Até a Crise Financeira de 2008, cerca de 70% do fluxo total
de capitais era direcionado para tapar o déficit gêmeo criado pelo Tesouro dos
EUA.
Japão e Alemanha eram os maiores “contribuintes”, desde
décadas atrás. Desde 2003, mais ou menos, a China alcançou a liderança nesse
ranking. Montanhas de dinheiro saíram de toda parte e voaram para Wall Street, e
posteriormente para o caixa de companhias norte-americanas e proprietários de
imóveis, na forma de participação acionária e de hipotecas.
A entrada massiva de capitais, associada ao aumento
exponencial dos lucros corporativos, em decorrência do achatamento salarial e
dos ganhos de produtividades derivados da adoção de novas tecnologias de
teleinformática, deram causa a uma grande onda de fusões e aquisições, os quais
melhoraram ainda mais a rentabilidade dos operadores em Wall Street.
De 1990 a 2000, viu-se uma corrida irracional pela consolidação
de Balanços. A compra de montadoras como Daewoo, Saab e Volvo pela Ford e GM
era apenas a parte emersa de um iceberg.
A febre de fusões e aquisições se destacou em dois períodos:
início do século XX, quando homens como Edison e Ford ergueram impérios
corporativos; e os 20 anos que precederam 2008. Não coincidentemente, ambos os períodos
levaram a cataclismas financeiros: 1929 e 2008.
Os dois períodos de consolidação trouxeram conseqüências a
Wall Street, efetivamente multiplicando por um fator considerável o fluxo de capital
que os bancos e outras instituições financeiras dispunham.
Os efeitos já observados no início do século foram inflados:
o fluxo intenso de capital em direção à América; e o modo como eram avaliados
os investimentos na “nova economia” – empresas listadas na Nasdaq.
Em 1998, a montadora líder da Alemanha, Daimler-Benz, estava
embarcando para os EUA, onde adquiriu a Chrysler, terceira maios dos EUA. O
preço pago, 36 bilhões, soou exorbitante, embora na época parecesse um bom
preço: Wall Streeet avaliava o valor final das empresas consolidadas em 130
bilhões de dólares.
A exuberância irracional atingiu a todos. A empresa AOL –
American On Line – utilizou os métodos de avaliação de mercado “místicos” de
Wall Street, baseados em sua capacidade de se capitalizar em Bolsa, para
adquirir a tradicionalíssima Time Warner, dando forma a um colosso de 350
bilhões de dólares de capitalização.
A AOL, geradora de apenas 30% dos lucros do grupo, possuía
55% do total das ações. As avaliações eram nada além de bolhas, prestes a
explodir. E estouraram em 2008. Em 2007, a Daimler-Chrysler quebrou, obrigando
a Daimler a vender a Chrysler por decepcionantes 500 milhões de dólares (ou
seja, 35,5 bilhões sumiram do Balanço, sem contar os lucros não realizados).
História similar ocorreu com AOL-Time Warner. Por volta de
2007, o valor de avaliação à moda de Wall Street teve de ser revisado: aqueles
350 bilhões de dólares encolheram para irrisórios 29 bilhões, e ambas as
companhias terminaram o breve casamento cambaleantes.
A City londrina, intrinsecamente relacionada a Wall Street,
não poderia evitar seguir os passos do sócio do outro lado do Atlântico. Dois
exemplos concretos demonstram: a Debenhams, cadeia de lojas de varejo, e o banco RBS, Royal Bank of Scotland.
Um grupo de investidores comprou a Debenhams em 2003. Após
venderem deiversos ativos fixos, embolsaram 1 bilhão de libras e ainda venderam
a mesma companhia pelo mesmo valor pelo qual a haviam adquirido. Os novos
adquirentes amargaram prejuízos enormes.
Em Outubro de 2007, o RBS ganhou uma concorrência pela
compra do ABN-Amro, com um lance de 70 bilhões de Euros. Seis meses depois
estava claro que o RBS havia dado um passo maior que suas pernas, tendo que levantar
recursos no mercado para tapar o rombo que surgiu.
Em julho de 2008, diversas subsidiárias do grupo foram
nacionalizadas pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Em outubro
seguinte, o governo britânico se lançou ao salvamento do RBS. Custo total para
os contribuintes britânicos: 50 bilhões de libras. Certamente eles não recebem
essa informação quando são convencidos de que os imigrantes são o grande
problema.
Além dos fenômenos acima, dois outros fluxos de capitais
foram parte da mesma dinâmica: lucros de companhias que seguem o estilo Walmart
de “sugar” sociedades; e as dívidas do americano médio, para quem o dinheiro
emprestado era o único meio de não desembarcar totalmente do, a cada dia mais
distante, American Dream.
Antes que o Tesouro Americano reformulasse o modo de
funcionamento dos mercados financeiros e de capitais em escala global, em meados
dos anos 1970, os chamados derivativos eram espécies de papéis financeiros que
ajudavam, por exemplo, fazendeiros a terem um preço futuro certo para sua
produção, independente de eventuais variações abruptas. Foi uma inovação
trazida pela Bolsa de Chicago.
No entanto, aquilo que parecia ser um inocente instrumento
de proteção (hedging) a fazendeiros e outros produtores expostos a variações
brutas de preços, tornou-se um papel tóxico, pondo em risco a saúde dos mercados
financeiros.
O mecanismo é bem simples. Imagine uma aquisição de um
ativo, por $ 1 milhão. Temendo uma desvalorização relevante no futuro, você
adquire um seguro: uma opção, que lhe permite evadir do investimento caso este
caia abaixo de $ 800 mil, dentro de um período acertado.
Opções funcionam como qualquer seguro. Se o desastre
indesejado não ocorrer, o seguro terá sido apenas uma despesa. Mas, se o preço
se desvalorizar em 40%, sua perda será de apenas 20%. Mas, o influxo incessante
de recursos em direção ao Tesouro americano fez com que os jovens laureados com
diplomas Ivy League, labutando nos maiores fundos de investimentos do planeta,
transformassem simples seguros em novas formas de investimentos, isto é, o
seguro passou a servir àquilo que o seguro protege.
Os gerentes de investimentos, em vez de comprarem opções de
vendas de ações, segurando-se contra desvalorizações abruptas, os espertinhos
adquiriam opções de compra, visando adquirir ainda mais. Portanto: eles compravam ações no valor de 1 milhão e, simultaneamente, gastavam mais 100 mil
em opções de compra de outro milhão, a preços atuais; caso as ações de
valorizassem 40%, o que lhes renderia lucros de 400 mil, eles ainda embolsariam
outros 300 mil de lucros, por meio das opções, que custaram meros 100 mil.
Lucro total final: 700 mil!
Esse mecanismo rendeu lucros extraordinários no período em
que os preços dos ativos não paravam de subir. Inclusive, essa realidade
bastante favorável terminou levando a jogadas mais ambiciosas. Por exemplo,
adquirindo-se apenas opções, restando assim as velhas ações como velharias de
um passado em desencanto.
Imagine que alguém adquirisse 1,1 milhão apenas em opções de
compras. Imagine que elas se valorizem em 40%. O lucro total seria de
inacreditáveis 4,4 milhões (11 opções X 400 mil de lucros com cada uma delas).
A isso se denomina alavancagem: fazer apostas extremamente arriscadas usando
recursos emprestados de terceiros.
Qualquer investidor que tenha vestígios de prudência acharia
extraordinariamente arriscado realizar apostas como essas. Mas desde a virada
para década de 1980 essas jogadas eram realizadas de maneira cada vez mais freqüente,
e os lucros pareciam infalíveis. O resultado foi o óbvio: empresas de todos os
setores da economia se lançaram de cabeça no mundo dos “produtos” financeiros.
Apesar dos nomes sofisticados, eram apenas novas maneiras de
alavancagem – um eufemismo para dívidas.
A partir de então, o cenário se desenvolveu de forma a levar
à bancarrota algumas das maiores corporações do planeta, além de estados
federados e mesmo países, após esses papéis se revelarem ser apenas “thin air”.
O diálogo entre Paul Volcker, recém empossado no cargo de planejador
de mecanismos que pusessem os grandes bancos norte-americanos de volta na
coleira, em dezembro de 2009. Volcker iniciou com um pé na porte: “Gostaria que
alguém me desse alguma evidência confiável de que inovações financeiras tenham
resultado em crescimento econômico; só uma evidência.” Um dos banqueiros à mesa
respondeu que o setor bancário do país havia aumentado sua participação no
valor agregado nacional de 2% para 6,5%. Volcker respondeu com uma pergunta
fatal: “Isso é reflexo de suas inovações financeiras ou apenas um reflexo do
que vocês têm faturado?” Para finalizar, acrescentou: “A única inovação
financeira que reconheço ao longo da minha carreira é a invenção do caixa
eletrônico.”
Assombra, o fato de que, desde 2008, tais manobras exuberantemente
irracionais não tenham arrefecido.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “O Minotauro Global”