Pesquisar as postagens

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

SEXO, DROGAS E MPB: RENATO RUSSO


Desde o início de sua carreira, Renato Russo carregava consigo a imagem de um “profeta” das novas gerações, o “messias” do rock. Suas letras, beirando a erudição, o elevaram ao patamar inquestionável de um poeta da língua portuguesa. Ele cativou seu público fanático a ponto de criar um estilo próprio de rock, indo além da influência inglesa. Seu timbre vocal e seu estilo o levaram, no fim da carreira, a flertar com a música italiana.

Suas letras traziam o tom político que fascinava a juventude que, nascida em tempos de autoritarismo, começava a respirar ares mais liberais. “Geração Coca-Cola”, por exemplo, criticava a alienação juvenil, tanto na sua vertente política (conseqüência de se viver num regime refratário a críticas pela sociedade), quanto na sua vertente crítica (a cabo das campanhas publicitárias que faziam aflorar a veia consumista das pessoas).

Mais à frente, usaria suas letras para declarar sua bissexualidade. Após seu primeiro disco solo, The Stonewall Celebration, Renato foi alçado ao status de representante e defensor da causa LGBT.

Musicalmente, sua banda era caracterizada como seguidora do estilo comumente chamado de “rock inglês”. Trazia elementos pós-punk, responsável pelas canções mais barulhentas, e repudiava músicos virtuosos. Renato era diretamente responsável por todos os aspectos da banda, desde as letras à concepção artística.
Renato Russo nasceu em uma família relativamente abastada, freqüentou boas escolas e morou fora do Brasil. Recebeu alcunha de nerd. Deu aulas de inglês.

Após uma doença muito séria nos ossos, tornou-se uma enciclopédia do rock, em razão das longas horas durante as quais lia e ouvia tudo de rock. Também era fascinado por cinema. Anos depois, criaria um cineclube com amigos, onde exercitava um de seus prazeres maiores, discutir sobre os clássicos da sétima arte.

Nascido em 1960, como ele mesmo dizia, ariano com ascendência em peixes, era filho do economista Renato Manfredini e de uma professora de inglês, Maria do Carmo. Sua família era de descendentes de italianos de Cremona. Todos, evidentemente, muito católicos.  

Desde cedo chamado apenas de Junior, aos quatro anos tocava piano. Aos cinco, lia e escrevia com facilidade. Estudou no colégio Olavo Bilac, enquanto morou na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Tinha uma irmã, Carmem.

Em 1967, vai morar nos EUA, com a família, quando seu pai é transferido para uma agência em Nova York do Banco do Brasil. Junior contava sete anos nessa época, quando então toma contato com a língua e a cultura norte-americanas. A experiência internacional dura dois anos.

Em 1973, vão morar em Brasília, numa mansão na Asa Sul.

Aos 15, é diagnosticado com epifisiólise, doença que se caracteriza por destruir tecidos cartilaginosos. A evolução da doença levou ao desprendimento de um fêmur de Renato. Passa por uma cirurgia malfeita, que o deixa um ano sem poder andar. Depois disso, passa a se locomover de cadeira de rodas e, depois, passa a usar muletas.

Apesar desse sofrimento, nesse período ele toma aulas de violão, lê e escuta músicas, tudo de maneira compulsiva. Também escreve e desenha incessantemente.

Imaginariamente, cria uma banda – 42nd Street Band – e um vocalista-líder a quem chama Eric Russel. Chega a criar entrevistas dadas pelo seu ídolo imaginário.

Reprovado no vestibular para a UNB, matricula-se no CEUB, onde cursa jornalismo.

Simultaneamente aos estudos, dá aulas de inglês na Cultura Inglesa. Também se torna membro da mal-afamada “turma da Colina”: um grupo de adolescentes “playboys” que se dirigiam a uma região de gramados e bosques, onde bebiam e fumavam baseados.

Quando contava 17 anos, o Príncipe Charles veio visitar o Brasil e aproveitou para participar da inauguração da nova sede da Cultura Inglesa. Renato, com seu inglês perfeito, foi escolhido para saudar o príncipe. Aproveita a respeitabilidade alcançada para convencer a escola a assina a revista Melody Maker, publicação quase impossível de ser adquirida no Brasil. Assim, mantém-se informado sobre seu ídolos estrangeiros.

Nessa época, também Renato começa a sair do armário. Confessa-se homossexual à mãe. Apesar de pia, dona Carmem ama o filho. Entram num acordo: ela aceita a condição de Renato, desde que não traga namorados para dentro de casa.

Já no emprego, pouco a pouco revela uma personalidade muito progressista para um ambiente bastante conservador. É demitido.

Morando numa cidade nem um pouco adequada, naqueles anos, a jovens em busca de diversão, Renato e seus amigos de Brasília gastam seu tempo planejando formar uma banda de rock. Ao lado do filho do embaixador da África do Sul no Brasil, André Pretorius, e de André Muller, futuro fundador da Plebe Rude, montam o conjunto Aborto Elétrico.

Essa banda só se extinguiria em 1982, após diversas formações. Nessa banda são lançadas canções imortais, como “Geração Coca-Cola” e “Que país é esse?”. A banda atraía jovens como Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, futuros integrantes da Legião Urbana.

Após diversos desentendimentos internos, o baterista Fê Lemos joga suas baquetas em Renato, que reage brutalmente no palco, despedindo-se da banda. Passa então a se apresentar sozinho, com o nome de Trovador Solitário. Adotou um estilo mais próximo de Bob Dylan. Leva consigo um violão de 12 cordas.
As músicas compostas nessa segunda fase trazem letras enormes e acordes muito simples. Desse período são os inesquecíveis clássicos “Eduardo e Mônica” e “Faroeste Caboclo”.

Em 1982 surge enfim a banda Legião Urbana. Mas a formação orginal ainda sofreria modificações. Os integrantes eram Marcelo Bonfá, Eduardo Paraná e Paulo Paulista. A influência musical ficava por conta dos ingleses do The Cure e The Smiths. Também muda o nome com o qual se apresenta para Renato Russo.
Após idas e vindas, a banda se estabiliza com a formação mais famosa: Renato, Marcelo e Dado. Faz parte das músicas do primeiro show o clássico “Ainda é cedo”.  

Um dia, em estúdio, os Paralamas do Sucesso gravaram a faixa “Química” para um álbum da banda. Os executivos da EMI adoraram a letra e foram à procura do autor. Poucos meses após, a Legião estava com contrato assinado com a gravadora.

A personalidade depressiva de Renato havia se manifestado, de maneira quase trágica, entes de firmar esse contrato. Renato havia cortado os pulsos. Não alcançou o suicídio pretendido, mas perdeu o movimento das mãos por algum tempo, tendo de fazer sessões de fisioterapia. Como tocava baixo na época, escalaram Renato Rocha – o Negrete - para assumir o instrumento.

Após vários desentendimentos com a direção artística da gravadora, e tendo lançado mão do jornalista Zé Emílio Rondeau para aplacar os ânimos e trazer uma linguagem mais jovem, típica do rock, a banda lança em 1985 seu álbum de estréia: Legião Urbana. O disco só estoura no final do ano, mas a gravadora, que espera vendas em torno de 5 mil cópias, surpreende-se com a venda de 50 mil discos. Esse disco continuaria vendendo bem ao longo dos anos.

O segundo álbum, Dois, vendeu mais de 1 milhão de cópias. O sucesso é estrondoso e, após apenas dois álbuns, a banda passa a ser chamada de Religião Urbana, em referência ao comportamento fanático e ensandecido do seu púbico.    

Após o lançamento do terceiro álbum, “Que país é esse?”, de 1987, a banda não poderia mais se apresentar em locais pequenos. A partir de então, somente estádios comportariam tamanho sucesso.    
No ano seguinte, 1988, Renato se sente à vontade para se assumir homossexual publicamente. À revista “Isto É”, responde: “Isso faz parte da minha vida, não é um problema. Reafirmo a minha homossexualidade para evitar que as pessoas passem pelo que passei: achar que era doente, que era estranho, que ia morrer e seguir direto pra o inferno. Para ter a liberdade de ser quem eu sou.”

Com relação ao público, nada mudou.

Ainda em 1988, ocorreu um dos eventos mais trágicos enfrentados pela banda. Em um show no estádio Mané Garrincha. Ansiosamente aguardado pelo cantor, tudo termina em caos. Ainda bem antes de a apresentação começar, policiais a cavalo se digladiavam com parte do público, numa praça de guerra ainda do lado de fora.  

O estádio só tinha uma passagem, servindo tanto para entrada como saída. Quando o show começa, metade do público ainda está do lado de fora.

Quando a banda abre o espetáculo com “Que país é esse?”, são recebidos com bombinhas no palco. Na quarta música, um fã invade o palco e se joga sobre Renato. Começa a pancadaria de seguranças contra público. Renato distribui agressões verbais contra a platéia: “Isso é coisa de garoto que não consegue arrumar namorada e fica se masturbando no banheiro. Eu consegui chegar aonde eu queria. Eu to rico! E vocês, o que vocês são? Vocês pagam para assistir ao show, e quem ganha dinheiro sou eu. Eu me dei bem na vida. Só que o show acabou! Acabou!”.

As vais contra a banda reverberavam nos muros do estádio. Renato está decepcionado com a cidade. Diz que é maldição, conseqüência dos milhares de candangos mortos durante a construção da cidade.
O resultado da pancadaria generalizada: 400 feridos, 60 presos, 64 ônibus depredados, o estádio quase abaixo. Vêem-se camisas da banda sendo queimadas, discos quebrados, pixações “Fora Legião!”. Marcelo e Dado voltam ao Rio. Renato ainda fica na cidade.

Anos depois, Renato diria: “Cho que existe uma maldade muito grande por parte de certas pessoas do público se elas saem de casa com bombas e entram no estádio com bombas para jogar no artista. O que nós fizemos foi nos defender. E colocar a nossa opinião. E eu não desminto nada do que eu falei.”
Renato também passa a ser acometido por crises de solidão. Abre-se aos fãs: “Eu to aqui, com vocês. Vocês vão para casa, dormir com a pessoa que vocês amam. Eu vou voltar para o meu quarto de hotel, sozinho.”

Passa a ser visto virando a noite na piscina dos hotéis, completamente bêbado. Diferente dos amigos de banda, que passam as horas livres com amigos e família, Renato se sente abandonado.

Chega a cancelar turnês e shows e voltar para casa, onde se afundava na bebida e nas drogas. Seu coquetel era: uísque, cocaína e, depois, heroína. Já sofrendo de alcoolismo, chega a permanecer 48 horas bebendo sem dormir, tornando-se agressivo contra amigos e familiares.

Pouco após, grava o álbum “As quatro estações”. Contando com faixas inspiradíssimas, o disco vendeu mais de 1 milhão de cópias. A gravação se atrasou, após a saída de Negrete. Fazem parte do álbum: “Meninos e Meninas” e “Maurício”– claras referências à sua sexualidade; “Monte Castelo”, onde funde passagens da Carta de São Paulo aos Coríntios com a poesia Lusíadas, de Camões. Em “1965 (Duas tribos)”, faz críticas políticas, tocando no tema das torturas durante a ditadura militar.

Este é o álbum predileto de Renato.

Em 1989, nasce Giuliano, filho adotivo de Renato. Inicialmente morando com Renato, mas sob os cuidados de uma babá, a criança vai em seguida para a casa dos avós, em Brasília, após dona Carminha convencer o filho de que a criança precisa de um ambiente mais estável.

Embora tenha sustentado algumas histórias sobre a mãe da criança, Renato se recusa a fazer um exame de DNA. Sua opção sexual e a falta de um companheiro fixo mexem muito com Renato, que declara: “A relação com meu filho é complicada. Uma coisa que eu não resolvo, empurro com a barriga. Como eu vou falar para o Giuliano que eu sou roqueiro e gay?”.

Denise Bandeira, escritora, atriz e amiga de Renato, vendo o consumo compulsivo de drogas pelo cantor, leva-o a uma clínica de desintoxicação. Lá passa 29 dias e compõe a canção “Vinte e nove”, em 1993.

Também durante esses 29 dias abate-se sobre ele seu pior pesadelo: contraiu AIDS. Renato jamais admitirá a doença. Ele enfrenta sozinho toda a Via Crucis que um aidético era obrigado a enfrentar naqueles tempos.
Vai morar em Ipanema, num apartamento simples, ao menos para quem havia faturado uma verdadeira fortuna até então. Mostra-se completamente desequilibrado emocionalmente, alternando momentos de euforia com fortes depressões.

Em 1990, em NY, Renato conheceu Robert Scott, norte-americano e provável único relacionamento significativo na vida de Renato. Viciado em anfetaminas, Robert convive por dois anos com o cantor, ora no Rio ora em San Francisco.

O relacionamento termina em 1993, quando Renato declara: “Acho que vou passar uns dez anos escrevendo músicas do tipo ‘meu amor partiu’”.

Em 1991, lançam o álbum “V”, que bate 500 mil cópias vendidas. Tanto a doença como as intermináveis bebedeiras, ainda no estúdio durante as gravações, garantem um ar sombrio ao álbum.

A ausência de Renato Rocha do baixo torna-se um problema para o grupo. Tentam alguns nomes, mas nenhum satisfaz Renato.

A música “A montanha mágica” traz a experiência musical de Renato com a heroína: “Minha papoula da Índia, minha flor da Tailândia. És o que tenho de suave. E me fazes tão mal.”

Em 1992, lançam “Música para acampamentos”. Álbum duplo, traz uma apanhado de sucessos, ao vivo ou em estúdio.

No ano seguinte, sai ‘”O descobrimento do Brasil”. Percebe-se uma ponta de otimismo nas canções, em razão dos progressos da medicina no tratamento da AIDS. Também, nesse período, Renato consegue abandonar a dependência química.

Declara ter largado o álcool por meio do programa “Os doze passos”. Também declara não ter vontade de morrer, não desejava ser enterrado como mártir. Admite sua fraqueza em relação às drogas e diz ter aprendido que não é o tipo de pessoa que consegue conciliá-las com uma vida normal.

Outro evento que afetaria a banda por muitos anos após a partida de Renato, foi o registro da marca Legião Urbana, feito apenas no nome do vocalista. Giuliano, seu filho e herdeiro dos direitos autorais, terá problemas com Marcelo e Dado futuramente.

Mas as questões ligadas ao coração ainda o destruíam por dentro. À Folha de SP, disse: “Será que vou ter que ficar uma tia velha, será que vou ter que ficar sozinho? Será que tenho que desmunhecar, será que sou uma bicha louca? Eu já namorei mulheres, tenho um filho. Mulher é uma coisa fabulosa, mas por mulher eu sinto um respeito demasiado. Com mulher, parece que eu estou sempre transando com uma amiga.”

Em 1994, sai do forno o primeiro sucesso de disco solo de Renato: The stonewall celebration. Disco em que é apenas apenas intérprete, com uma seleção de sucessos em inglês, que ele ouvia com Roberto Scott.
O nome é fazia referência ao conflito que houve em NY, quando gays freqüentadores de um bar em NY enfrentaram a polícia, em uma série de confrontos. Vendeu 200 mil cópias.

Mas o que ganhava mesmo as manchetes eram os rumores sobre o HIV. Por sua vez, Renato se recusava absolutamente a comentar sobre a doença.

Em 1995, dá cabo de um ambicioso projeto, Equilíbrio Distante. Composto por músicas pop italianas, encara como uma homenagem às descendência italiana de sua família. O disco vendeu 500 mil cópias. Mas o álbum demora para ficar concluído devido às recorrentes crises depressivas do cantor.

Apesar do avanço da doença, Renato se debate contra a necessária internação. Está muito debilitado e é frequentemente acometido por doenças oportunistas. Renato acompanhou todo o sofrimento por que passou seu amigo Cazuza, que teve toda a rotina do tratamento de sua doença publicado nos jornais. Ele sabe que a imprensa ficará de plantão na porta do hospital, e ele não deseja isso para si.

O disco “A tempestade ou O Livro dos Dias”, foi gravado em 1996, com os demais integrantes, apenas três meses antes de morrer. Devido a acessos de tosse, faltas de ar e quedas de pressão as gravações eram recorrentemente interrompidas. O clima no estúdio estava muito deprimido, com todos lamentando ver o amigo morrendo aos poucos diante de seus olhos.

O farto material gravado é suficiente para um lançamento póstumo, “Uma outra estação”.

Monta uma UTI em casa, para onde se recolhe após as gravações. Após pioras, sofre de anorexia nervosa. Para de comer, e sua saúde vai ao fundo do poço. Sem ânimos para lutar contra o que parecia inevitável, abandona toda a medicação.

Seu pai vai morar no apartamento do filho e acompanha seus últimos meses. Três semanas antes de falecer, cessam os barulhos de instrumentos, que costumavam soar de seu apartamento.

Tendo ouvido sobre a morte de Renato, Dado corre para o endereço do amigo. Lá, encontra o Sr. Manfredini chorando compulsivamente. Junior definha na cama: não come, não fala nem se levanta. Sua mãe, Carmem, toma coragem e viaja para ver o filho. Quando chega ao Rio, Junior já se fora.
Seu corpo foi cremado e suas cinzas, lançadas no parque Burle Marx. Onze dias após, Marcelo e Dado anunciam o fim da banda.

Ao todo, foram mais de 20 milhões de discos vendidos, vendas essas que não cessaram. Pelo contrário, após algumas décadas seguem bastante expressivas.

Como se lia nos encartes dos seus discos: Urbana Legio Omnia Vincit – A Legião Urbana a Tudo Vence.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A vida louca da MPB”

3 comentários: