Mais de cem anos após seu
nascimento, em 1909, a famosa falsa baiana ainda é lembrada, comentada,
documentada, pintada... Seu estilo e sua personalidade abriram caminho para Elvis
Presley, Michael Jackson, Madonna e, claro, Lady Gaga. Ela inventou o salto
plataforma e criou o estilo das "it girls" e "drag queens".
Não falava de política, mas foi
usada como instrumento de propaganda pelo Estado Novo e pela Política da Boa
Vizinhança de Roosevelt.
Passou seus últimos dias
dependente de anfetamina e soníferos. Trabalhava e se drogava todos os dias.
Foi também vítima da indústria farmacêutica e de cirurgias plásticas de técnica
ainda rústica.
A fantasia que criou tornou-se
prisão. Sua baiana estilizada, sacana, brejeira era usada como motivo para as
mesmas piadas, repetidas ad nauseam em filmes de Hollywood, um após o outro.
Mesmo sem alterações, e por décadas, o mito resistiu até o fim.
Portuguesa de nascença, foi batizada
Maria do Carmo Miranda da Cunha. Chegou ao Rio de Janeiro co um ano de vida, em
1910. Sua mãe veio atrás do marido, que deixou Portugal em busca de uma vida
melhor. Seu pai era barbeiro. Sua mãe lavava roupas para fora.
Em 1925, o casarão da família, no
centro do Rio, dá lugar a um restaurante que serve a trabalhadores da região.
Sonhando em seguir carreira como
cantora, canta “Chora violão” para o compositor Josué de Barros, não por acaso
autor da música que Carmem lhe cantava. Josué torna-se tutor de Carmem. A
parceira rende frutos.
Seu tutor entra em contato com
Pixinguinha, funcionário da gravadora RCA Victor, que consegue intermediar um
contrato para Carmem. Ainda não completara 21 anos.
Em 1930 é lançado seu primeiro
disco para o Carnaval. Dentre os sucessos, “Taí”, que virou hit.
No fim daquele ano, havia gravado
28 músicas e seu contrato era tão polpudo quanto o de Francisco Alves, o rei da
voz. Carmem é um sucesso estrondoso.
Em 1931, estréia em Buenos Aires.
Em 1934, encomenda ao sapateiro um modelo inspirado nas botas ortopédicas:
criou o salto plataforma – providencial em razão de sua pouca estatura e
evitava que se desequilibrasse.
Continua a inventar um visual
novo e que a identificasse. Amarra uma burca em volta da cabeça. Com esse visual,
estréia no Teatro Broadway, em Buenos Aires.
Jovem, linda, milionária, é
assediada sem descanso.
Seu palco é o do Cassino da Urca.
Palco mais estrelado da cidade, elegante, freqüentado pela elite, cantores,
atores e esportistas de todo o mundo. Fecha um contrato de valor bem elevado,
que se soma às vendas de discos, shows e publicidade.
Sua temporada no Cassino da Urca
foi um sucesso estrondoso, tendo ainda recebido diversos convites para se
apresentar nos EUA.
Carmem tem uma irmã chamada
Aurora, igualmente cantora e quase tão famosa. As duas juntam os recursos que
já haviam poupado e compram uma mansão na Urca, onde passa a residir toda a
família. Também havia espaço para convidados muito especiais, como Dorival
Caymmi, recém chegado de Salvador.
Caymmi compôs canções para o
filme “Banana da Terra” no lugar de Ary Barroso, que havia exigido um valor
muito alto pelo trabalho. Caymmi já fazia sucesso com “O que é que a baiana
tem?”. Caymmi também foi quem elaborou os trejeitos da “falsa baiana”, como os
gestos de mãos e as piscadas.
A partir dessa produção, Carmem
adota o figurino completo da baiana encenada. Passa a se apresentar coberta por
frutas de plástico, miçangas, babados, lantejoulas, equilibrada sobre um salto
plataforma. Resultado: os estrangeiros enlouquecem com aquela personagem exótica
e única.
Um empresário de teatro
norte-americano chamado Lee Schubert assiste boquiaberto a uma apresentação de
Carmem no Cassino da Urca. Seu faro infalível aponta na direção da jovem
cantora.
A notícia de que Carmem estava de
mudança para os EUA tomou proporções de crise. A cidade, aos prantos, temia que
ela não mais retornasse. O porto é invadido enquanto ela embarca no navio
Uruguay.
Percebendo que as
norte-americanas são, em geral, loiras, Carmem pinta seus cabelos castanhos de
preto: já está tentando se diferenciar. É recebida em Manhattan por uma
multidão de fotógrafos. Na entrevista que concedeu logo depois, ao ser
perguntada quais palavras consegue pronunciar em inglês, ela responde: “I say Money,
Money, Money!”.
Seu bom humor lhe rende papéis em
diversas comédias.
Sua estréia ocorre na Broadway, com
a produção “Streets of Paris”. Musical terrível, traz uma personagem linda, que
chama muito a atenção. Os produtores reelaboram o cartaz do espetáculo, de
maneira que o nome Carmem Miranda aparece logo no topo. Nasce então o apelido
pelo qual Carmem será conhecida pelos yankees: The Brazilian Bombshell (A
granada brasileira). Ela era acompanhada pelo seu grupo: Bando da Lua.
Em decorrência do sucesso, a 20th
Century Fox a contrata (e ao Bando) para estrelar em Hollywood. Como ainda não
pode se ausentar de NY, a produção de “Serenata Tropical” é transferida desde
Los Angeles. Em pouquíssimo tempo a Pequena Notável já fatura muito “Money, Money,
Money”.
Ao lado da produção, ela consegue
tem fôlego para realizar duas apresentações noturnas em um restaurante sofisticado
de Manhattan. Mas é impossível esconder o cansaço que essa rotina exaustiva
proporciona.
Seu figurino e seus balangandãs
viram peças de roupas exibidas em lojas de grife por todo o país. Vira
garota-propaganda da Ford, da Kolynos, de marcas de cerveja etc. Entra em
estúdio e grava: “Mamãe eu quero”, “Bambu bambu”, “O que é que a baiana tem?”, “South
American Way”, “Marchinha do grande galo” e “Touradas de Madri”.
O estresse por que passa leva a
um desmaio durante as gravações de Serenata Tropical. Essa experiência a leva a
conhecer uma droga “motivadora”: a benzedrina, muito utilizada por artistas nos
EUA. Surpreendentemente, a careta Carmem se torna fanática pela substância
química.
Sentindo-se segura e poderosa, em
breve todo o Bando usava as bolinhas largamente. Cantam e dançam sem parar. O
sucesso não para sua escalada.
Como a droga ativa o organismo,
depois do show ela deve ter seus efeitos mitigados. Para tanto, passa a usar
soníferos: Nembutal e Seconal.
Em junho de 1940, Carmem resolve
tirar umas férias e descansar. Lugar escolhido: Brasil, Rio de Janeiro. Sua
chegada é aguardada por todos com ansiedade. A esperam no Porto políticos, amigos,
jornalistas etc. A polícia cerca sua casa, por causa da multidão que ali se
reunia.
É convidada para realizar uma
apresentação beneficente no saudoso Cassino da Urca. Deve-se dar uma explicação
sobre o ambiente que Carmem encontrou nesse breve retorno: eram tempos de
Getúlio, o governo grassava notavelmente com o fascismo e parecia empurrar os
EUA, pouco a pouco, para o papel de inimigo do país. Quanto à platéia:
principalmente políticos ligados ao Estado Novo.
Carmem surge no palco e
cumprimenta o público com um quase ofensivo “Good night, people!”. Primeira
música do repertório que ela escolheu: “South American Way”. Canção seguinte: “Dizem
que eu voltei americanizada”.
A reação do público foi um misto
de raiva e indiferença. Carmem desce do palco aos prantos.
Retorno à América com a mãe e dois
irmãos.
Inicia as filmagens de seu
segundo filme “Uma noite no Rio”. Ganha um apelido, pelo produtor do filme
Irving Cummings, de “one take girl”, pois jamais errava em frente às câmeras. Ah!
E sem falar inglês fluentemente. Ela costumava apenas decorar o som das
palavras.
Ganha o Oscar de 1941 e assina
seu nome da Calçada da Fama.
Seu empresário, Schubert, fecha
contrato para uma série de apresentações em Manhattan – ela atuava em “Sons
o`fun”. São dois shows por noite, por três meses. Depois, ainda estrearia na
Broadway. Nesse período, ela passou a consumir incessantemente anfetaminas e
soníferos. Conseguiu agüentar aquele ritmo alucinado, ao contrário do Bando da
Lua: dois membros saem do grupo.
Ao fim daquela carga insana de
trabalho, Carmem se desliga do empresário Schubert e assina contrato de
exclusividade com a Fox: realizaria apenas dois filmes por ano. No entanto,
àquela altura, Carmem já é dependente dos remédios que usava para subir no
palco.
Aliás, ser dependente de drogas e
curtir a vida era uma espécie de lema oculto aos não iniciados na Hollywood dos
anos 1940.
E é à Costa Oeste que ela retorna
para filmar “Minha secretária brasileira”. Surge uma Carmem sem salto plataforma,
balangandãs e turbante. Muda-se para a Califórnia, compra uma mansão em Beverly
Hills.
Uma pessoa onipresente até então,
mas mantido em uma espécie de segredo da imprensa é Aloysio de Oliveira. Alguns
diziam ser namorado de Carmem. Entretanto essa informação nunca era confirmada,
talvez como estratégia de mercado da moça.
Seja como for, nessa época Walt Disney
contratou Aloysio como seu assessor pessoal para projetos que envolvessem a
América Latina. Aloysio abandona Carmem, após cinco anos nos EUA.
Por outro lado, no Brasil, Carmem
vira alvo predileto da imprensa, onde passa a ser ridicularizada diariamente.
Falam muito mal dos seus filmes e, pior, ela lia tudo o que saía a seu
respeito.
Em 1943, Carmem resolve se
submeter a uma cirurgia plástica no nariz. Tinha 34 anos e a técnica utilizada
na época, para dizer o mínimo, era rudimentar e muito arriscada. Como a
cicatrização é lenta, teve de filmar a produção seguinte com uma prótese de
cerâmica. Ao refazer a cirurgia, contrai complicações no fígado, que evolui
para uma infecção generalizada. Passa semanas à beira da morte.
Quase milagrosamente se recupera
e volta para casa. Atua, posteriormente, na produção “Quatro garotas num Jeep”.
Creia, ela fez uma terceira cirurgia no nariz...
Após todos esses anos realizando
trabalhos bastante semelhantes entre si, Carmem se tornou datada, passando a
enfrentar dificuldades para ser encaixada em novas produções. Passa a sofrer de arritmia cardíaca. Os
médicos a aconselham descanso, que ela troca por anfetaminas e soníferos.
Torna-se fumante – o cigarro era vendido como tônico pulmonar, à época...
Em 1944, nenhuma mulher ganhou
mais dinheiro que Carmem, nos EUA. Os 200 mil dólares amealhados somente a
punham atrás de 36 homens.
A partir de 1945, com o fim da II
Guerra Mundial, sua casa se torna ponto de referência para brasileiros
desejosos de iniciar carreira na América. Os presentes são um regalo para a
estrela: feijão, farofa, lingüiça, cachaça...
Um dos brasileiros, assíduo
frequentador da residência, foi Vinicius de Moraes. Surpreende-se por saber que
Carmem não bebe álcool. Deve ter sentido falta de companhia de copo, segurando seu
inseparável uísque.
Passado pouco tempo, a Fox só
chama Carmem para papéis em filmes B. Decepcionada, rompe o contrato e se torna
a primeira atriz independente de Hollywood.
Quanto a Aurora, passou a ser aspiração
de vida de Carmem ser como sua irmã. Apesar de ser uma estrela, manteve
casamento e filhos sempre por perto. A vida pessoal de Carmem continuava sendo
um fracasso.
Carmem faz algumas mudanças em
sua vida, nesse período: casa-se com Sebastian e demite Schubert, contratando
outro produtor, Frank, em seu lugar.
Vai para Nova York e inicia
temporada no cinema Roxy. O desafio que se propôs era exaustivo ao extremo:
faria quatro apresentações diárias a cada duas horas, nos intervalos entre os
filmes. A primeira sessão era ao meio dia.
Para cumprir essa agenda
tresloucada, Carmem passa a consumir benzedrina – em larga quantidade - durante
o dia. Ainda assim o desgaste é intenso: desmaia em cena.
Sebastian viaja a NY, demite
Frank e leva Carmem de volta à costa Oeste. Para completar, Sebastian passa a
assumir a agenda da esposa. Decide que agora eles bancarão suas próprias
produções: certamente ele não tinha idéia do que se propunha.
Este marido também foi
responsável pelo futuro alcoolismo de Carmem. Ele a ensina a preparar um ótimo
Alexander. Após ganhar alguns quilos com essa bomba calórica na forma de drink,
passa ao uísque.
Inicial com uísque com soda,
passa ao uísque com gelo, e finalmente chega ao cowboy. Ao lado dos remédios,
Carmem pôs o álcool.
Arrependida pelo poder que
concedeu a Sebastian, Carmem retorna à MGM. Esta lhe oferece papel ao lado de
Elizabeth Taylor em “A date with Judy” – ou “Meu príncipe encantado”. Tem 39
anos, mas anuncia 34.
Aproveita sua primeira turnê na
Europa para tentar dar um tempo do álcool e das drogas. Em alto-mar, percebe que
será quase impossível. Não consegue dormir no navio.
Quando chega a Londres, descobre
outra droga para dormir, mais poderosa do que as que usava até então: Demerol, sonífero
à base de morfina, e injetável; narcótico e analgésico a um só tempo.
Enfim, uma notícia adorável e aguardadíssima
pela cantora: estava grávida. Cancelou toda sua agenda para se dedicar
integralmente ao sonho da maternidade... Até que um aborto espontâneo levou
consigo seu sonho. Não apenas isso: os anos de excessos levaram embora a
possibilidade de engravidar. A benzedrina atua intensamente sobre o útero.
Ela deseja se separar de
Sebastian, mas a moral religiosa a impede – ela é católica fervorosa. Seguem
casados, mas separados de fato.
Após dois anos sem atuar, Carmem
inicia uma série de apresentações do Ciro`s, casa de shows elegante em Beverly
Hills. Ela bebe sem parar. Sebastian a trai com outras mulheres igualmente sem
parar.
Carmem realiza sua última
produção cinematográfica: Morrendo de Medo – ou Scared Stiff. Seu pior filme
também.
Apesar dos aconselhamentos para
que privilegie o repouso, parte em outra turnê européia. As doses de Seconal e
benzedrina aumentam bastante.
Em finais de 1953, Carmem não
consegue segurar nada nas mãos: seus tremores são intensos. Passa uma semana
internada num hospital em NY.
Ao deixar o hospital, seu qquadro
é de tremores intensos, crises de choro, crise de pânico, alcoolismo e vício em
diversos tóxicos. Não consegue mais “ficar limpa”.
Para combater a depressão em que
se achava, os médicos aconselham o eletrochoque, que se mostra inútil. O quadro
seguinte é acompanhado de lesões na memória: esquece até letras de músicas que
sempre a acompanharam. Em casa, esquece rostos conhecidos há muito.
Quinze dias após, é enfiada num
avião de volta para o Brasil, após uma ausência de quatorze anos. Não consegue
sequer ficar de pé.
Para conseguir desembarcar e
enfrentar os fãs, toma uma dose brutal de Dexedrina. Deixa o avião radiante.
Após ser analisada por médicos
brasileiros, estes ficam surpresos com o estado deplorável da estrela. É
proibida de assumir qualquer compromisso e é montada uma UTI na sua suíte, no
Copacabana Palace.
Se os brasileiros esperavam que a
alegria desembarcasse com a “baiana”, viram apenas um corpo em frangalhos.
Algumas semanas de repouso a
possibilitaram receber, pouco a pouco, imprensa e amigos. Ainda tinha
dificuldades de reconhecer alguns desses.
Passa a freqüentar alguns shows
como convidada, quando sobre ao palco, recebe aplausos, dá uma palhinha e
agradece a demonstração de carinho.
Durante o Carnaval, ciente da
necessidade de repouso, escapa para a Região Serrana, em retiro. Mas o amor
pelo Carnaval a faz cometer um pequena loucura: foge do hotel, arranja uma
garrafa de uísque e parte para o Carnaval!
Quando do seu retorno aos EUA e a
Dave Sebastian, o avião sofre pane e o vôo é cancelado. Retorna à sua casa na
Urca, após longos anos. Por três dias, relembra os anos no Cassino.
Mas a responsabilidade a chama e
voa de volta aos EUA. Sebastian está sem dinheiro e Carmem retorna aos palcos,
contrariando as recomendações médicas. Em uma dessa socasiões, sofre uma apagão
em palco e desaba. Mas o show tem que continuar. Sebastian passa a escalar uma
equipe médica responsável por não deixar Carmem parar. O pique induzido torna
sua vida um verdadeiro inferno, e longe da família.
Sofre outra queda, agora em casa,
na qual quebra um dedo. À depressão profunda, some-se o esquecimento, cada vez
mais comum. Realiza outra turnê, agora em Cuba: por quinze dias, três
apresentações diárias.
Sebastian continua na sua sanha
insandecida de tirar até a última gota de vida da esposa. Fecha um contrato com
uma televisão dos EUA. Seus joelhos fraquejam no meio da apresentação e teve de
ser amparada pelos colegas.
Após esse evento deprimente, em
casa, ainda sob efeito de estimulantes, recebe amigos e canta, acompanhada de
muito uísque.
Por volta das 2h30min da manhã,
despede-se dos demais e sobe para seus aposentos. Eram 5 de agosto de 1955,
Carmem tinha 46 anos. Morreu de enfarto, ainda se preparando para dormir.
Seu corpo chegou ao Brasil uma
semana depois. O cortejo foi acompanhado por mais de 500 mil pessoas.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A vida louca da MPB”
Amei
ResponderExcluirmuita droga
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