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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

LATITUDES AFORTUNADAS – A VIDA APÓS UM LONGO INVERNO


Quando o mundo começou a se aquecer, após a última Era Glacial, plantas e animais passaram a se reproduzir freneticamente. O momento mais gélido daquela era viu, no máximo, meio milhão de seres humanos cambaleando pelo planeta; 10 mil anos mais tarde, éramos 10 milhões de humanos fuçando a natureza.

A faixa de Terra do planeta onde o clima e a ecologia conspiraram para a criação de pradarias, recheadas de grãos deliciosos e de mamíferos suculentos, foi batizada de Latitudes Afortunadas. Nessas regiões, a caça era farta e a coleta de alimentos, faustosa.

Em 8 mil a.C., dos 10 milhões de habitantes do planeta, mais da metade se situava nas Latitudes Afortunadas. Essa região inclui o atual Oriente Médio, sul da Europa, trecho da Indochina, América central, Oeste da China.  

Na região do Vale do Jordão, antes mesmo do término da Era Glacial, as coletas eram de tal forma ricas que as pessoas lá se estabeleceram, criando pequenas vilas, habitações permanentes que permitiam o explorar toda aquela abundância, sem ter de procurar outras paragens mais tarde.

O primeiro passo em direção à cultura agropastoril foi a domesticação, isto é, o cultivo de plantas e criação de animais, de maneira a alterar a genética dessas fontes de alimentos. As latitudes afortunadas eram ricas em espécies domesticáveis.

De acordo com Jared Diamond, o mundo possui cerca de 200 mil espécies de plantas, das quais comemos apenas 2 mil, e somente cerca de 200 são domesticáveis. Existem 56 plantas com semente comestíveis, pesando acima de 10 miligramas. Dessas, 50 se desenvolveram nas latitudes afortunadas. Das 14 espécies de mamíferos pesando mais de 45 quilos, domesticadas antes do século XX, 9 são oriundas das latitudes afortunadas.

Pelo exposto, é fácil notar que a domesticação se iniciou nas latitudes afortunadas, mais especificamente no sudoeste asiático. Esta região concentrava a maior diversidade de espécies domesticáveis no planeta.
O passo seguinte é o chamado cultivo. A região conhecida como Flancos Montanhosos abriga as primeiras sementes e animais anormalmente grandes, datados de 9500 a 9000 a.C. São as primeiras evidências de alteração da genética original.

A região onde hoje é a China abrigava também grande número de espécies domesticáveis, embora em número um pouco menor que a região dos Flancos. O cultivo do arroz se iniciou por volta 7500 a.C., na região entre os rios Amarelo e Yang-Tsé. O Painço e os porcos demoraram mais mil anos até a domesticação completa.

Na região onde hoje é o Paquistão, a cevada, os carneiros e as cabras tiveram seu cultivo inicial. Abóbora, amendoim e teosinte (ancestral do milho) foram domesticados no México em 6500 a.C. Quinua, lhamas e alpacas sofreram o mesmo processo no Peru.

A domesticação foi um processo contínuo, longo, incluía limpar os campos de ervas daninhas, capinados, arados, irrigados e fertilizados. Cultivar dava trabalho, mais do que caçar e coletar alimentos. Embora os seres humanos tenham convivido com uma alimentação menos rica e variada, após a domesticação de espécies, a produção de alimentos por unidade de terra eram muito superior.

Com a barriga mais cheia, os humanos se lançaram a uma explosão populacional, que populou as latitudes afortunadas com mais exemplares dessa espécie que viria a dominar todas as outras. Ali surgiram as primeiras vilas, cidades, sociedades e, mais tarde, impérios.   
   

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

OS ÍNDIOS IANOMÂMI E A IMAGEM DISTORCIDA DO BOM SELVAGEM


Após Napoleon Chagnon se formar em Ann Arbor, Michigan, embarcou ansiosamente em direção à Floresta Amazônica, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Era 1964, e ele esperava encontrar e estudar os Ianomâmi vivendo no estado preditado por Rousseau: selvagens de bom coração e alma desprovida das maldades que os homens infundem nas pessoas.

No entanto, suas palavras revelam um testemunho mais próximo do terror: “A excitação de encontrar meu primeiro Ianomâmi foi quase insuportável, conforme eu saracoteava como um pato pela passagem baixa, adentrando a clareira da aldeia.”

Evidentemente sua reação imediata foi querer retornar a casa e tentar se recuperar do susto. Mas ele ficou, e após mais 25 visitas, ao longo de 30 anos, pôde descrever melhor aquele povo até então isolado. Assim ele expôs: “um bom número de incidentes que expressavam uma índole individual vingativa de um lado e uma belicosidade coletiva de outro... desde incidentes corriqueiros de bater na mulher e esmurrar o peito até os duelos e ataques organizados ... com a intenção de emboscar e matar homens de aldeias inimigas.”

Chagnon estimou que um quarto dos ianomâmis morriam de forma violenta e que 20% participavam de pelo menos um homicídio durante suas vidas. E mais: os homens que matavam geravam em média 3 vezes mais filhos do que os que os demais.

Evidentemente não correspondiam ao estereótipo de selvagens ocupados no seu dia a dia matando e massacrando outras pessoas. Sabe-se que mesmo as culturas mais ferozes convivem com laços de parentesco, viviam rituais de trocas de presentes e celebrações. Inclusive era assim, pacificamente, que resolviam grande parte dos conflitos surgidos. Mas o sangue ainda era o sangue o argumento mais forte na maioria dos conflitos.

Em 2008, o cientista Jared Diamond passou por uma experiência perturbadora, que ilustre bem as questões culturais que permeiam certos grupos humanos. Em uma viagem, realizando trabalhos de campo na Nova Guiné, ouviu, espantado, um relato de seu motorista, sobre sua participação em uma onda de massacres que durou 3 anos e vitimou mais de 30 pessoas.

Após revelar esse fato, o citado motorista abriu um processo contra Diamond, pedindo 10 milhões de dólares em indenização. O processo foi arquivado.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

O SOFT POWER DO CRISTIANISMO: COMO SUBMETER AQUELES QUE SE SUBVERTEM


O cientista político Joseph Nye criou o conceito do soft Power, ou poder suave: “usar fatores intangíveis, como instituições, idéias, valores, cultura e a percepção de legitimidade das políticas” para “convencer” as pessoas. Fazia oposição ao hard Power, ou poder duro da guerra e da economia.

Contudo, Nye tinha consciência de que tal poder somente teria efeito se viesse na esteira do poder duro. Os norte-americanos ilustraram bem essa política, no Vietnã: “Agarre-os pelos culhões, e seus corações e mentes virão na sequência.”

Para erigir seu soft Power, Roma usou sistemas de pensamento que nasceram em seus domínios e que atraíram milhares de seguidores: o estoicismo e o cristianismo. Não nasceram como sistemas de pensamento imperial; na verdade, os fundadores de tais ideologias eram bastante críticos do poder constituído. Afinal, tratava-se de um filósofo grego paupérrimo e de um carpinteiro judeu, marginalizados geográfica e socialmente. A partir de tal condição, é que diziam as verdades que julgavam cabíveis.

Após algumas gerações, os dirigentes do Império, temendo perder seu poder, fizeram algo que se tornou bastante comum ao longo da história: subverteram a contracultura a seu favor.

Em vez de combaterem as idéias que emergiam, cooptaram seus líderes mais brilhantes e os trouxeram para o establishment. Depois disso, selecionaram de maneira bastante interessada as idéias que mais lhes aprouveram, rejeitando aquelas que poderiam eventualmente lhes prejudicar.    

Com isso, antigas críticas ao império ganharam uma roupagem nova, que de certa forma justificava o Poder, tirando-o da berlinda.

Assim, disse Jesus: “Daí, pois, a César o que é de César”. Ao que foi complementado por São Paulo: “pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por Deus.”

Tanto o estoicismo quanto o cristianismo vedavam a violência não autorizada, o que agradava o Império. Daí, empreendeu-se um esforço monumental para propagandear essas idéias aos vizinhos.

Dificilmente uma ideologia que justificasse a oposição violenta diante de uma agressão externa, ou que defendesse o direito de resistência diante de desmandos estatais teria a mesma sorte...


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

KEYNESIANISMO MILITAR DO IMPÉRIO ROMANO: COMO AS LEGIÕES ENRIQUECERAM O IMPÉRIO


O Exército romano gastava grande parte do seu dinheiro comprando comida, que era despachado por barcos, a partir de regiões mediterrâneas mais produtivas, em direção às menos produtivas, localizadas nas fronteiras, onde se perfilavam as tropas.

Esse intercâmbio garantia maiores lucros aos comerciantes que enviavam as mercadorias, que eram taxadas em valores superiores, o que rendia mais recursos, que seriam gastos pelo exército. E assim era gerado o círculo virtuoso que girava as rodas da fortuna.

O volume era sempre crescente, o que exigia embarcações cada vez maiores, que reduziam os custos unitários do frete. A atividade comercial crescente empurrou mais pessoas em direção às cidades, locais estes destinatários de grande parte das despesas do Império não relacionadas ao Exército.

Nos primeiros séculos da Era Cristã, Roma contava com mais de 1 milhão de habitantes – naqueles anos, a maior cidade do mundo e cuja população é muito superior à de Roma atualmente.

As grandes cidades do período eram amontoados de gente, fedidos e barulhentos, porém pomposas, centros de poder, regalos festivos de aristocratas, tinham prédios de mármore reluzente e muito mais. Exigiam-se, portanto, mais mão de obra, mais comida, mais tijolos, pregos, vinho, pão. Para fazer frente a essas despesas, mais impostos, mais comércio e mais crescimento econômico.

O impacto econômico foi notável. Nos primeiros séculos do império, estima-se que o consumo per capita aumentou cerca de 50%. Como não havia políticas distributivas, o enriquecimento foi maior nas classes superiores.

As complexidades decorrentes do crescimento, as dores do parto, levaram à criação de soluções inovadoras: a liberdade dos coletores de impostos foi tolhida, pois não se desejava a cobrança de valores tão extorsivos que pudesse empobrecer os contribuintes a ponto de estes não mais poderem contribuir futuramente; os moradores mais produtivos não poderiam ter problemas nutricionais, o que levou à construção de abrigos e à distribuição gratuita de alimentos. Tudo isso levou à construção de uma sociedade mais rica e segura.

Mais uma vez, o paradoxo da guerra se fez presente. Homens violentos construíram reinos, mas tiveram de se tornar administradores, para que pudessem governá-los.

Júlio César, por exemplo, o autor da famosa frase “Veni, vidi, vici”, depois de vencer diversas batalhas, tornou-se icônico por adotar o calendário Juliano, ainda hoje em pleno uso.

O impacto da estrutura administrativa pode ser testemunhada ainda hoje em lápides, onde homens registraram, orgulhosamente, os cargos e honrarias com que foram agraciados em vida. Conselheiros, coletores de impostos, altos postos burocráticos, vê-se de tudo.

Um bem sucedido norte africano, que começara sua vida na lida do campo, assim deixou anotado: “Eu, até mesmo eu, fui acolhido entre os senadores da cidade, que me permitiram tomar assento nessa instituição... Passei os anos sendo reconhecido pelos méritos da minha carreira – anos que as más-línguas nunca conseguiram ferir com uma acusação... E assim mereci morrer da forma que vivi, honestamente.”

E suas palavras ainda ressoam pelas bandas daqui...
    

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

O PODER DAS ARMAS E AS ARMAS DO PODER


Diz-se que Marco Licínio Crasso, muito amigo de Cícero, teria dito: “Nenhum homem deveria se considerar rico, a não ser que pudesse bancar seu próprio exército”.

Em 30 a.C., um homem deu provas de que Licínio não exagerara. Sobrinho-neto de Caio Júlio César, Otaviano derrotou um a um os aristocratas do Império, até proclamar-se o primeiro Imperador de Roma. Provavelmente o homem mais rico do mundo, Otaviano apresentava-se como um rapaz comum, em oposição aos aristocratas embriagados pelo próprio poder.

Detentor do maior Exército do mundo, Otaviano passaria à história com o nome que adotou: Augusto, ou o mais ilustre.

O recado foi imediatamente entendido pelos aristocratas. A partir de agora, o poder da violência estava nas mãos de um só homem, de modo que eles deveriam achar outras maneiras para resolver suas rusgas que não a violência, que usavam com tanta naturalidade até então. As histórias de Shakespeare retratam bem a facilidade com que aristocratas assassinavam pessoas por motivos que consideraríamos supérfluos.

Interessante comparar com a Europa a partir de 1.500, quando o poder dos monarcas absolutos pacificou as turbulentas aristocracias, aposentando o assassinato de oponentes como ferramenta de poder.

A partir de Augusto, os romanos se reinventaram, passando a valorizar a paz, a ponto de criarem o conceito de Pax Romana, que vigiu nos dois séculos depois de Cristo.

E os progressos materiais se aceleraram desde então. Nas palavras do poeta Horácio: “Ceres (deusa da agricultura) e a bondosa Prosperidade nutrem a terra; pelo mar pacificado singram marinheiros.” Epíteto, escravo que se tornou filósofo, comemorou: “Roma nos proveu com uma grande paz. Já não há guerras ou batalhas ou grandes bandidos ou piratas; podemos viajar e transitar a qualquer hora, do nascer ao pôr do sol.”

Os progressos do período levaram o grande historiador Edward Gobbon a eleger o período centrado entre os imperadores Domiciano e Cômodo (de 96 d.C. a 180 d.C.) como o período de maior felicidade e prosperidade da história da humanidade.

Note-se apenas que os romanos conviviam com um alto nível de violência, como os espetáculos de gladiadores no Coliseu, cujo auge ocorreu nesse período. Cerca de 50 mil pessoas lá se apinhavam para se deleitarem com o macabro espetáculo.

A garantia da paz pode ser alcançada também mediante coerção. Como explicou uma croata, durante os anos de irrupção violenta de conflitos na ex-Iugoslávia: “Vivíamos em paz e harmonia, porque a cada 100 metros havia um policial para garantir que nos ‘amávamos’.” Quando o poder central derreteu, até os policiais se viram num mundo ausente de ‘amor’...

Outro método famoso de pacificação de territórios eram as inestimáveis 30 legiões romanas cuja função específica era serem enviadas a regiões que sofressem revoltas ou conflitos internos. Eram tão ameaçadoras que quase nunca foram acionadas.

Ilustrativo também é o que ocorre com o poder caso se enfraqueça. Os piores crimes ocorridos no Império datam do século I a.C., época de fragilidade institucional. Caio Verros, governador da Sicília entre 73 a.C. e 71 a.C., uma vez disse jocosamente que necessitaria de três anos no cargo: o primeiro para roubar o suficiente para ficar rico; o segundo, para roubar o suficiente para poder contratar bons advogados e o terceiro, para roubar o suficiente para poder subornar o juiz e o júri.

Não por acaso, Verros fez as três coisas, valendo-se de muita violência para alcançar o intento.

Terminou processado por Marco Cícero, preso, porém conseguiu escapar para o exílio. Cícero, com sua atuação na Corte, terminou inspirando uma geração de jovens advogados ansiosos por galgar altos cargos no Poder. Uma série de leis também foi promulgada com o fim de reduzir a corrupção no Poder.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

O SILÊNCIO QUE SUCEDE O ESPORRO: DE TERRAS ARRASADAS A CIDADES DOMINADAS


Após empreenderem mais uma matança em larga escala e eliminarem mais um povo de bárbaros da face da Terra, deixando atrás de si corpos decepados e amontoados sobre o chão encharcado de sangue, cansados mas aliviados após mais um missão “civilizadora” cumprida, agora na Bretanha, os soldados romanos tomaram o caminho de casa.

Conforme marchavam para o sul, percorriam cidades que já haviam sido conquistadas décadas antes. Em nada lembravam uma terra arrasada. Não se viam ruínas, nem refugiados desesperados pedindo ajuda; viam-se campos bem cuidados, cidades prósperas e mercadores tentando seduzir a clientela com seus produtos.

Fazendeiros bem sucedidos exibiam taças importadas, em que deliciavam bons vinhos, produzidos localmente. Não raramente avistavam-se casas luxuosas. Os líderes locais adotavam as togas romanas e seus filhos iam à escola, onde tinham lições de latim.

A famosa “Pax Romani” tinha características particulares que podem ser descritas com o exemplo a seguir. Marco Túlio Cícero, idolatrado orador romano, tinha um irmão, Quinto, então governador de uma Província onde hoje se localiza o oeste da Turquia. Após saber da insatisfação da população local em relação a Quinto, Cícero lhe enviou uma totalmente preenchida por conselhos e em tom bastante severo.

No entanto, ainda que soubesse do temperamento explosivo do irmão, Cícero acrescenta que os problemas do governo local não se deviam exclusivamente a Quinto. Os gregos também tinham culpa. Assim dispôs Cícero: “Deixe a Ásia (nome pelo qual os romanos chamavam a Província) refletir sobre isso. Se ela não estivesse sob nosso governo, não escaparia de nenhuma calamidade advinda de guerra externa ou de disputas internas. E, como não há maneira de prover governo sem cobrar impostos, a Ásia deveria estar feliz em comprar a paz perpétua ao preço de um punhado de seus produtos.”

Parecem surpreendentes tais palavras quando contrapostas às de Cálgaco (post anterior), mas é revelador do papel exercido pelas guerras em geral, ainda que involuntariamente.

No tempo em que Cálgaco e seus homens enfrentaram o fio das espadas romanas, a extensão do Império Romano equivalia a metade do território continental dos EUA, compreendendo 60 milhões de pessoas, das quais 40 milhões viviam nas riquíssimas cidades orientais, enquanto que 20 milhões se espalhavam pelas rústicas cidades no ocidente.

Fazia parte da estratégia de expansão romana referir-se sempre depreciativamente a quem sabiam que deveriam exterminar futuramente. Portanto a imagem dos “bárbaros do ocidente”, traçada pelos romanos, era pior do que poderia ter sido de verdade. A crônica do dia a dia “bárbaro” compreendia lutas, ataques de surpresa a tribos inimigas e batalhas. Todas as cidades eram fortificadas, diziam.

Relatos de cultos a cabeças decepadas, dependuradas do lado de fora das portas das residências eram bastante comuns. Sacrifícios de pessoas, como forma de oferenda a deuses eventualmente irados se multiplicavam. Alguns dos rituais testemunhados descreviam seres humanos queimados vivos dentro de estátuas enormes de madeira. Tácito resumiu tudo o que pensava sobre as tribos germânicas em uma frase: “Os germânicos não gostam de paz.”

Mais instrutivo ainda é notar que durante a Era dos Impérios europeus, nos últimos séculos, a tarefa dos romanos de descrever os povos bárbaros como endiabrados assassinos em série, desalmados devoradores de inimigos, foi muito raramente questionada. Somente no século XX, com o fim dos impérios europeus, que os estudos clássicos começaram a questionar a imagem descrita a partir de Roma, sobre seus inimigos, antes de conquistá-los.

Segundo acadêmicos, os antigos imperialistas usavam a mesma tática contra seus inimigos e infelizes vitimas: eram descritos como incivilizados, corruptos, para os quais a conquista deveria ser vista como um favor. Cícero usou sua habilidosa retórica para justificar a extorsão tributária praticada na Grécia; Júlio César escreveu uma obra literária visando a justificar a invasão e tomada da Gália (atual França); Tácito queria transformar seu sogro em herói militar.

Impossível não lembrar de Rudyard Kipling e seu odioso “fardo do homem branco”.

Seja como for, medir o nível de violência que reinava em dada sociedade parece ser uma tarefa um tanto subjetiva. É fácil taxar sociedades menos complexas e desenvolvidas de tribos violentas. Mas a longa série de guerras empreendidas por Roma ao longo de sua extensão não fez um número modesto de vítimas.
Esse invencível alargamento territorial se iniciou nos séculos V e IV a.C.; no século III a.C. alcançou os domínios mediterrâneos; no século II a.C. moldou a região a Leste de Roma e, no século I a.C., deitou domínio no noroeste da Europa. O número de vítimas é estimado em 5 milhões, desconsiderando-se os milhões transformados em escravos.

Mas, individualmente, a violência utilizada variava. Normalmente, dependia do nível de resistência encontrada. No caso da tribo dos sênones, em 283 a.C., a devastação foi de tal forma completa que a região passou décadas sem ver qualquer ser humano. Políbio, historiador grego transformado em escravo romano após ver seu país cair sob o domínio do Império, afirmou que as guerras entre Roma e Cartago, no século III a.C., normalmente eram finalizadas após “exterminar toda forma de vida que encontrassem, sem poupar nada... assim, quando as cidades são tomadas pelos romanos, você com freqüência pode ver não apenas cadáveres de seres humanos, mas também cães cortados pela metade, e também membros mutilados de outros animais.”

Se resistir à invasão romana rendia uma nauseante matança, não impor resistência mas criar revoltas posteriormente poderia revelar um destino ainda pior. Júlio César invadiu a Gália entre os anos 58 e 56 a.C. Essas batalhas vitimaram um número relativamente pequeno de soldados. No entanto, após a conquista, os invasores sofreram seis anos de incessantes revoltas intestinais. O saldo final revelou o assombroso número de 1 milhão de mortes de homens gauleses com idade de lutar, dos 3 milhões então existentes, além de 1 milhão vendidos como escravos.

Os embates contra os judeus também produziram boa quantidade de sangue. Entre 66 e 73 d.C., ocorreu a grande revolta judaica. O melhor testemunhou foi oferecido por Josefo, general judeu que debandou para as fileiras romanas após o início da turbação. Segundo este, os romanos incendiaram o Templo de Jerusalém, roubaram os tesouros sagrados e mataram mais de 1 milhão de judeus, além de escravizarem 100 mil.
Em 132 d.C., os indomáveis judeus se rebelaram mais uma vez. Mais uma vez, Roma reagiu, mas agora da maneira mais sádica imaginável. Segundo uma testemunha judia: “continuaram matando até que seus cavalos ficaram mergulhados em sangue até as narinas”. Exagerado ou não, o episódio vitimou mais de 500 mil judeus.

Após o massacre, a Província da Judeia foi rebatizada: agora se chamava Palestina. Quanto aos seus habitantes, filisteus e judeus foram banidos de Jerusalém, passando a viver exilados na Europa e no Oriente Médio, exceto por um dia no ano: a Páscoa judaica.     
   

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

PAX SEM VOZ NÃO É PAX, É MEDO


Na atual Grã Bretanha, nos arredores do monte Graupius, no ano 83 d.C., romanos e bretões finalmente se enfrentavam. A resistência bretã passaria história em cantos e versos até hoje entoados.

Sabe-se do seu desenrolar graças a Tácito, um dos mais importantes historiadores romanos. Tácito não esteve no local do conflito, mas era casado com a filha do general romano que liderou a invasão: Agrícola.
Por seu turno, os opositores, conhecidos como caledônios, eram liderados pelo seu mais terrível soldado: Cálgaco. Conhecidos pelos romanos como “homens do norte”, somavam 30 mil naqueles dias. E não estavam dispostos a deixar que os romanos os conquistassem facilmente.

Antes da batalha, Cálgaco juntou seus homens e gritou a plenos pulmões: “Homens do norte!” – o alarido dos soldados abafava sua voz. Aumentou o tom: “Homens! Ouçam!” – e o respeito que aquele guerreiro impunha fez as vozes se calarem. “Homens do norte! Esta é a aurora da liberdade para a Bretanha! Vamos lutar, todos juntos. É um dia para heróis – e, mesmo que você seja um covarde, lutar é a coisa mais segura a fazer agora!”

Naquela hora, o sol conseguiu romper a escuridão das primeiras horas da manhã. De novo, sua voz foi abafada pelos uivos dos seus homens sedentos por sangue romano. Cálgaco ergueu a cabeça e urrou: “Ouçam-me! Vivemos no fim do mundo. Somos os últimos homens livres sobre a Terra. Não há ninguém mais depois de nós – não há nada ali exceto rochas e ondas, e mesmo estas estão cheias de romanos. Não há como escapar deles. Roubaram o mundo, e agora vêm roubando tudo o que encontram pela terra, saqueiam até mesmo o mar. Se imaginam que você tem algum dinheiro, tacam-no por cobiça; se você não tem nada, atacam-no por arrogância. Eles roubaram todo o oriente e todo o ocidente, mas ainda não estão satisfeitos. São o único povo da Terra que rouba tanto ricos quanto pobres. Dão ao roubo, à matança e ao estupro o mentiroso nome de governo! Criam a devastação e chamam-na paz!”

Suas palavras finais foram completamente abafadas pelos gritos de seus homens, somados ao tilitar das espadas batendo contra os escudos. Sem que se precisasse ordenar, começaram a marchar em direção ao inimigo, que se encontrava a menos de 1 quilômetro dali, aguardando-os. Aliás, aguardavam esse encontro há mais de 6 anos. Os romanos estavam em menor número.

Agrícola assim dispôs seus soldados: à frente, os ajudantes (lutavam pelo dinheiro que conseguiam saquear das cidades e eram agraciados com a cidadania romana após 25 anos de serviços prestados), em geral não eram romanos; atrás, seguiam-se os legionários, a elite do exército romano, os melhores soldados do mundo; por último, os porta-estandartes. Agrícola pôs-se à frente desses últimos.

Ao notar o inimigo totalmente reunido no vale, Agrícola mandou que seus homens avançassem.

Seguiu-se um banho de sangue e de espadas e lanças atravessando corpos e extirpando membros inteiros. Os ajudantes mantinham a marcha, arrastando suas pesadas armaduras, perfuravam costelas e pisoteavam suas vítimas, deixando para os soldados que vinham imediatamente atrás a tarefa de tirar o último sopro do inimigo abatido.

O avanço era duro. Conforme subiam as encostas, encharcados de sangue e suor, os romanos desfaziam suas ordenadas fileiras. Ao mesmo tempo, os caledônios não se rendiam. Conforme viam o inimigo reduzir sua marcha decidida, mais se ordenavam e se amontoavam, dificultando ainda mais a vida dos romanos.

A cavalaria Caledônia, montada em pôneis, tomou coragem e avançou ameaçadoramente em direção aos romanos.

Apreensivo, Agrícola fez soar a trombeta, sinal para o avanço da cavalaria, até então recuada. Imediatamente, a coluna tornou-se linha. Novo trombetear, agora os homens baixaram suas lanças. Após o terceiro toque, a cavalaria partiu, exalando a selvageria que lhe era característica.

A matança se prolongou até o cair da noite. Calcula-se que tenham massacrado cerca de 10 mil caledônios. Cálgaco teria sido um deles. Agrícola saiu da batalha sem um arranhão sequer. Dentre os ajudantes “romanos” – como se sabe, eram todos bárbaros -, apenas 360 baixas. Dentre os legionários, zero mortos.
Tácito descreve o cenário testemunhado com o nascer do sol na manhã seguinte: “Um silêncio terrível se instalara por toda parte. Os montes estavam desertos, as casas fumegavam a distância e nossos batedores não encontraram ninguém”.

O que Cálgaco professara, os romanos reafirmaram: Roma fizera uma devastação e chamava isso de paz.    
     

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

GUERRA E PAZ: SEMPRE NESSA ORDEM?


Quando surgiram as primeiras comunidades de humanos, ainda na Idade da Pedra, tais comunidades eram pequenas e sua organização interna, simples. Nesse tipo de configuração, as pessoas tendiam a agir com suspeição ou desconfiança em relação a forasteiros.

Usavam-se métodos pacíficos para a solução de conflitos, mas a restrição ao uso da violência era reduzida. Embora a escala de uso da violência fosse pequena, em geral restrita à família, a população reduzida fazia com que a estimativa de vítimas girasse em torno de 10% a 20% da população.

Esse número é gritantemente superior ao das sociedades modernas. O século XX presenciou duas Guerras Mundiais, diversos genocídios e períodos de fome aguda em diversas partes. O número de mortes relacionadas a guerras, estima-se, variou entre 100 e 200 milhões de pessoas.

Embora as 150 mil vítimas das bombas atômicas lançadas sobre o Japão fossem mais numerosas do que a população do planeta em 50 mil a.C., em 1945 havia algo em torno de 2,5 bilhões de pessoas no planeta. No século XX, estima-se que tenham vivido cerca de 10 bilhões de pessoas. Isso faz com que o número de vítimas de mortes relacionadas a guerras representem de 1% a 2% da população mundial.

Ou seja, se você nasceu no século XX, suas chances de morrer em conseqüência da violência inerente aos desalmados humanos era 100 vezes menor do que se você tivesse vivido em cavernas.

Mas o crescimento das sociedades humanas criou ambientes mais complexos, que necessitavam de ordem e paz para seu bom funcionamento. Criaram-se leis que reprimiam mais fortemente o assassinato, por exemplo. Afinal, súditos bem-comportados são mais facilmente governados, e taxados. Súditos revoltosos costumam criar problemas para o poder estabelecido.

A conseqüência foi abordada acima: os índices de violência no período entre a Idade da Pedra e o século XX caíram vertiginosos 90%.

Evidentemente não houve uma redução linear. Por diversos períodos, muitas sociedades reviveram a matança dos povos da Idade da Pedra: de 1914 a 1918, por exemplo, 1 em cada 6 sérvios morreu de forma violenta, de doença ou de fome.

Não é difícil concluir o real papel exercido pelas guerras no desenvolvimento das sociedades. A cada guerra, formavam-se sociedades maiores e mais complexas, controladas por governos mais fortes, que usavam sua força para impor a paz, criando assim condições para a prosperidade.

Há 10 mil anos, viviam na Terra cerca de 6 milhões de pessoas, vivendo em média 30 anos e consumindo o equivalente a menos de 2 dólares por dia.

Hoje, somos cerca de 7 bilhões (mais de mil vezes maior), que vivem o dobro (67 anos, na média global), com rendimentos 12 vezes maior (25 dólares, na média global).

Trótski teria dito: talvez você não esteja muito interessado na guerra, mas a guerra está muito interessada em você. De qualquer forma, Basil Liddell Hart, criador da guerra de tanques, afirmou categoricamente: “a guerra é sempre uma questão de fazer o mal com a esperança d que disso resulte o bem”. Paradoxal, mas segue o raciocínio “dos males, o menor”.

Mesmo nosso cérebro age de maneira diversa quando processa esse paradoxo. Caso você se imagine torturando um terrorista, seu cérebro trabalhará mais intensamente a região do córtex orbital. Mas, ao contrário, se você estivesse calculando o número de vitimas que poderia salvar ao agir de dada maneira, seu cérebro intensificará a região do córtex dorsolateral. A sensação de conflito levará à intensificação da região do córtex anterior cingulado.

A relação entre guerras intensas e a criação dos Estados recebeu contribuição fundamental do filósofo inglês Thomas Hobbes. A década de 1640 foi de uma violência exuberante na terra da Rainha. Fugindo para Paris em razão da guerra civil em sua terra natal, Hobbes soube do massacre de mais de 100 mil compatriotas, e concluiu: se fossem deixadas por sua conta, as pessoas tenderiam a se engalfinhar e matar um aos outros para conseguirem seus objetivos almejados.

Hobbes via da seguinte forma: apenas um governo forte, no estilo Leviatã, seria capaz de conter os dissabores causados pelas onipresentes pobreza e ignorância, que levavam a assassinatos irrestritos. O tal Leviatã poderia ser um rei absoluto ou uma Assembléia, mas deveria ser sempre intimidador aos olhos dos súditos, a ponto de levá-los a se submeterem às leis do Leviatã.

A imagem dos “povos selvagens” usada por Hobbes, foram os ameríndios recentemente contatados.
A conseqüência mais imediata para Hobbes decorrente de sua obra “Leviatã” foi sua expulsão de Paris, levando-o a retornar à Inglaterra: os franceses odiaram suas idéias. Em casa, chegou a ser salvo de uma condenação por heresia pelo rei recém-restaurado.

Cerca de 75 anos após, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau publicou suas críticas. Este, via o homem em seu estado natural como “alheio à guerra e a qualquer vínculo social, sem nenhuma necessidade de seus semelhantes, bem como nenhum desejo de prejudicá-los”. Para Rousseau, o Leviatã corrompeu o homem.
Mas as conseqüências que Rousseau sofreu foram piores que a de Hobbes. O suíço teve de fugir para a região alemã de seu país; lá chegando, sua casa foi apedrejada; fugiu para a Inglaterra; depois voltou escondido a Paris , ainda que estivesse exilado da França.

Essa famosa oposição entre Hobbes e Rousseau se estende a nossos dias. Nas palavras de Reagan, em seu discurso de posse: “O governo não é a solução; o governo é o problema”. Hobbes ouviria horrorizado essas palavras. Ainda que fizéssemos a concessão de que a oposição correta é entre governos grandes versus governos pequenos, a discussão era essencialmente a mesma. Reagan declarou uma vez: “As 10 palavras mais aterrorizantes em inglês são ‘Hi, I`m from the government, and I`m here to help’” – “Oi, eu sou do governo e vim para ajudar”.  

Ainda que a discussão acerca do tamanho ótimo ou mesmo da existência do Estado permaneça, a relação de causa e consequência entre Estado e Guerra não aceita muitos argumentos contrários. Nas palavras do sociólogo Charles Tilly: “A guerra fez o Estado, e o Estado fez a guerra”.    


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

O DIA EM QUE A DESOBEDIÊNCIA E A INTUIÇÃO SALVARAM NOSSAS VIDAS


O mundo teve um herói de carne e osso. Seu nome é Stanislav Petrov.

Em setembro de 1983, Petrov era chefe adjunto para algoritmos de combate do Serpukhov-15, quartel-general do sistema de alerta da União Soviética.

Embora calculista, metódico e bem treinado Petrov mostrou-se surpreso quando, logo após a meia-noite, viu seu sistema de alarme ser acionado.

Uma luz vermelha piscava insistentemente no mapa gigante do Hemisfério Norte, que preenchia uma das paredes da sala de controle. Era o sinal de que um míssil havia sido lançado contra o país.
No letreiro acima do mapa, lia-se “Lançado”.

Por padrão, informações dessa relevância deveriam ser checadas. Após esse procedimento, uma nova mensagem surgiu no letreiro: “Lançado – Alta Confiabilidade”.

O ambiente político estava bastante tumultuado naquela época. Seis meses antes do incidente, Ronald Reagan acusou a Rússia do repetitivo epíteto de “império do mal”. Logo ameaçou prometendo a construção de um escudo espacial antimísseis: o famoso projeto Star Wars.  Foi com Reagan que o frágil equilíbrio que garantiu a paz entre os dois países por 40 aos se desfez arriscadamente.

Em seguida, Reagan anunciou a instalação de novos modelos de mísseis, capazes de alcançar Moscou em 5 minutos: eram os impressionantes Minuteman.

Pouco depois desses fatos, a Coréia do Sul atuou no sentido de denegrir completamente a imagem das Forças Aéreas soviéticas. Um avião comercial dos país asiático se desviou do trajeto correto e se debandou para lados da Sibéria. A URSS demorou inaceitáveis horas para localizar a aeronave. Após esta ter retomado seu curso normal, foi abatida por caçar soviéticos. Toda a tripulação a bordo morreu, o que incluía congressistas norte-americanos.

Apesar de todo esse precedente tenebroso, Petrov refletiu um pouco, usando a boa e velha lógica. Ele sabia que um eventual ataque norte-americano contra seu país, num evento que já vinha há muito sendo chamado de Terceira Guerra Mundial, deveria se iniciar com uma revoada de ao menos mil Minuteman, percorrendo a rota sobre o Polo Norte. Os alvos, evidentemente, seriam os silos onde eram armazenados os mísseis nucleares soviéticos. Essa estratégia garantiria um ataque mortal sem qualquer chance de reação. Enviar um míssil apenas era tão ridículo que não poderia ser verdade.

Então Petrov agarrou o telefone e disse: “Estou me reportando a você”, disse ele ao oficial de plantão, confiantemente: “É um alarme falso.”

O oficial reportado respondeu friamente: “Positivo.”

Pouco depois os alarmes silenciaram, todos respiraram aliviadamente. A equipe técnica começou a checar os circuitos e componentes quando, assombrados, leram no mesmo letreiro que os inquietou havia poucos minutos: “Lançado”.

Em seguida uma luz vermelha piscou no mesmo mapa, depois outra, depois outra... Em segundos o mapa estava todo pontilhado por luzinhas vermelhas se movendo apreensivamente em direção a Moscou.

O painel acima do mapa, até então apagado, em dado momento gritou: “Ataque de Mísseis”.

Petrov sabia instintivamente que seu algoritmo, que programou e desenvolveu, apresentava algum tipo de inconsistência. Mas, e se não fosse isso? Tratava-se do mais poderoso supercomputador soviético.

A máquina replicou automaticamente a mensagem de alarme a todos os membros da cadeia de comando. Um desses membros chamava-se Yuri Andropov, provavelmente o homem mais poderoso da URSS.

Três meses antes do incidente, o Centro de Desenvolvimento de Conceitos Estratégicos dos EUA realizara um jogo de guerra, que buscava traçar o cenário de como seria, passo a passo, uma guerra nuclear.

Nesse ponto, é importante que se explique: havia um conceito chamado “linha-limite” das forças de contra-ataque. Ambas as potências, tinham uma série de mísseis apontados permanentemente para alvos estratégicos, todos militares. Esses mísseis seriam lançados com menos restrições. Os ataques subseqüentes, além da “linha-limite”, teriam como alvo instalações civis.

Pois bem. A simulação norte-americana mostrou que em nenhuma hipótese os ataques ficariam restritos à linha-limite. Rapidamente as cidades seriam atingidas. O número de mortos ainda nos primeiros dias atingiria meio bilhão. Nas semanas e meses subseqüentes, em função da precipitação radiativa, da fome e dos combates que se desenvolveriam adicionalmente, outro meio bilhão se somaria às vítimas iniciais.

Diante dos fatos que absorviam sua atenção e tiravam seu fôlego, Petrov disse que suas pernas bambearam, foi obrigado mais uma vez a sopesar algoritmos versus intuição de programador, e cerrou fileiras, mais uma vez, ao lado de sua intuição.

Mais uma vez, a mensagem de Petrov interrompeu a escalada do alarme ao longo das linhas de comando. E, assim, as 12 mil ogivas soviéticas restaram intactas em seus devidos silos. Mais de um bilhão de almas foram presenteadas com mais alguns anos de vida.

Mas, profissionalmente, o destino de Petrov não veria agraciamentos, mas repreensões. Primeiro, por causa do relatório que apresentou, que foi considerado muito mal escrito pelos seus superiores. Depois, porque os protocolos apontavam o Secretário-Geral como a autoridade que poderia decidir sobre um eventual ataque nuclear.

Petrov foi rebaixado, em seguida pediu sua aposentadoria, sofreu um colapso nervoso e, anos depois, mergulhou na pobreza decorrente da crise que colapsou o Império Soviético.

Episódios como esse denunciavam que o destino da humanidade se encontrava à mercê de loucos e sociopatas incuráveis, que precisavam ser detidos imediatamente. Milhões marcharam em todo o mundo, exigindo o fim das bombas nucleares, votaram em políticos que prometiam oposição àquele estado de coisas. Até mesmo o desarmamento unilateral passou a ser perseguido por muitas nações esgotadas com aquelas ameaças reais de fim do mundo.

Mas o resultado final das manifestações foi bastante desanimador. Os velhos líderes foram reeleitos, mais armas foram construídas, mais mísseis lotaram mais silos etc.

Em 1986, o estoque mundial de ogivas nucleares alcançou o triste recorde de 70 mil unidades. Naquele ano, o vazamento da usina nuclear de Chernobyl deu mostras das conseqüências dramáticas do impacto da radiatividade sobre os seres humanos e a natureza.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade”.   

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

DE DRAGÃO A BANQUEIRO DO MUNDO: A CHINA E O MUNDO PÓS-CRISE


Em 4 de dezembro de 2010, o Wikileaks postou uma troca de mensagem (provavelmente ocorrida em 2009) entre a Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton e o Primeiro Ministro da Austrália Kevin Rudd. Lê-se no mesmo: “A Secretária também comentou sobre os desafios representados pela ascensão econômica da China, perguntando: ‘Como se negocia fortemente com seu banqueiro?’”.

Esse poder, como vemos hoje, é até mesmo capaz de alterar programas de governo de presidentes eleitos nos EUA, caso se oponha aos interesses de seu banqueiro...

O caminho trilhado pela China foi modelado por Deng Xiaping à imagem de Japão e tigres do sudeste asiático. Planejou-se desde o início uma economia dual, na qual zonas econômicas especiais pontilhavam a China com pequenas Cingapuras e Hong Kongs – ilhas de intensa atividade capitalista num mar infinito de mão de obra. Enquanto isso, o centro direcionaria investimentos (de novo, espelhando o Japão) mas também negociaria transferências tecnológicas e investimentos diretos estangeiros com corporações multinacionais japonesas e ocidentais.

Com vistas ao posicionamento global da China, esta mimetizaria o sudeste asiático, à procura de fontes de demanda para seu crescimento baseado em exportações, tanto nos EUA quanto na Europa.

Multinacionais americanas, européias e japonesas tiveram papel crucial em estabelecer compras na China e usar seus baixos custos para exportar para o resto do mundo, especialmente para os EUA.

Ao mesmo tempo, importações baratas oriundas da China para os EUA auxiliaram companhias americanas do estilo Walmart a espremer preços para níveis inacreditavelmente baixos, ajudando na trajetória de diminuição da inflação relativa tanto dos salários relativos dos norte-americanos quanto do preço da energia, requisitos-chave para a manutenção do fluxo de capitais para dentro dos EUA.

Conforme a China foi se tornando um ator principal no teatro mundial, seus líderes se tornaram observadores atentos das decisões do governo dos EUA capazes de afetar seu país. Particularmente, os Acordos de Plaza, de 1985, que condenaram o Japão a décadas infindas de crise e recessão, e a Crise 1998 no sudeste asiático, cuja causa foi a abertura irresponsável dos mercados de capitais e financeiros locais à banca internacional.

Diz-se que foi o trauma representado por essas duas hecatombes que levaram a China a resistir à pressão asfixiante de Washington no sentido de fazer os chineses valorizarem sua moeda. As razões da pressão pela valorização do yene nos anos 1980 são as mesmas da valorização do renmimbi hoje.

Mas o cenário acima não poderia ser mais falso. O mundo é muito mais complexo que esse.

Enquanto empresas americanas predominantemente baseadas nos EUA pressionam por uma apreciação cambial chinesa, outros atores igualmente relevantes tendem a ver o cenário sob outra perspectiva. Em Primeiro lugar, não parece haver um entendimento claro dos burocratas yankees de que o déficit gêmeo que exibem há décadas deva ser combatido desde logo. Em segundo lugar, algumas das maiores, mais dinâmicas e bem posicionadas firmas americanas seriam prejudicadas fortemente por uma valorização do renmimbi. Suas margens de lucro seriam reduzidas. Alternativamente, os americanos veriam seus IPad, computadores HP e até carros americanos sendo vendidos mais caros.

E mais. Muitas multinacionais americanas ameaçam deixar a China e transferir suas operações para a Índia ou África, caso o renmimbi deixe de ser competitivo frente ao dólar.

A despeito de todo o exposto, o crescimento brilhante da China nas últimas décadas deixou uma marca indelével no grupo das nações emergentes. Alguns foram devastados pela competição, mas outros foram liberados de sua relação de dependência em relação a nações e corporações ocidentais.

O México é um exemplo de nação que perdeu sobremaneira com a ascensão chinesa. Seu papel de manufatura de baixo custo localizada na periferia dos EUA (o exato papel que exerce no NAFTA), a emergência chinesa foi um pesadelo para os fabricantes mexicanos.

Entretanto, essa mesma China foi uma bênção par outros países – desde a Austrália (que pôs seus vastos recursos minerais à disposição de firmas chinesas) até a Argentina, e do Brasil à Angola (que, em 2007, recebeu mais recursos, na forma de investimentos diretos, principalmente no seu setor petrolífero, do que o FMI emprestou em todo o mundo).       

Provavelmente a América Latina seja o único continente que a China remodelou para sempre. A argentina e o Brasil verteram seus campos em produtores de alimentos que sustentam 1,3 bilhão de chineses, além de abrirem seus subsolos à sanha das fábricas, necessitadas de minérios.

Após sua entrada na OMC, a China usou seus baixos custos trabalhistas para extirpar concorrentes do México e de outras partes da América Latina em setores de manufaturas de baixo valor adicionado, como calçados, brinquedos e têxteis.

A conseqüência do cenário acima foi a desindustrialização da América Latina e seu retorno ao estágio de produtor de bens primários.

Este fenômeno teve escala global. Porque se o Brasil e a Argentina voltassem seus olhos em direção à Ásia, como já haviam feito, ele poderiam abandonar sua longa luta para entrar nos mercados de alimentos dos EUA e da Europa, dos quais foram barrados por severas leis protecionistas.

De qualquer maneira, a velha orientação de que a América Latina era o quintal dos EUA foi, de alguma maneira, alterada.

Os governos da região têm mostrado pouca resistência às investidas chinesas. Provavelmente se vêem tendo de escolher entre desindustrialização ou crises “à moda de 1998-2002”, seguidas por uma indesejável visita do FMI.              


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

COMO O SISTEMA FINANCEIRO GOLPEOU AS DEMOCRACIAS


Os impactos da crise de 2008 arrefeceram, mas ela ainda está aí, apoiada sobre os ombros dos déficits gêmeos que absorvem superávits de todo o mundo. É uma crise que não se extingue, mas se metamorfoseia, cobrando tributos ora num lugar, ora noutro.

Não se trata mais nem de crise financeira, nem mesmo econômica, mas política.

Na Europa, o desemprego continua em níveis elevados. A crise de 2008 pôs em marcha forças centrífugas que desmantelam o tecido social do rico continente, opondo países geradores de superávits e países que sofrem de déficits crônicos estruturais, que não serão sarados, não importa o quanto se exija que “apertem os cintos”. Esse cenário torna o sonho de uma verdadeira união econômica cada vez mais distante.

Nos EUA, a administração Obama, após as vitórias dos republicanos em novembro de 2010, ficou de braços atados. A tarefa de reanimar a economia restou nos braços solitários do FED de Bem Barnanke e sua tempestade de dólares, diante da incapacidade.

O chamado quantitative easing se caracteriza pelo incremento substancial de moeda circulando na economia, por meio de compras massivas pelo FED de ativos em papel. Não é a medida ideal, como bem sabe Barnanke, mas é a melhor alternativa diante do impasse entre Executivo e Legislativo.

Se a crise de 1929 foi vista pela administração imediatamente sucessiva, Roosevelt, como uma oportunidade única de encoleirar o sistema bancário, a crise atual tem vista apenas ex-funcionários de bancos manejando os orçamentos em benefício próprio.

Não apenas isso. Diversos congressistas americanos puseram a culpa no Estado, não no sistema financeiro a que ele parecia servir. Duas companhias hipotecárias controladas pelo Estado, Fannie Mae e Freddie Mac, encorajaram muitos pobres americanos fazer dívidas hipotecárias: outro caso de um Estado fazendo bagunça onde não tem conhecimento de causa. Não importa o fato de que as duas companhias faziam exatamente o que todas as demais faziam, e em escala menor. Mas a “verdade” que se impõe é aquela mais repetida...

Na Europa, a “verdade” que se impôs foi aquela que relegou a crise aos braços dos países periféricos, que teriam se endividado e gastado além de suas possibilidades. A pequena Grécia, a impiedosa Irlanda e os lânguidos Ibéricos perseguiram padrões de vida além de seus meios, criando dívidas nacionais maiores do que poderia sustentar sua capacidade de produção.

Irônico ler isso e contrapô-lo aos déficits gêmeos dos EUA. Embora a Grécia tivesse de fato um enorme déficit, a Irlanda era um exemplo de virtude fiscal. A Espanha viva um superávit quando a crise estourou. Portugal exibia semelhante à da Alemanha.  

Foi em razão da incapacidade de Estados nacionais, riquíssimos diga-se, de lidar com essa situação, levando, por exemplo, o governo Obama a emitir trilhões de dólares, prejudicando sobremaneira seus índices de popularidade que discursos políticos como o de Trump seduziram grande parte do eleitorado (deve-se lembrar que ele não obteve a maioria dos votos).

De certa forma, essas décadas de globalização, dos mercados financeiros ou dos mercados produtivos, levaram a um cansaço com relação àquela coisa que eles chamam de “resto do mundo”. Em dado momento, as pessoas só querem viver suas vidas e passam a sentir asco pela palavra Império.

Devem apenas não se esquecer de abandonar previamente suas mais de 100 bases militares em todo o mundo.   


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

A MATEMÁTICA DOS DERIVATIVOS TÓXICOS


Em 1997, o Prêmio Nobel de Economia foi concedido a Robert Merton e Myron Scholes pelo desenvolvimento de “uma fórmula pioneira para avaliação de opções de ações”. “Sua metodologia”, anunciou o comitê na conferência de imprensa, “pavimentou o caminho para avaliações econômicas em muitas áreas. Isso gerou novos tipos de instrumentos financeiros e facilitou o gerenciamento de riscos de maneira mais eficiente, pela sociedade.”

Se o infeliz comitê soubesse que, em poucos meses, a trompeteada “fórmula pioneira” iria provocar uma débâcle espetacular multi-bilionária, o colapso de um enorme fundo de hedge (o LTCM, nos quais Merton e Scholes haviam apostado seus recursos) e, naturalmente, um empréstimo dos confiáveis contribuintes americanos.

A causa verdadeira da falência do LTCM, que provou ser apenas um teste prévio da Crise de 2008, era bem simples: investimentos volumosos que se fiavam na condição não comprovada de que alguém poderia estimar a probabilidade de que eventos que são denunciados por seus próprios modelos não apenas como improváveis, mas, de fato, não teorizáveis.

Adotar a lógica incoerente de outrem é muito ruim. Mas apostar fortunas de todo o mundo em tais teorias é algo próximo de um ato criminoso. Então, como os economistas lidam com isso?  Como se convence o mundo, e o comitê do Prêmio Nobel, de que eles podem estimar a probabilidade de eventos (tais como o tamanho da inadimplência dos devedores), quando seu próprio modelo diz que são inestimáveis?

A resposta habita mais o campo da psicologia do que o da economia: economistas renomearam a ignorância e a negociaram com sucesso como “uma forma de conhecimento temporário”. Os financistas então construíram novas formas de dívidas sobre essa ignorância rebatizada e erigiram pirâmides assumindo que o risco foi removido. Quanto mais investidores eram convencidos, mais dinheiro as pessoas envolvidas faziam e melhores posicionados estariam os economistas para calarem vozes discordantes.    

Copiando a estratégia dos financistas de disfarçar “ignorância” como “conhecimento temporário” e “incerteza” como “risco sem risco”, os economistas renomearam o desemprego inexplicado (por exemplo, uma taxa de 5% que se recusa a cair) como “taxa natural de desemprego”. De repente, o desemprego parecia natural, portanto não necessitava de explicação.

O esquema de trabalho desenvolvido pelos economistas, era portanto: sempre que não conseguiam explicar desvios observados no comportamento das pessoas, diferente do que previram, eles ou rotulavam tais comportamentos como “fora de equilíbrio”, e então assumiam que eram aleatórios e seriam melhor explicados dessa forma.

Quando os desvios eram pequenos os modelos funcionavam e os financistas faziam fortunas. Mas, quando o pânico se instalou, e a corrida bancária se iniciou, os “desvios” se provaram ser qualquer coisa, menos aleatórios. Naturalmente, os modelos derreteram, assim como os mercados que ajudaram a criar.

Qualquer pessoa honesta que se debruce sobre o episódio deve, crê-se, concluir que as teorias econômicas que dominaram o pensamento de pessoas influentes (no setor bancário, nos fundos de hedge, o FED, o Banco Central Europeu, e muitos outros) eram nada mais que formas veladas de fraude intelectual, as quais proveram sombras de alguma base científica, atrás das quais Wall Street  tentou esconder a verdade sobre suas “inovações” financeiras.

Surgiam com nomes marcantes, como Efficient Market Hypothesis, Rational Expectations Hypothesis e Real Business Cycle Theory.

Percebeu-se com o tempo que a longa duração de tais entulhos reinando no pensamento econômico se deveu apenas à sua complexidade matemática quase indecifrável. E isso escondia sua fraqueza científica.      


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

RISCO REGULAT´ÓRIO: COMO CAPTURAR AGÊNCIAS E MANIPULÁ-LAS


Os mercados decidem os preços dos limões. E o fazem com o mínimo de dados a priori, já que todos sabem escolher bons limões. Não se pode dizer o mesmo sobre títulos ou, pior, de instrumentos financeiros artificiais. Consumidores não podem provar o produto, apertá-lo, sentir o cheiro. Eles avaliam segundo informações externas ou institucionais e em regras bem definidas, desenhadas e fiscalizadas por autoridades desapaixonadas e incorruptíveis.

Este era supostamente o papel das agências de crédito e das agências reguladoras estatais. Quando, por exemplo, uma CDO (Obrigação de Dívida Garantida), um ativo de papel combinando uma multitude de fatias de muitos tipos diferentes de dívidas, exibe uma nota triplo A e retorno 1% acima dos títulos do Tesouro Americano, a importância é dupla: o comprador pode ficar confiante de que a compra não é uma furada e, se o comprador for um banco, ele poderia tratar esse pedaço de papel do mesmo modo como trata dinheiro em papel, moeda, como aquelas com as quais ele comprou o papel. Esse procedimento garantiu lucros extraordinários.

Os incentivos para adquiri-las eram indecentes: o triplo A era valorado como o dólar; os bancos os vendiam ao FED e emprestavam a clientes, a outros bancos ou para comprar mais CDOs.

Não foi à toa que Warren Buffet chamou essas infames CDOs de Armas de Destruição em Massa. Era a materialização do sonho do caixa eletrônico no meio da sala.

Esse cenário rendeu poderes sobre-humanos aos profissionais do setor financeiro, como se fossem feiticeiros pós-modernos, com promessas imbatíveis e encantadoras de riquezas.

Somando-se a isso, os bancos pagaram as agências para que estendessem a nota de crédito triplo A às CDOs que eles mesmos emitiam. As autoridades regulatórias (além dos bancos centrais) ouviram com regozijo, como se kosher fosse; e os jovens que conseguiram um emprego mau remunerado no setor público, passaram a sonhar com carreiras em “bancões” como Lehman Brothers ou Moody`s (ao menos até 2008, no caso do Lehman).

Supervisionar o funcionamento dessa máquina complexa era tarefa de ex-funcionários do Goldman Sachs, Bear Sterns etc – ou de pessoas que desejavam profundamente um dia cerrer fileiras por aquelas bandas.
Com o som tilitante das moedas vertendo em seus bolsos incessantemente em montantes crescentes exponencialmente, não havia um ambiente propício a alguém perguntar qual era o real fundamento para a nota concedida pelas agências, ou a razão para crer que aqueles títulos carregavam risco zero consigo.

O resultado foi uma explosão de recursos que inflou os preços dos imóveis nas principais cidades do planeta.

Dessa forma, títulos sem real fundamento econômico, valorados por grandes agências de risco em notas alarmantemente altas, e inconsistentes, foram coniventes com a inundação do planeta por moedas que poderiam “evaporar” a qualquer momento.

E foi o que ocorreu: trilhões de dólares deixaram de existir assim que a inadimplência atingiu um valor relevante.

Desde então, o dinheiro real, isto é, aquele saído dos tributos extorquidos da população, passou a ser direcionado a bancos e demais instituições atingidas pela queda vertiginosa de seus Balanços, após perceberem que grande parte daquele quase-dinheiro em caixa, agora, não valia mais nada.

Mas a culpa é dos refugiados...   


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

TEORIAS ECONÔMICAS PANGLOSSIANAS: FANTASIAS NEOLIBERAIS


Na base das crises econômicas recentes subjazem três teorias econômicas que parecem seguir a receita de Voltaire para seu personagem dr. Pangloss: tudo o que existe, existe para nos beneficiar. Desnecessário alertar para tamanha ingenuidade...


EFFICIENT MARKET HYPOTHESIS – HIPÓTESE DOS MERCADOS EFICIENTES: Ninguém pode, sistematicamente, ganhar dinheiro por ter uma opinião diferente daquela do mercado. Por quê? Porque mercados financeiros gerem os mercados no sentido de garantir que os preços correntes revelem todas as informações mantidas privadamente. Alguns atores do mercado reagem fortemente a novas informações, outros reagem com menos ardor. Assim, mesmo quando todos erram, o mercado se movimenta na direção correta.


RATIONAL EXPECTATIONS HYPOTHESIS – HIPÓTESE DAS EXPECTATIVAS RACIONAIS: Ninguém deveria esperar obter qualquer teoria das ações humanas, no sentido de predicar, com acuidade e no longo prazo, sabendo-se que essa teoria pressupõe que os humanos erram sistematicamente ou ignoram totalmente as conseqüências de suas ações. Por exemplo, suponha um matemático brilhante que crie uma teoria sobre o blefe num jogo de poker e o ensine a usá-la. O único modo de torná-la útil a você é se o seu oponente não tiver acesso à teoria, ou que não souber usá-la. A REH assume que tal teoria não pode prever comportamentos muito bem porque as pessoas se adiantarão e alterarão as condições para a predição. Mas perceba a sutileza: para a REH funcionar, deve ser verdade que o erro das pessoas (quando se prevê alguma variável econômica, como inflação, preço do trigo, preços de derivativos ou ações) deve ser sempre aleatório – por exemplo, sem padrão, sem correlação, não teorizável.

A REH somada à EMH nunca preverá recessões, pois estas são, por definição, eventos sistemáticos e padronizados. Embora surpreendam quando ocorrem, recessões se desenrolam de maneiras padronizadas, cada fase altamente correlacionada com o que a precede.


REAL BUSINESS CYCLE THEORY – RBCT – TEORIA DOS CICLOS REAIS DE NEGÓCIO: esta vê o capitalismo como uma Gaia em bom funcionamento. Se deixada em paz, a economia será harmoniosa e nunca sofrerá de espasmos, crises e recessões. Entretanto, pode ser atacada por causas exógenas (um governo desastrado, um FED atrapalhado, sindicalistas indesejados, produtores de petróleo árabes etc.), às quais deve responder e adaptar-se.

Como uma Gaia benevolente reagindo a um choque de um enorme meteoro, o capitalismo responde eficientemente a choques externos. Pode demorar um pouco para as ondas de choque serem absorvidas, e podem haver muitas vítimas no processo, mas, todavia, sem que esteja sujeita a outros choques, administrados por burocratas egoístas e seus amigos corretores.

Enfim, teorias tóxicas criam economias tóxicas, que não passam de ilusões, motivadas em busca de teorias justificadoras.

A despeito de seus rótulos chamativos e aparência técnica, esses modelos econômicos meramente matematizaram versões supersticiosas que os mercados conhecem muito bem, seja em tempos de tranqüilidade, seja em períodos tumultuados.  


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

NEOLIBERALISMO: A DOUTRINA ECONÔMICA DO CAOS


As políticas neoliberais postas em prática por Thatcher e Reagan serviram bem a seus propósitos. Mas era preciso mais: uma nova variante de teoria econômica que acrescentasse alguma legitimidade científica às políticas atuais.

Para tanto, havia dois pré-requisitos que a teoria deveria abordar para que fosse considerada realista e contemporânea, numa época em que o mundo da economia era, como sugerido por Paul Volcker, caminhando para um pouco de desintegração.

Primeiro, a teoria econômica deveriam se distanciar da idéia de que uma economia poderia ser gerenciada racionalmente. Em segundo lugar, deveria expor um modelo de economia em que restrições regulatórias na acumulação de capital e todas as formas de restrições democráticas sobre mercados desregulados pareciam ser não apenas ineficientes, mas também sem sentido.   

Ambos os pré-requisitos foram descritos por um modelo formalista (o qual surgiu em múltiplas formas, todas elas adornadas por uma complexidade matemática impressionante), na qual o capitalismo se apresentava segundo uma de duas alternativas: ou como um sistema estático de mercados conectados em um estado de equilíbrio permanente, mas sem uma representação temporal específica; ou como um sistema dinâmico, movendo-se conforme a seta do tempo, mas representando apenas um único indivíduo (chamado agente representante) ou um único setor. Em suma: uma geração de economistas cresceu com modelos econômicos que poderiam trabalhar com complexidade ou com exatidão temporal, mas nunca com ambos ao mesmo tempo.

O modelo neoliberal traz consigo “fraudes” científicas conhecidas como Hipótese de Mercados Eficientes (EMH, na sigla em inglês), Hipótese das Expectativas Racionais (REH, em inglês) e Teoria do Ciclo de Negócios Real (RBCT, em inglês). Em verdade, não passam de teorias mercadologicamente impressionantes, cuja complexidade matemática teve sucesso por longos anos, ao esconder suas fraquezas intrínsecas.  

A grande vantagem de tais modelos era que eles traziam uma descrição do capitalismo tão complexa matematicamente que os usuários poderiam passar a vida toda imersos em suas estruturas formais, infinitamente retorcidas, sem que percebesse que, seguindo o roteiro sobre o qual foram construídos, seus modelos nunca poderiam sequer iniciar uma simulação do capitalismo real, como ele é.   

Agora, todos os modelos são abstrações, e seus propósitos são simplificar. Na física, por exemplo, começa-se com muitos cenários simplificados (por exemplo, desconsiderando atrito, ou mesmo gravidade) de maneira a conseguir entender algumas leis básicas da natureza. Mas então passa-se firmemente ao relaxamento das proposições irreais. À custa de maiores complexidades, os físicos obtêm variáveis úteis para suas teorias.

Não apenas em economia. Porque em teoria econômica, o processo de relaxar gradualmente restrições simplesmente não funciona. Se a ausência e gravidade é um dos exemplos mais restritivos na física, o equivalente em economia seria a ausência do tempo. Ou que todos os consumidores e indústrias são idênticos. Mas, diferente da física, que pode relaxar restrições para chegar mais perto da verdade, a economia não pode. De fato, há um teorema notável em economia provando que modelos econômicos solucionáveis não podem manejar tempo e complexidade ao mesmo tempo.

O fato de tal teoria ser um dos pilares da economia mundial atual, torna importante que qualquer modelagem econômica matematizado que não seja capaz de descrever transações em tempo real, por diferentes pessoas e indústrias, deve se divorciar de qualquer teoria sobre crises.    

Além disso, uma crise é, por natureza, um fenômeno dinâmico que afeta uma multitude de pessoas (e de indústrias) na sociedade, que se desenrola  em tempo real. As crises requerem uma falha de coordenação entre pessoas e setores diversos, um colapso na capacidade coletiva da economia em utilizar seus recursos.
Então por que a teoria neoliberal é tão louvada, atualmente? Por dois motivos. O primeiro é fácil de discernir: sabendo-se que o “troféu” da teoria econômica moderna não deixa espaço para Crises e descreve o capitalismo como um sistema interconectado de mercados em equilíbrio estático, ele serve como um fundamento ideológico fundamental para o livre mercado. O segundo, menos óbvio, tem a ver com o dinheiro tóxico de Wall Street.

Esse dinheiro tóxico tomou a forma das infames CDOs. Após criar esses títulos, retalhando no mesmo pacote dívidas prime e subprime, provenientes de uma variedade enorme de pessoas e negócios, utilizavam-se fórmulas matemáticas de uma complexidade assombrosa, para valorá-las em termos de preço e de risco. Foram criadas por engenheiros financeiros que trabalhavam para Wall Street (J.P. Morgan, Bank of America, Goldman Sachs, etc.).

No entanto, para que essas formulas pudessem ser usadas, certos dados deveriam ser estimados. Primeiro e mais importante, qualquer probabilidade de variação negativa de qualquer papel que fizesse parte do pacote não poderia estar relacionada à probabilidade de qualquer outro papel variar negativamente, também. Isto é, o que ocorreu em 2007-2008 seria... Impossível!

Alguém poderia se perguntar por que pessoas brilhantes e cujas carreiras dependiam de uma boa reputação embarcaram numa aventura tão cheia de estimativas em que não poderiam confiar plenamente. A resposta, novamente, é dupla. Primeiro, estes operadores de mercado eram prisioneiros de um comportamento de horda e poderiam perder seus empregos caso não seguissem o fluxo do mercado. Segundo, durante os ciclos de alta a profissão de economista foi vendida como uma superstição matemática, a qual armava os corretores com uma confiança super-humana – e super-insana, capaz de levar à lona o sistema que os mantinha vivos.       


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

TRICKLE-UP: COMO AS POLÍTICAS ECONÔMICAS CONCENTRAM RENDA


Ronald Reagan chegou à Casa Branca em 1981. Este presidente inaugurou uma nova era na política econômica mundial. De fato, quando se tronou o mais novo residente da casa de George, diversos conselheiros e estrategistas do governo já tinham traçado os mais novos planos para o futuro.

A retórica trazida por Reagan falava de uma década confusa em seus estertores, durante a qual o orgulho da nação sofreu graves reveses, os piores de sua história. Falava de um grande colosso econômico que, surpreendentemente, foi feito refém por um grupo de paisinhos produtores de petróleo no Oriente Médio, derrotado no campo de batalha por Viet Congs, expulso do Irã pela revolução iraniana, mantido de lado enquanto o Exército Vermelho marchava para o Afeganistão.

A sociedade americana também sentia na pele os efeitos deletérios da reversão da tendência histórica de aumentos salariais. Parecia que todos aguardavam um chamamento às Armas, em busca de algo que lhes devolvesse a auto-estima. Presidente Reagan ofereceu: impostos mais baixos, mais armas e retorno aos bons e velhos valores puritanos.

A ideia subjacente não era nem nova nem complicada: tirar o Governo do caminho das pessoas, permitir que eles guardem consigo seu dinheiro e possam levar a vida adiante, em paz. Na realidade, isso constituía um retrocesso diante das soluções inspiradas na Crise de 1929, de que o mercado era caprichoso demais para ser deixado nas mãos de empresas e consumidores; de que o governo deveria disciplinar, incentivar e orientar o progresso do setor privado, com a intenção de reverter Crises econômicas, não apenas no nível local, mas também no nível global. Em certo sentido, a mensagem de Reagan era consistente com as idéias iniciais de Volcker, de que os interesses nacionais requeriam uma “desintegração na economia mundial” – no sentido de que deveria ser tirada do equilíbrio, procurar mudanças.

A única diferença é que o velho ator de filmes B vocalizou de maneira mais simples: nada será tão bem sucedido coletivamente quanto o sucesso individual sem restrições, foi seu recado. Se a América não conseguia sair do atoleiro, era porque o “Big Government” a segurava. Com um setor privado potencialmente produtivo sendo impedido por um Leviatã centrado em si mesmo, a única coisa necessária era soltar as amarras e o Leviatã voltaria ao seu devido lugar.

E qual seria o lugar correto do Leviatã? A defesa da Nação. E isso somente seria possível se as Forças Armadas projetassem seu poder aos quatro cantos do planeta.

Após o endosso dado pelas urnas, Washington embarcou nas políticas econômicas do lado da oferta e nos aumentos massivos do Orçamento militar. Privilegiar políticas do lado da oferta era a chave para reduzir todos os impedimentos à cumulação de capital. Na prática, isso significava: grandes reduções de impostos para as classes superiores, redução de gastos com programas sociais e a remoção de muitas restrições sobre Wall Street, resquícios da era econômica anterior. Nesse meio tempo, os recentes aumentos dos gastos militares forneceram a demanda necessária para a expansão de uma grande rede de indústrias militares interconectadas e de encomendas de equipamentos de defesa.  

Quando dissidentes denunciaram que as reduções de impostos beneficiavam apenas os ricos (especialmente quando combinados com cortes em programas sociais), a resposta padrão veio na forma do tão repetido “trickle-down effect”, ou efeito transbordamento: conforme os ricos se enriquecem ainda mais, seus gastos e investimentos serão transbordados para os menos privilegiados, mais efetivamente do que ocorreria por meio de transferências financeiras, o que exigiriam a taxação dos mais ricos.

No entanto, não há qualquer evidência empírica que comprove essa hipótese. De maneira mais simples: isso nunca ocorreu. A riqueza crescente dos indecentemente ricos nunca alcançou as classes mais baixas. De fato, ocorreu exatamente o oposto: um efeito um tanto diferente, o trickle-up effect, foi ocasionado pelo mercado de derivativos.

Como se sabe, a “securitização” de dívidas sem garantias de pessoas mais pobres (por exemplo, por meio da conversão de hipotecas sub-prime em CDOs), tem o efeito de fazer o empréstimo inicial se tornar indiferente ao seu adimplemento – porque ele já terá vendido essa dívida a outra pessoa.

Resumidamente, os bancos reuniam dívidas das pessoas mais ricas, da classe média mais endinheirada, de empresas, classificadas como prime, ao lado de dívidas sub-prime, sem garantias e extremamente arriscadas. Dividiam em pacotes que traziam títulos de todo tipo, inclusive sub-primes e comercializavam esses pacotes. Em geral, quem o adquiria não sabia quantos títulos sub-prime havia no pacote adquirido.
Esses pacotes “securitizados” de dívidas são então vendidos e revendidos com lucros estrondosos (ao menos até a Crise de 2008). Os ricos, em um certo sentido, descobriram outra maneira engenhosa de ficarem ainda mais ricos – pela comercialização de ativos de papel empacotados em meio a sonhos, projetos pessoais e, eventualmente, desespero dos mais necessitados.
     

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

“WALMARTIZAÇÃO” DE CONTRATOS DE TRABALHO: COMO TRANSFORMAR OURO EM LAMA


Walmart é um dos maiores conglomerados empresarias do planeta. Com receitas anuais batendo nos 335 bilhões de dólares, só fica atrás da Exxon Mobil. Walmart simboliza a novíssima fase da acumulação capitalista.

Diferente dos primeiros conglomerados, os quais cresceram no século XX em decorrência de invenções e inovações tecnológicas disruptivas, o Walmart e sua absoluta desconsideração por seres humanos construíram um império suportado por praticamente nenhuma inovação tecnológica, exceto por uma longa cadeia de “inovações” envolvendo maneiras engenhosas de espremer preços de fornecedores e salários de empregados envolvidos em todos os estágios das operações, da produção à distribuição.

A eminência do Walmart se deve a um fator: na era dos “déficits gêmeos”, ele entendeu a frustração sentida pela classe trabalhadora norte-americana por ter sido deixada para trás na perseguição do American Dream, aquela certeza inabalável de que os salários seguiriam crescendo indefinidamente, tornando especialmente atraentes os preços mais baixos, sempre declinantes.

Diferente de corporações que focavam na construção de uma marca forte (como Coca-Cola, Marlboro), ou de empresas que criaram um setor inteiramente novo, por meio de alguma invenção (como Edison e a lâmpada, Microsoft e o Windows, Sony e o Walkman ou Apple e o pacote iPod/iPhone/iTunes), o Walmart fez algo que ninguém tinha nem mesmo cogitado: eles comercializaram uma nova ideologia de preços baixos, como se fosse uma marca que apelasse aos bolsos dos trabalhadores americanos empobrecidos e da baixa classe-média.  

Aqueles trabalhadores frustrados por verem seu padrão de vida decair desde 1973 viam nos preços mais baixos dos produtos a oportunidade de sentirem alguma satisfação enquanto consumidores. Sobretudo, suas condições de trabalho se deterioravam conforme outros empregadores copiavam fielmente o modelo inaugurado pelo Walmart.

Nem mesmo criticar as péssimas condições oferecidas a seus empregados seria possível, pelo simples fato de que o Walmart não tinha empregados. A empresa referia-se a eles como “associados”. O emprego dessa linguagem “orwelliana” é usado para explicar o completo banimento de atividades sindicais em suas instalações.

O resultado é uma variedade impressionante de denúncias de insalubridades: quase todos os “associados” recebem menos de 10 dólares por hora, horas-extras não remuneradas e trabalho em armazéns trancafiados no período noturno. A companhia enfrentou 63 processos trabalhistas em 42 estados. Para extinguir essas ações, a empresa pagou compensações de 352 milhões de dólares – apenas parte do que deixou de pagar ao longo dos anos.

Contudo, as condições em fábricas e fazendas do Terceiro Mundo, onde os produtos comercializados pelo Walmart são gerados, são, como se poderia imaginar, praticamente criminosas.

Os defensores do modelo Walmart de globalização dizem que o crescimento econômico tem se mantido forte por décadas, no mundo todo, algo benéfico aos pobres. Contudo, esquecem de considerar o efeito distributivo das práticas do Walmart sobre os mais pobres.

Um relatório da ONU de 2006 diz que, por volta de 1980, para cada $100 de crescimento econômico mundial, os 20% mais pobres recebiam $2,20. Após 21 anos, por volta de 2001, os países mais pobres, produção e emprego relacionados a multinacionais como Walmart tinha crescido substancialmente.

Após todos esses “benefícios” proporcionados, sabemos que um crescimento de $100 na economia mundial se reflete em apenas $0,60 no bolso dos 20% mais pobres. Se a isso somarmos os aumentos desproporcionais nos preços das commodities (alimentos, energia), assim como o decremento na qualidade dos serviços públicos, conseqüência inevitável dos diversos programas de ajuste impostos pelo FMI, no curso das crises de dívidas do Terceiro Mundo iniciada nos anos 1980, resta muito pouco para os seres humanos mais pobres comemorarem.

O chocante documentário de Robert Greenwald “Walmart: The High Cost of Low Price”, de 2005, uma mulher empregada numa fábrica de brinquedos na China, pergunta: “Vocês sabem por que os brinquedos que vocês compram são tão baratos?” E então prossegue, sem hesitar, respondendo ela mesma sua pergunta: “É porque nós trabalhamos o dia todo, todos os dias e todas as noites.”

Em suma: o Walmart representa mais que o capitalismo oligopolista corporativo. Representa um modelo de negócio que se desenvolveu em resposta às novas circunstâncias, em meio à pauperização do Primeiro Mundo. O modelo de negócio extrativista materializado na forma de preços baixos e lucrou ao entender a intrínseca relação entre preços decrescentes e poder de compra em declínio, da classe trabalhadora americana.

Ele importou o Terceiro Mundo para diversas cidades dos EUA e exportou empregos para o Terceiro Mundo (terceirizações), causando o esgotamento tanto dos recursos humanos quanto do meio ambiente, onde quer que estivesse.

Onde quer que se procure, mesmo nos setores tecnologicamente mais avançados, nós podemos reconhecer a influência do modelo Walmart, na relação entre Apple e Foxconn, por exemplo.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O Minotauro Global”


DINHEIRO QUE EVAPORA: COMO OS MERCADOS INFLACIONAM PREÇOS


Até a Crise Financeira de 2008, cerca de 70% do fluxo total de capitais era direcionado para tapar o déficit gêmeo criado pelo Tesouro dos EUA.

Japão e Alemanha eram os maiores “contribuintes”, desde décadas atrás. Desde 2003, mais ou menos, a China alcançou a liderança nesse ranking. Montanhas de dinheiro saíram de toda parte e voaram para Wall Street, e posteriormente para o caixa de companhias norte-americanas e proprietários de imóveis, na forma de participação acionária e de hipotecas.

A entrada massiva de capitais, associada ao aumento exponencial dos lucros corporativos, em decorrência do achatamento salarial e dos ganhos de produtividades derivados da adoção de novas tecnologias de teleinformática, deram causa a uma grande onda de fusões e aquisições, os quais melhoraram ainda mais a rentabilidade dos operadores em Wall Street.

De 1990 a 2000, viu-se uma corrida irracional pela consolidação de Balanços. A compra de montadoras como Daewoo, Saab e Volvo pela Ford e GM era apenas a parte emersa de um iceberg.

A febre de fusões e aquisições se destacou em dois períodos: início do século XX, quando homens como Edison e Ford ergueram impérios corporativos; e os 20 anos que precederam 2008. Não coincidentemente, ambos os períodos levaram a cataclismas financeiros: 1929 e 2008.

Os dois períodos de consolidação trouxeram conseqüências a Wall Street, efetivamente multiplicando por um fator considerável o fluxo de capital que os bancos e outras instituições financeiras dispunham.

Os efeitos já observados no início do século foram inflados: o fluxo intenso de capital em direção à América; e o modo como eram avaliados os investimentos na “nova economia” – empresas listadas na Nasdaq.

Em 1998, a montadora líder da Alemanha, Daimler-Benz, estava embarcando para os EUA, onde adquiriu a Chrysler, terceira maios dos EUA. O preço pago, 36 bilhões, soou exorbitante, embora na época parecesse um bom preço: Wall Streeet avaliava o valor final das empresas consolidadas em 130 bilhões de dólares.

A exuberância irracional atingiu a todos. A empresa AOL – American On Line – utilizou os métodos de avaliação de mercado “místicos” de Wall Street, baseados em sua capacidade de se capitalizar em Bolsa, para adquirir a tradicionalíssima Time Warner, dando forma a um colosso de 350 bilhões de dólares de capitalização.

A AOL, geradora de apenas 30% dos lucros do grupo, possuía 55% do total das ações. As avaliações eram nada além de bolhas, prestes a explodir. E estouraram em 2008. Em 2007, a Daimler-Chrysler quebrou, obrigando a Daimler a vender a Chrysler por decepcionantes 500 milhões de dólares (ou seja, 35,5 bilhões sumiram do Balanço, sem contar os lucros não realizados).

História similar ocorreu com AOL-Time Warner. Por volta de 2007, o valor de avaliação à moda de Wall Street teve de ser revisado: aqueles 350 bilhões de dólares encolheram para irrisórios 29 bilhões, e ambas as companhias terminaram o breve casamento cambaleantes.      

A City londrina, intrinsecamente relacionada a Wall Street, não poderia evitar seguir os passos do sócio do outro lado do Atlântico. Dois exemplos concretos demonstram: a Debenhams, cadeia de lojas de varejo, e  o banco RBS, Royal Bank of Scotland.

Um grupo de investidores comprou a Debenhams em 2003. Após venderem deiversos ativos fixos, embolsaram 1 bilhão de libras e ainda venderam a mesma companhia pelo mesmo valor pelo qual a haviam adquirido. Os novos adquirentes amargaram prejuízos enormes.

Em Outubro de 2007, o RBS ganhou uma concorrência pela compra do ABN-Amro, com um lance de 70 bilhões de Euros. Seis meses depois estava claro que o RBS havia dado um passo maior que suas pernas, tendo que levantar recursos no mercado para tapar o rombo que surgiu.

Em julho de 2008, diversas subsidiárias do grupo foram nacionalizadas pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Em outubro seguinte, o governo britânico se lançou ao salvamento do RBS. Custo total para os contribuintes britânicos: 50 bilhões de libras. Certamente eles não recebem essa informação quando são convencidos de que os imigrantes são o grande problema.

Além dos fenômenos acima, dois outros fluxos de capitais foram parte da mesma dinâmica: lucros de companhias que seguem o estilo Walmart de “sugar” sociedades; e as dívidas do americano médio, para quem o dinheiro emprestado era o único meio de não desembarcar totalmente do, a cada dia mais distante, American Dream.

Antes que o Tesouro Americano reformulasse o modo de funcionamento dos mercados financeiros e de capitais em escala global, em meados dos anos 1970, os chamados derivativos eram espécies de papéis financeiros que ajudavam, por exemplo, fazendeiros a terem um preço futuro certo para sua produção, independente de eventuais variações abruptas. Foi uma inovação trazida pela Bolsa de Chicago.

No entanto, aquilo que parecia ser um inocente instrumento de proteção (hedging) a fazendeiros e outros produtores expostos a variações brutas de preços, tornou-se um papel tóxico, pondo em risco a saúde dos mercados financeiros.

O mecanismo é bem simples. Imagine uma aquisição de um ativo, por $ 1 milhão. Temendo uma desvalorização relevante no futuro, você adquire um seguro: uma opção, que lhe permite evadir do investimento caso este caia abaixo de $ 800 mil, dentro de um período acertado.

Opções funcionam como qualquer seguro. Se o desastre indesejado não ocorrer, o seguro terá sido apenas uma despesa. Mas, se o preço se desvalorizar em 40%, sua perda será de apenas 20%. Mas, o influxo incessante de recursos em direção ao Tesouro americano fez com que os jovens laureados com diplomas Ivy League, labutando nos maiores fundos de investimentos do planeta, transformassem simples seguros em novas formas de investimentos, isto é, o seguro passou a servir àquilo que o seguro protege.

Os gerentes de investimentos, em vez de comprarem opções de vendas de ações, segurando-se contra desvalorizações abruptas, os espertinhos adquiriam opções de compra, visando adquirir ainda mais. Portanto: eles compravam ações no valor de 1 milhão e, simultaneamente, gastavam mais 100 mil em opções de compra de outro milhão, a preços atuais; caso as ações de valorizassem 40%, o que lhes renderia lucros de 400 mil, eles ainda embolsariam outros 300 mil de lucros, por meio das opções, que custaram meros 100 mil. Lucro total final: 700 mil!

Esse mecanismo rendeu lucros extraordinários no período em que os preços dos ativos não paravam de subir. Inclusive, essa realidade bastante favorável terminou levando a jogadas mais ambiciosas. Por exemplo, adquirindo-se apenas opções, restando assim as velhas ações como velharias de um passado em desencanto.

Imagine que alguém adquirisse 1,1 milhão apenas em opções de compras. Imagine que elas se valorizem em 40%. O lucro total seria de inacreditáveis 4,4 milhões (11 opções X 400 mil de lucros com cada uma delas). A isso se denomina alavancagem: fazer apostas extremamente arriscadas usando recursos emprestados de terceiros.

Qualquer investidor que tenha vestígios de prudência acharia extraordinariamente arriscado realizar apostas como essas. Mas desde a virada para década de 1980 essas jogadas eram realizadas de maneira cada vez mais freqüente, e os lucros pareciam infalíveis. O resultado foi o óbvio: empresas de todos os setores da economia se lançaram de cabeça no mundo dos “produtos” financeiros.

Apesar dos nomes sofisticados, eram apenas novas maneiras de alavancagem – um eufemismo para dívidas.
A partir de então, o cenário se desenvolveu de forma a levar à bancarrota algumas das maiores corporações do planeta, além de estados federados e mesmo países, após esses papéis se revelarem ser apenas “thin air”.

O diálogo entre Paul Volcker, recém empossado no cargo de planejador de mecanismos que pusessem os grandes bancos norte-americanos de volta na coleira, em dezembro de 2009. Volcker iniciou com um pé na porte: “Gostaria que alguém me desse alguma evidência confiável de que inovações financeiras tenham resultado em crescimento econômico; só uma evidência.” Um dos banqueiros à mesa respondeu que o setor bancário do país havia aumentado sua participação no valor agregado nacional de 2% para 6,5%. Volcker respondeu com uma pergunta fatal: “Isso é reflexo de suas inovações financeiras ou apenas um reflexo do que vocês têm faturado?” Para finalizar, acrescentou: “A única inovação financeira que reconheço ao longo da minha carreira é a invenção do caixa eletrônico.”

Assombra, o fato de que, desde 2008, tais manobras exuberantemente irracionais não tenham arrefecido. 

    
Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “O Minotauro Global”