descontraídos, Maynard convence Cássia a gravar um álbum mais pop, para tocar
nas rádios, e produzido por Guto Graça Mello. Maynard também inclui João
Araújo, pai de Cazuza e presidente da Som Livre, no circuito. Ezequiel, ainda
lapindando a moça, faz um apanhado de inéditas de Cazuza. Encontra uma
preciosidade, Malandragem, que o Exagerado havia composto com o amigo Frejat.
Eles pensavam e oferecer essa música a Ângela Rô Rô, mas foi Cásssia quem a
imortalizou.
Cássia também grava, pela primeira vez, uma composição de
Nando Reis: ECT. Foi composta ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown.
Em apenas um mês, Cássia terminou a produção do disco. Esse
prazo insanamente curto era do feitio de Guto Graça.
O álbum atinge a vendagem de 100 mil cópias e lhe rende o
primeiro disco de ouro.
Bom, o passo seguinte seria sair em turnê e arrecadar muita
grana. Mas Cássia seguia seus instintos e seu coração. Decide não realizar
shows e investir num outro projeto, que acalentava há muito: Violões. Ela foge
da gravadora, que queria vê-la trabalhndo o recente estouro, em companhia dos
violonistas Serginho Serra, Walter Villaça e Luciano Maurício, realizando shows
usando um repertório bem parecido com o do disco recém lançado. Ainda inclui
“Eu sou neguinha”, de Caetano Veloso, e “Nenhum Roberto”, de Nando Reis.
Os shows ficam lotados e lança um disco ao vivo dos mesmos.
Vende 180 mil cópias e não para de tocar nas rádios.
Em 1996, Rafael Borges apresenta Cássia ao poeta Waly
Salomão. Este poeta um monumento no meio musical: produziu os discos “Fa-Tal” e
“Gal, a todo vapor”, de Gal Costa; realizou parcerias com Caetano e Jards
Macalé; foi gravado por Maria Bethania. Com Cássia, produz o álbum “Veneno
Antimonotonia”, somente com músicas de Cazuza.
Para esse álbum, Cássia faz uma revolução em sua aparência.
Passa máquina nos cabelos e vira punk. A foto de capa traz uma Cássia vestida
de homem. A batida das canções é bem pesada.
A vendagem não decepciona, embora tenha ficado abaixo dos
demais.
Waly ainda produz uma versão ao vivo do disco. Na arte
artística, dirige todos os passos da cantora nos palcos. Ainda agrega nas
apresentações ao vivo: “Todas as mulheres do mundo”, de Rita Lee; “Angel”, de
Hendrix; “All along the watchtower”, de Bob Dylan; “BNlack Dog”, de LEd
Zeppelin e “Farrapo humano”, de Luiz Melodia.
Em 1998, participa do Acústico de Rita Lee, cantando “Luz
Del Fuego”. Ainda nesse ano, abre os shows da turnê dos Rolling Stones, antes
de Bob Dylan subir ao palco.
Eugênia, preocupada com o futuro de Chicão, exige que Cássia
use parte do dinheiro que está recebendo para comprar um imóvel. Assim,
adquirem a cobertura em Laranjeiras, onde instala um estúdio.
Com um novo empresário, Leonardo Netto, lança um disco no
estilo Cássia-popstar: Com você meu mundo ficaria completo. Produzido por Nando
Reis, trazia canções de Gilberto Gil, Caetano, Marisa Monte, Luiz Melodia e,
claro, Nando Reis.
Uma preciosidade do disco é o dueto que Cássia faz com sua
mãe, dona Nanci, na música “Pedra Gigante”, de Gil e Bené Fonteles.
Na capa do álbum, Cássia resolve ironizar a capa anterior:
usa longas madeixas, calcinha e camiseta. Não a queriam mais mulher e sensual?
Vende 110 mil cópias. O maior sucesso, “O segundo sol”, de Nando, foi roubado
pela cantora, nas suas próprias palavras. Nando a reservava para seu disco de
inéditas.
Nando escreveu uma música especialmente para Cássia: All
Star. Mas essa gravação só se tornaria pública postumamente, no álbum “10 de Dezembro”.
A turnê traz no repertório “Corpo de lama”, de Chico
Science, e “Smells like a teen spirit", do Nirvana. Esta última, a pedido de
Chicão.
Também encontra tempo de curtir o sucesso. Participa de um
desfile de moda, canta em cima do trio, em Salvador, grava Erasmo Carlos.
Também mantém o hábito de cantar de graça, em bares, de surpresa.
Em 2001, resolve mudar definitivamente seus hábitos. Interna-se,
por decisão própria. Ele contou que chegou a ficar tão alucinada que esqueceu o
absorvente no “lugar” por 20 dias. Só “se lembrou” quando as dores a fizeram
procurar um médico.
Ainda em 2001, apresenta-se no Rock in Rio 3, com Chicão na
bateria, aos sete anos apenas. É quando mostra os seios, cospe no chão etc.
Ainda naquela noite, extravasando seu lado tiete, invade o palco durante o show
do Foo Fighters e beija Dave Grohl na boca.
Depois, revelaria que gastou mais reunindo os músicos do que
o que recebeu de cachê.
O sucesso também a levou a ser convidada por Anna Butler, da
MTV, para gravar um Acústico. Produzido por Nando, este e a banda passam 21
dias em Teresópolis. Trabalhando apenas, haja vista até o consumo de álcool
estar vetado. Tudo para manter Cássia limpa e concentrada.
A gravação ocorre sem imprevistos. Abre o disco, “Non, jê ne
regrette rien”, de Edith Piaf.
É nesse período que começa um romance com Lan Lan,
percursionista da banda. Cássia dizia que Lan Lan era “a minha mina”, enquanto
Eugênia era “a minha patroa”.
Em entrevista à revista Marie Claire, declara que é de
Eugênia a guarda definitiva de Chicão, assim como o patrimônio que amealhara.
Em 2001, realiza 110 shows.Para o Reveillon, é convidada
para comandar um espetáculo na Barra da Tijuca.
Mas, ainda no Natal, inicia uma série de desentendimentos
familiares que a levam a um estado incontrolável de estresse. Culmina num
ataque de nervos. Ainda no dia 26, viaja ao Rio para gravações, que ocorrem sem
maiores problemas. Mas, em casa, Cássia começa a beber, o que surte
preocupações em Lan Lan.
No dia 29 de dezembro, Cássia está transtornada. Recebe a
visita de amigas, mas nada adiante. Tem ataques de fúria a ponto de destruir
todo o apartamento. É levada à Clínica Santa Maria, mas consegue fugir, saindo
correndo pelo meio da rua, chorando e soluçando.
Algumas horas depois foi localizada por um dos médicos. Foi
reinternada ao meio dia. Como tinha bebido muito, não foi administrado qualquer
calmante ou sedativo. Uma hora depois, sofreu uma parada cardíaca. Depois,
sofre uma segunda. No fim do dia, é diagnosticada com isquemia na mão e
antebraço. Seguem-se mais duas paradas cardíacas.
No fim do dia 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos, Cássia se
despede definitivamente dos palcos.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A vida louca da
MPB”
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