Pesquisar as postagens

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

SEXO, DROGAS E MPB: CARMEM MIRANDA


Mais de cem anos após seu nascimento, em 1909, a famosa falsa baiana ainda é lembrada, comentada, documentada, pintada... Seu estilo e sua personalidade abriram caminho para Elvis Presley, Michael Jackson, Madonna e, claro, Lady Gaga. Ela inventou o salto plataforma e criou o estilo das "it girls" e "drag queens".

Não falava de política, mas foi usada como instrumento de propaganda pelo Estado Novo e pela Política da Boa Vizinhança de Roosevelt.

Passou seus últimos dias dependente de anfetamina e soníferos. Trabalhava e se drogava todos os dias. Foi também vítima da indústria farmacêutica e de cirurgias plásticas de técnica ainda rústica.

A fantasia que criou tornou-se prisão. Sua baiana estilizada, sacana, brejeira era usada como motivo para as mesmas piadas, repetidas ad nauseam em filmes de Hollywood, um após o outro. Mesmo sem alterações, e por décadas, o mito resistiu até o fim.

Portuguesa de nascença, foi batizada Maria do Carmo Miranda da Cunha. Chegou ao Rio de Janeiro co um ano de vida, em 1910. Sua mãe veio atrás do marido, que deixou Portugal em busca de uma vida melhor. Seu pai era barbeiro. Sua mãe lavava roupas para fora.

Em 1925, o casarão da família, no centro do Rio, dá lugar a um restaurante que serve a trabalhadores da região.

Sonhando em seguir carreira como cantora, canta “Chora violão” para o compositor Josué de Barros, não por acaso autor da música que Carmem lhe cantava. Josué torna-se tutor de Carmem. A parceira rende frutos.

Seu tutor entra em contato com Pixinguinha, funcionário da gravadora RCA Victor, que consegue intermediar um contrato para Carmem. Ainda não completara 21 anos.

Em 1930 é lançado seu primeiro disco para o Carnaval. Dentre os sucessos, “Taí”, que virou hit.

No fim daquele ano, havia gravado 28 músicas e seu contrato era tão polpudo quanto o de Francisco Alves, o rei da voz. Carmem é um sucesso estrondoso.

Em 1931, estréia em Buenos Aires. Em 1934, encomenda ao sapateiro um modelo inspirado nas botas ortopédicas: criou o salto plataforma – providencial em razão de sua pouca estatura e evitava que se desequilibrasse.

Continua a inventar um visual novo e que a identificasse. Amarra uma burca em volta da cabeça. Com esse visual, estréia no Teatro Broadway, em Buenos Aires.

Jovem, linda, milionária, é assediada sem descanso.

Seu palco é o do Cassino da Urca. Palco mais estrelado da cidade, elegante, freqüentado pela elite, cantores, atores e esportistas de todo o mundo. Fecha um contrato de valor bem elevado, que se soma às vendas de discos, shows e publicidade.

Sua temporada no Cassino da Urca foi um sucesso estrondoso, tendo ainda recebido diversos convites para se apresentar nos EUA.

Carmem tem uma irmã chamada Aurora, igualmente cantora e quase tão famosa. As duas juntam os recursos que já haviam poupado e compram uma mansão na Urca, onde passa a residir toda a família. Também havia espaço para convidados muito especiais, como Dorival Caymmi, recém chegado de Salvador.

Caymmi compôs canções para o filme “Banana da Terra” no lugar de Ary Barroso, que havia exigido um valor muito alto pelo trabalho. Caymmi já fazia sucesso com “O que é que a baiana tem?”. Caymmi também foi quem elaborou os trejeitos da “falsa baiana”, como os gestos de mãos e as piscadas.

A partir dessa produção, Carmem adota o figurino completo da baiana encenada. Passa a se apresentar coberta por frutas de plástico, miçangas, babados, lantejoulas, equilibrada sobre um salto plataforma. Resultado: os estrangeiros enlouquecem com aquela personagem exótica e única.

Um empresário de teatro norte-americano chamado Lee Schubert assiste boquiaberto a uma apresentação de Carmem no Cassino da Urca. Seu faro infalível aponta na direção da jovem cantora.

A notícia de que Carmem estava de mudança para os EUA tomou proporções de crise. A cidade, aos prantos, temia que ela não mais retornasse. O porto é invadido enquanto ela embarca no navio Uruguay.

Percebendo que as norte-americanas são, em geral, loiras, Carmem pinta seus cabelos castanhos de preto: já está tentando se diferenciar. É recebida em Manhattan por uma multidão de fotógrafos. Na entrevista que concedeu logo depois, ao ser perguntada quais palavras consegue pronunciar em inglês, ela responde: “I say Money, Money, Money!”.

Seu bom humor lhe rende papéis em diversas comédias.

Sua estréia ocorre na Broadway, com a produção “Streets of Paris”. Musical terrível, traz uma personagem linda, que chama muito a atenção. Os produtores reelaboram o cartaz do espetáculo, de maneira que o nome Carmem Miranda aparece logo no topo. Nasce então o apelido pelo qual Carmem será conhecida pelos yankees: The Brazilian Bombshell (A granada brasileira). Ela era acompanhada pelo seu grupo: Bando da Lua.

Em decorrência do sucesso, a 20th Century Fox a contrata (e ao Bando) para estrelar em Hollywood. Como ainda não pode se ausentar de NY, a produção de “Serenata Tropical” é transferida desde Los Angeles. Em pouquíssimo tempo a Pequena Notável já fatura muito “Money, Money, Money”.

Ao lado da produção, ela consegue tem fôlego para realizar duas apresentações noturnas em um restaurante sofisticado de Manhattan. Mas é impossível esconder o cansaço que essa rotina exaustiva proporciona.

Seu figurino e seus balangandãs viram peças de roupas exibidas em lojas de grife por todo o país. Vira garota-propaganda da Ford, da Kolynos, de marcas de cerveja etc. Entra em estúdio e grava: “Mamãe eu quero”, “Bambu bambu”, “O que é que a baiana tem?”, “South American Way”, “Marchinha do grande galo” e “Touradas de Madri”.

O estresse por que passa leva a um desmaio durante as gravações de Serenata Tropical. Essa experiência a leva a conhecer uma droga “motivadora”: a benzedrina, muito utilizada por artistas nos EUA. Surpreendentemente, a careta Carmem se torna fanática pela substância química.

Sentindo-se segura e poderosa, em breve todo o Bando usava as bolinhas largamente. Cantam e dançam sem parar. O sucesso não para sua escalada.

Como a droga ativa o organismo, depois do show ela deve ter seus efeitos mitigados. Para tanto, passa a usar soníferos: Nembutal e Seconal.

Em junho de 1940, Carmem resolve tirar umas férias e descansar. Lugar escolhido: Brasil, Rio de Janeiro. Sua chegada é aguardada por todos com ansiedade. A esperam no Porto políticos, amigos, jornalistas etc. A polícia cerca sua casa, por causa da multidão que ali se reunia.

É convidada para realizar uma apresentação beneficente no saudoso Cassino da Urca. Deve-se dar uma explicação sobre o ambiente que Carmem encontrou nesse breve retorno: eram tempos de Getúlio, o governo grassava notavelmente com o fascismo e parecia empurrar os EUA, pouco a pouco, para o papel de inimigo do país. Quanto à platéia: principalmente políticos ligados ao Estado Novo.  

Carmem surge no palco e cumprimenta o público com um quase ofensivo “Good night, people!”. Primeira música do repertório que ela escolheu: “South American Way”. Canção seguinte: “Dizem que eu voltei americanizada”.

A reação do público foi um misto de raiva e indiferença. Carmem desce do palco aos prantos.
Retorno à América com a mãe e dois irmãos.  

Inicia as filmagens de seu segundo filme “Uma noite no Rio”. Ganha um apelido, pelo produtor do filme Irving Cummings, de “one take girl”, pois jamais errava em frente às câmeras. Ah! E sem falar inglês fluentemente. Ela costumava apenas decorar o som das palavras.

Ganha o Oscar de 1941 e assina seu nome da Calçada da Fama.

Seu empresário, Schubert, fecha contrato para uma série de apresentações em Manhattan – ela atuava em “Sons o`fun”. São dois shows por noite, por três meses. Depois, ainda estrearia na Broadway. Nesse período, ela passou a consumir incessantemente anfetaminas e soníferos. Conseguiu agüentar aquele ritmo alucinado, ao contrário do Bando da Lua: dois membros saem do grupo.

Ao fim daquela carga insana de trabalho, Carmem se desliga do empresário Schubert e assina contrato de exclusividade com a Fox: realizaria apenas dois filmes por ano. No entanto, àquela altura, Carmem já é dependente dos remédios que usava para subir no palco.

Aliás, ser dependente de drogas e curtir a vida era uma espécie de lema oculto aos não iniciados na Hollywood dos anos 1940.

E é à Costa Oeste que ela retorna para filmar “Minha secretária brasileira”. Surge uma Carmem sem salto plataforma, balangandãs e turbante. Muda-se para a Califórnia, compra uma mansão em Beverly Hills.
Uma pessoa onipresente até então, mas mantido em uma espécie de segredo da imprensa é Aloysio de Oliveira. Alguns diziam ser namorado de Carmem. Entretanto essa informação nunca era confirmada, talvez como estratégia de mercado da moça.

Seja como for, nessa época Walt Disney contratou Aloysio como seu assessor pessoal para projetos que envolvessem a América Latina. Aloysio abandona Carmem, após cinco anos nos EUA.

Por outro lado, no Brasil, Carmem vira alvo predileto da imprensa, onde passa a ser ridicularizada diariamente. Falam muito mal dos seus filmes e, pior, ela lia tudo o que saía a seu respeito.

Em 1943, Carmem resolve se submeter a uma cirurgia plástica no nariz. Tinha 34 anos e a técnica utilizada na época, para dizer o mínimo, era rudimentar e muito arriscada. Como a cicatrização é lenta, teve de filmar a produção seguinte com uma prótese de cerâmica. Ao refazer a cirurgia, contrai complicações no fígado, que evolui para uma infecção generalizada. Passa semanas à beira da morte.

Quase milagrosamente se recupera e volta para casa. Atua, posteriormente, na produção “Quatro garotas num Jeep”. Creia, ela fez uma terceira cirurgia no nariz...

Após todos esses anos realizando trabalhos bastante semelhantes entre si, Carmem se tornou datada, passando a enfrentar dificuldades para ser encaixada em novas produções.  Passa a sofrer de arritmia cardíaca. Os médicos a aconselham descanso, que ela troca por anfetaminas e soníferos. Torna-se fumante – o cigarro era vendido como tônico pulmonar, à época...

Em 1944, nenhuma mulher ganhou mais dinheiro que Carmem, nos EUA. Os 200 mil dólares amealhados somente a punham atrás de 36 homens.

A partir de 1945, com o fim da II Guerra Mundial, sua casa se torna ponto de referência para brasileiros desejosos de iniciar carreira na América. Os presentes são um regalo para a estrela: feijão, farofa, lingüiça, cachaça...

Um dos brasileiros, assíduo frequentador da residência, foi Vinicius de Moraes. Surpreende-se por saber que Carmem não bebe álcool. Deve ter sentido falta de companhia de copo, segurando seu inseparável uísque.

Passado pouco tempo, a Fox só chama Carmem para papéis em filmes B. Decepcionada, rompe o contrato e se torna a primeira atriz independente de Hollywood.

Quanto a Aurora, passou a ser aspiração de vida de Carmem ser como sua irmã. Apesar de ser uma estrela, manteve casamento e filhos sempre por perto. A vida pessoal de Carmem continuava sendo um fracasso.

Carmem faz algumas mudanças em sua vida, nesse período: casa-se com Sebastian e demite Schubert, contratando outro produtor, Frank, em seu lugar.

Vai para Nova York e inicia temporada no cinema Roxy. O desafio que se propôs era exaustivo ao extremo: faria quatro apresentações diárias a cada duas horas, nos intervalos entre os filmes. A primeira sessão era ao meio dia.

Para cumprir essa agenda tresloucada, Carmem passa a consumir benzedrina – em larga quantidade - durante o dia. Ainda assim o desgaste é intenso: desmaia em cena.

Sebastian viaja a NY, demite Frank e leva Carmem de volta à costa Oeste. Para completar, Sebastian passa a assumir a agenda da esposa. Decide que agora eles bancarão suas próprias produções: certamente ele não tinha idéia do que se propunha.

Este marido também foi responsável pelo futuro alcoolismo de Carmem. Ele a ensina a preparar um ótimo Alexander. Após ganhar alguns quilos com essa bomba calórica na forma de drink, passa ao uísque.
Inicial com uísque com soda, passa ao uísque com gelo, e finalmente chega ao cowboy. Ao lado dos remédios, Carmem pôs o álcool.

Arrependida pelo poder que concedeu a Sebastian, Carmem retorna à MGM. Esta lhe oferece papel ao lado de Elizabeth Taylor em “A date with Judy” – ou “Meu príncipe encantado”. Tem 39 anos, mas anuncia 34.

Aproveita sua primeira turnê na Europa para tentar dar um tempo do álcool e das drogas. Em alto-mar, percebe que será quase impossível. Não consegue dormir no navio.

Quando chega a Londres, descobre outra droga para dormir, mais poderosa do que as que usava até então: Demerol, sonífero à base de morfina, e injetável; narcótico e analgésico a um só tempo.

Enfim, uma notícia adorável e aguardadíssima pela cantora: estava grávida. Cancelou toda sua agenda para se dedicar integralmente ao sonho da maternidade... Até que um aborto espontâneo levou consigo seu sonho. Não apenas isso: os anos de excessos levaram embora a possibilidade de engravidar. A benzedrina atua intensamente sobre o útero.

Ela deseja se separar de Sebastian, mas a moral religiosa a impede – ela é católica fervorosa. Seguem casados, mas separados de fato.

Após dois anos sem atuar, Carmem inicia uma série de apresentações do Ciro`s, casa de shows elegante em Beverly Hills. Ela bebe sem parar. Sebastian a trai com outras mulheres igualmente sem parar.   

Carmem realiza sua última produção cinematográfica: Morrendo de Medo – ou Scared Stiff. Seu pior filme também.

Apesar dos aconselhamentos para que privilegie o repouso, parte em outra turnê européia. As doses de Seconal e benzedrina aumentam bastante.

Em finais de 1953, Carmem não consegue segurar nada nas mãos: seus tremores são intensos. Passa uma semana internada num hospital em NY.

Ao deixar o hospital, seu qquadro é de tremores intensos, crises de choro, crise de pânico, alcoolismo e vício em diversos tóxicos. Não consegue mais “ficar limpa”.

Para combater a depressão em que se achava, os médicos aconselham o eletrochoque, que se mostra inútil. O quadro seguinte é acompanhado de lesões na memória: esquece até letras de músicas que sempre a acompanharam. Em casa, esquece rostos conhecidos há muito.

Quinze dias após, é enfiada num avião de volta para o Brasil, após uma ausência de quatorze anos. Não consegue sequer ficar de pé.

Para conseguir desembarcar e enfrentar os fãs, toma uma dose brutal de Dexedrina. Deixa o avião radiante.
Após ser analisada por médicos brasileiros, estes ficam surpresos com o estado deplorável da estrela. É proibida de assumir qualquer compromisso e é montada uma UTI na sua suíte, no Copacabana Palace.

Se os brasileiros esperavam que a alegria desembarcasse com a “baiana”, viram apenas um corpo em frangalhos.

Algumas semanas de repouso a possibilitaram receber, pouco a pouco, imprensa e amigos. Ainda tinha dificuldades de reconhecer alguns desses.

Passa a freqüentar alguns shows como convidada, quando sobre ao palco, recebe aplausos, dá uma palhinha e agradece a demonstração de carinho.

Durante o Carnaval, ciente da necessidade de repouso, escapa para a Região Serrana, em retiro. Mas o amor pelo Carnaval a faz cometer um pequena loucura: foge do hotel, arranja uma garrafa de uísque e parte para o Carnaval!

Quando do seu retorno aos EUA e a Dave Sebastian, o avião sofre pane e o vôo é cancelado. Retorna à sua casa na Urca, após longos anos. Por três dias, relembra os anos no Cassino.

Mas a responsabilidade a chama e voa de volta aos EUA. Sebastian está sem dinheiro e Carmem retorna aos palcos, contrariando as recomendações médicas. Em uma dessa socasiões, sofre uma apagão em palco e desaba. Mas o show tem que continuar. Sebastian passa a escalar uma equipe médica responsável por não deixar Carmem parar. O pique induzido torna sua vida um verdadeiro inferno, e longe da família.

Sofre outra queda, agora em casa, na qual quebra um dedo. À depressão profunda, some-se o esquecimento, cada vez mais comum. Realiza outra turnê, agora em Cuba: por quinze dias, três apresentações diárias.

Sebastian continua na sua sanha insandecida de tirar até a última gota de vida da esposa. Fecha um contrato com uma televisão dos EUA. Seus joelhos fraquejam no meio da apresentação e teve de ser amparada pelos colegas.

Após esse evento deprimente, em casa, ainda sob efeito de estimulantes, recebe amigos e canta, acompanhada de muito uísque.

Por volta das 2h30min da manhã, despede-se dos demais e sobe para seus aposentos. Eram 5 de agosto de 1955, Carmem tinha 46 anos. Morreu de enfarto, ainda se preparando para dormir.

Seu corpo chegou ao Brasil uma semana depois. O cortejo foi acompanhado por mais de 500 mil pessoas.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A vida louca da MPB”

3 comentários: