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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

SEXO, DROGAS E MPB: NOEL ROSA


O primeiro instrumento que aprende a tocar é um bandolim. Com este primeiro companheiro, toca em saraus e festas promovidos pela mãe.

Mas a visão de homens em torno de uma mesa de bar, cantando e tocando sambas, conversando e flertando as mulheres o atrai. E como o atrai.

Cria coragem e tenta o violão. Este instrumento ainda carregava uma aura de malandragem, vagabundagem, tornava maldito que o tocasse. Noel não liga para essas convenções sociais. Aos 15 anos é um exímio violonista. Agora o garoto quer a orgia.

Circula pelos bilhares, adota o copo de cerveja a tiracolo, diverte-se em serenatas. Diga-se: àquela época vender bebidas alcoólicas a menores de dezoito anos era lugar-comum.

Tudo lhe atiça a curiosidade: o tom das conversas, as gírias, as maneiras das pessoas que encontrava. Tudo viraria motivo para os seus sambas. Todos seriam retratados em suas letras.

Torna-se transgressor: bebe, cheira, fuma, o que quer que lhe fosse oferecido.

O bar Ponto de Cem Réis, esquina da Rua Souza Franco com Boulevard 28 de Setembro, coração de sua Vila Isabel, torna-se escritório do poeta. Entre cigarros e cervejas, doutores, operários, apostadores, bicheiros, bandidos, putas, traficantes se misturavam. Todos procuram um novo samba que lhe benza a alma.

Noel testemunhou muitas negociatas, daquelas típicas em locais de boemia: um branco de classe média, sem talento musical, pagava a um sambista pobre, do morro, para que este pusesse seu nome como parceiro em um sambinha. Tudo pela popularidade.

A mescla musical era produto de encontros: os antigos seresteiros, herdeiros da tradição musical do século XIX, encontravam sambistas dos morros próximos – Mangueira, Salgueiro, Macacos.Essa fusão de estilos torna-o capaz de transitar entre esses estilos com confiança.

O alimento de suas composições são: pobres, pretos, favelas, lavadeiras, mercados populares. É o autêntico “voz do morro”. Procura retratar tudo o que via, da maneira mais genuína possível. Dizia que o idioma de suas músicas não era o português, mas o português-brasileiro. Erros gramaticais são incorporados como novos padrões da língua culta. Não via erros, mas mudanças naturais em uma língua viva.

Em 1927, aos 16 anos, é reprovado nos exames finais do Colégio São Bento. A orgia vencia de goleada as cobranças familiares. Sua mãe sonha com um filho médico. Em 1928, nova reprovação.

Após a terceira reprovação e tendo o ambiente familiar se voltado contra si, cogita o suicídio. Aliás, esse é outro tema recorrente em sua obra.

Em 1930, aos 19 anos, esforçando-se para dar alguma alegria à mãe, consegue ingressar na faculdade de Medicina.

Esse ambiente é diametralmente oposto a tudo o que atraía o jovem sambista: freqüentado por brancos, de alta classe social, esnobes. Negros, apenas na limpeza e como serviçais.

Em paralelo aos estudos, Noel agora faz parte da banda Bando dos Tangarás. Era um grupo diferente, pois composto por jovens com empregos socialmente respeitados, com curso superior. O receio de serem rotulados como “populacho”, a exemplo dos demais músicos populares, forçava-os a usar pseudônimos. Braguinha usava o pseudônimo de João de Barro. Noel era a exceção, recusando-se a se esconder da opinião pública.    

Sua mãe a tudo via e a tudo o que via, temia. Para impedi-lo de ir a uma festa, esconde todas as roupas do filho. Quando os amigos lhe gritam, responde: “Com que roupa eu vou?”. Após escutar o Hino Nacional, ao passar próximo a um quartel, tem a ideia para um novo samba. Nasceu assim um de seus maiores sucessos. Cartola reconheceu que era digno de um grande sambista.

“Com que roupa?” foi sucesso no Carnaval de 1931 e vendeu 15 mil cópias.

O início dos anos 1930 é o turning point de Noel. Está envolvido com 5 mulheres simultaneamente. Um grande feito para o rapaz franzino, feio, sem queixo. Quase todos motivaram um samba diferente. Para Clarinha, a primeira, compôs “Não morre tão cedo” – mas não será gravada. Para Josefina, compôs “Três apitos”. Julinha quebrava o violão de Noel e tentou suicídio quando brigaram – não recebeu samba. Lindaura, com quem se casa após breve envolvimento e de ser ameaçado de ser preso caso não se casasse, também não foi homenageada. Já Ceci, dançarina do Cabaré Apolo, com apenas 16 anos, e dona de seu coração, foi homenageada com “Dama do cabaré”.

Em 1931 já tem mais de 20 músicas gravadas. Uma delas e grande sucesso foi “Gago apaixonado”. Utilizando os conhecimentos de anatomia da faculdade, compôs “Coração”.

Aos 21 anos, é integrante do conjunto Ases do Samba, que contava também com Ismael Silva. A agenda do grupo é conflitante com a faculdade. No fim, como se poderia supor, o samba vence. Noel é exclusivamente sambista.

Participa de programas de rádio. O cachê era pouco, mas a satisfação era enorme.

Noel tem enorme reconhecimento, mas precisa de dinheiro. Um dos maiores cantores daqueles tempos era Francisco Alves. Noel sabia que o Rei da Voz costumava comprar sambas de terceiros e pôr seu nome. Chico Alves ganhava muito dinheiro e usava esse poder para trazer um falso brilhantismo, que excedia seu talento nato. Com o dinheiro dessas vendas, Noel conseguia comprar sua cerveja, seu cigarro, seu pó.

Em troca de um Chevrolet usado e detonado, o Poeta cede 50% de todos os seus rendimentos em shows e direitos autorais ao mesmo Francisco Alves. Nessa época, declarou: “O empresário explora o trabalho dos cantores e das cantoras. O proxeneta explora o trabalho das mulheres perdidas, com o seu prejuízo moral. Qual destes empresários é mais criminoso?”.

Noel compôs clássicos ao lado de Cartola, Braguinha, Lamartine. Ao lado de Vadico (futuro pianista de Carmem Miranda) cria “Feitiço da Vila” e “Conversa de Botequim”. Com outros parceiros ainda compõe “Filosofia”, “Positivismo” e “Pierrot Apaixonado”.

Em 1932, o “Ases do Samba” era composto por Mario Reis, Francisco Alves, Lamartine Babo e Nonô. Partem para Porto Alegre. Noel se “perde” dos amigos mais caretas e parte para os famosos inferninhos de Porto. No primeiro show, encanta um jovem soldado com seus sambas: Lupicínio Rodrigues, então com 17 anos.

Após o show de estréia, convence os amigos a um passei sem compromisso, pela cidade. Com muita facilidade, chegam ao Beco do Oitavo: aglomerado de cabarés, tabernas, cortiços. Continuam e chegam à Cidade Baixa.

Terminam por reencontrar Lupicínio Rodrigues. A bebedeira faz Noel deitar frases elogiosas a Lupicínio. Francisco Alves não se faz de rogado e convida o jovem para uma gravação quando estiver no Rio. Chegado esse dia, Lupicínio grava “Nervos de Aço” e “Esses moços”. Tornam-se clássicos.

Em 1932, Noel é cantor e compositor de peso. Famoso e até sedutor, após iniciar suas cantorias. Veste-se muito bem, tem sempre o cabelo bem-cortado e asseado com brilhantina.

Por volta de 1933, Noel se envolve numa famosa disputa de partideiros contra Wilson Baptista. Este lança “Lenço no Pescoço”, samba que exaltava a malandragem:

(...)
“Meu chapéu do lado
Tamanco arrastado
Lenço no pescoço
Navalha no bolso”
(...)

Cantava. Noel detestou aquela homenagem à malandragem, e retrucou com “Rapaz Folgado”: um malandro de verdade não assume ser malandro nem exibe posição.

A disputa acabou quando Baptista lançou “Frankenstein da Vila”, explorando os defeitos físicos de Noel. Ofendido, recusou-se a continuar.

Aos 23 anos, após ser denunciado pela mãe de Lindaura, jovem de apenas 13 anos, e de ser ameaçado por um delegado de responder pela acusação de sedução de menores, casa-se com a moça. Mas não larga a boemia.

Noel tem por hábitos: fumar o tempo todo, beber o tempo todo, além de se alimentar muito mal. Com apenas 25 anos, contrai a “AIDS do início do século”: a tuberculose. Seus pulmões estão lesados.

Procura ajuda médica e recebe tratamento. O médico lhe adverte de que caso abando NE o tratamento, terá mais dois anos de vida, apenas.

Em 1935, viaja com Lindaura para Belo Horizonte, onde procura repouso. Engorda doze quilos e melhora sua saúde.

A notícia de que Ceci havia o procurado enquanto ausente, fica transtornado e foge para o velho e insalubre lar: a Lapa. Parece ter se decidido por apenas dois anos, mas à sua maneira.

É recebido com saudades por Ismael Silva e Aracy de Almeida. Ceci está irada com o poeta. Detestou ser chama da de fingida no samba “Só com você”.

As palavras de Noel eram demovedoras: Ceci termina na cama, com Noel, vestindo máscara cirúrgica para se proteger da tuberculose.

Como se estivesse numa avalanche, Noel descobre que Lindaura está grávida. Porém sua mulher sofre um aborto.

Aos 26 anos, Noel está com a saúde péssima. Ceci, certa vez bebendo com o poeta, toca sua testa e percebe que ele ardia em febre. Repreendido por estar tomando cerveja gelada, logo se volta para o garçom e pede uma cerveja quente.

Foge para um hotel com sua musa. Ao acordar, compõe “Último desejo”. Percebia a morte em seu calcanhar.

Ainda acha tempo para dois retiros na serra, ao lado de Lindaura.

Suas últimas dores encontram-se descritas no samba “Eu sei sofrer”.

O Poeta da Vila deixou mais de 250 canções para a posteridade.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A vida louca da MPB”

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