O primeiro instrumento que aprende a tocar é um bandolim.
Com este primeiro companheiro, toca em saraus e festas promovidos pela mãe.
Mas a visão de homens em torno de uma mesa de bar, cantando
e tocando sambas, conversando e flertando as mulheres o atrai. E como o atrai.
Cria coragem e tenta o violão. Este instrumento ainda
carregava uma aura de malandragem, vagabundagem, tornava maldito que o tocasse.
Noel não liga para essas convenções sociais. Aos 15 anos é um exímio
violonista. Agora o garoto quer a orgia.
Circula pelos bilhares, adota o copo de cerveja a tiracolo,
diverte-se em serenatas. Diga-se: àquela época vender bebidas alcoólicas a
menores de dezoito anos era lugar-comum.
Tudo lhe atiça a curiosidade: o tom das conversas, as
gírias, as maneiras das pessoas que encontrava. Tudo viraria motivo para os
seus sambas. Todos seriam retratados em suas letras.
Torna-se transgressor: bebe, cheira, fuma, o que quer que
lhe fosse oferecido.
O bar Ponto de Cem Réis, esquina da Rua Souza Franco com Boulevard
28 de Setembro, coração de sua Vila Isabel, torna-se escritório do poeta. Entre
cigarros e cervejas, doutores, operários, apostadores, bicheiros, bandidos,
putas, traficantes se misturavam. Todos procuram um novo samba que lhe benza a
alma.
Noel testemunhou muitas negociatas, daquelas típicas em
locais de boemia: um branco de classe média, sem talento musical, pagava a um
sambista pobre, do morro, para que este pusesse seu nome como parceiro em um
sambinha. Tudo pela popularidade.
A mescla musical era produto de encontros: os antigos seresteiros,
herdeiros da tradição musical do século XIX, encontravam sambistas dos morros
próximos – Mangueira, Salgueiro, Macacos.Essa fusão de estilos torna-o capaz de
transitar entre esses estilos com confiança.
O alimento de suas composições são: pobres, pretos, favelas,
lavadeiras, mercados populares. É o autêntico “voz do morro”. Procura retratar
tudo o que via, da maneira mais genuína possível. Dizia que o idioma de suas
músicas não era o português, mas o português-brasileiro. Erros gramaticais são
incorporados como novos padrões da língua culta. Não via erros, mas mudanças
naturais em uma língua viva.
Em 1927, aos 16 anos, é reprovado nos exames finais do
Colégio São Bento. A orgia vencia de goleada as cobranças familiares. Sua mãe
sonha com um filho médico. Em 1928, nova reprovação.
Após a terceira reprovação e tendo o ambiente familiar se
voltado contra si, cogita o suicídio. Aliás, esse é outro tema recorrente em
sua obra.
Em 1930, aos 19 anos, esforçando-se para dar alguma alegria
à mãe, consegue ingressar na faculdade de Medicina.
Esse ambiente é diametralmente oposto a tudo o que atraía o
jovem sambista: freqüentado por brancos, de alta classe social, esnobes.
Negros, apenas na limpeza e como serviçais.
Em paralelo aos estudos, Noel agora faz parte da banda Bando
dos Tangarás. Era um grupo diferente, pois composto por jovens com empregos
socialmente respeitados, com curso superior. O receio de serem rotulados como “populacho”,
a exemplo dos demais músicos populares, forçava-os a usar pseudônimos. Braguinha
usava o pseudônimo de João de Barro. Noel era a exceção, recusando-se a se
esconder da opinião pública.
Sua mãe a tudo via e a tudo o que via, temia. Para impedi-lo
de ir a uma festa, esconde todas as roupas do filho. Quando os amigos lhe
gritam, responde: “Com que roupa eu vou?”. Após escutar o Hino Nacional, ao
passar próximo a um quartel, tem a ideia para um novo samba. Nasceu assim um de
seus maiores sucessos. Cartola reconheceu que era digno de um grande sambista.
“Com que roupa?” foi sucesso no Carnaval de 1931 e vendeu 15
mil cópias.
O início dos anos 1930 é o turning point de Noel. Está
envolvido com 5 mulheres simultaneamente. Um grande feito para o rapaz
franzino, feio, sem queixo. Quase todos motivaram um samba diferente. Para
Clarinha, a primeira, compôs “Não morre tão cedo” – mas não será gravada. Para
Josefina, compôs “Três apitos”. Julinha quebrava o violão de Noel e tentou
suicídio quando brigaram – não recebeu samba. Lindaura, com quem se casa após breve
envolvimento e de ser ameaçado de ser preso caso não se casasse, também não foi
homenageada. Já Ceci, dançarina do Cabaré Apolo, com apenas 16 anos, e dona de
seu coração, foi homenageada com “Dama do cabaré”.
Em 1931 já tem mais de 20 músicas gravadas. Uma delas e
grande sucesso foi “Gago apaixonado”. Utilizando
os conhecimentos de anatomia da faculdade, compôs “Coração”.
Aos 21 anos, é integrante do conjunto Ases do Samba, que
contava também com Ismael Silva. A agenda do grupo é conflitante com a
faculdade. No fim, como se poderia supor, o samba vence. Noel é exclusivamente
sambista.
Participa de programas de rádio. O cachê era pouco, mas a
satisfação era enorme.
Noel tem enorme reconhecimento, mas precisa de dinheiro. Um
dos maiores cantores daqueles tempos era Francisco Alves. Noel sabia que o Rei
da Voz costumava comprar sambas de terceiros e pôr seu nome. Chico Alves
ganhava muito dinheiro e usava esse poder para trazer um falso brilhantismo,
que excedia seu talento nato. Com o dinheiro dessas vendas, Noel conseguia
comprar sua cerveja, seu cigarro, seu pó.
Em troca de um Chevrolet usado e detonado, o Poeta cede 50%
de todos os seus rendimentos em shows e direitos autorais ao mesmo Francisco
Alves. Nessa época, declarou: “O empresário explora o trabalho dos cantores e
das cantoras. O proxeneta explora o trabalho das mulheres perdidas, com o seu
prejuízo moral. Qual destes empresários é mais criminoso?”.
Noel compôs clássicos ao lado de Cartola, Braguinha,
Lamartine. Ao lado de Vadico (futuro pianista de Carmem Miranda) cria “Feitiço
da Vila” e “Conversa de Botequim”. Com outros parceiros ainda compõe “Filosofia”,
“Positivismo” e “Pierrot Apaixonado”.
Em 1932, o “Ases do Samba” era composto por Mario Reis,
Francisco Alves, Lamartine Babo e Nonô. Partem para Porto Alegre. Noel se “perde”
dos amigos mais caretas e parte para os famosos inferninhos de Porto. No
primeiro show, encanta um jovem soldado com seus sambas: Lupicínio Rodrigues,
então com 17 anos.
Após o show de estréia, convence os amigos a um passei sem
compromisso, pela cidade. Com muita facilidade, chegam ao Beco do Oitavo:
aglomerado de cabarés, tabernas, cortiços. Continuam e chegam à Cidade Baixa.
Terminam por reencontrar Lupicínio Rodrigues. A bebedeira
faz Noel deitar frases elogiosas a Lupicínio. Francisco Alves não se faz de
rogado e convida o jovem para uma gravação quando estiver no Rio. Chegado esse
dia, Lupicínio grava “Nervos de Aço” e “Esses moços”. Tornam-se clássicos.
Em 1932, Noel é cantor e compositor de peso. Famoso e até sedutor,
após iniciar suas cantorias. Veste-se muito bem, tem sempre o cabelo
bem-cortado e asseado com brilhantina.
Por volta de 1933, Noel se envolve numa famosa disputa de
partideiros contra Wilson Baptista. Este lança “Lenço no Pescoço”, samba que
exaltava a malandragem:
(...)
“Meu chapéu do lado
Tamanco arrastado
Lenço no pescoço
Navalha no bolso”
(...)
Cantava. Noel detestou aquela homenagem à malandragem, e
retrucou com “Rapaz Folgado”: um malandro de verdade não assume ser malandro
nem exibe posição.
A disputa acabou quando Baptista lançou “Frankenstein da
Vila”, explorando os defeitos físicos de Noel. Ofendido, recusou-se a continuar.
Aos 23 anos, após ser denunciado pela mãe de Lindaura, jovem
de apenas 13 anos, e de ser ameaçado por um delegado de responder pela acusação
de sedução de menores, casa-se com a moça. Mas não larga a boemia.
Noel tem por hábitos: fumar o tempo todo, beber o tempo todo,
além de se alimentar muito mal. Com apenas 25 anos, contrai a “AIDS do início
do século”: a tuberculose. Seus pulmões estão lesados.
Procura ajuda médica e recebe tratamento. O médico lhe adverte
de que caso abando NE o tratamento, terá mais dois anos de vida, apenas.
Em 1935, viaja com Lindaura para Belo Horizonte, onde
procura repouso. Engorda doze quilos e melhora sua saúde.
A notícia de que Ceci havia o procurado enquanto ausente,
fica transtornado e foge para o velho e insalubre lar: a Lapa. Parece ter se
decidido por apenas dois anos, mas à sua maneira.
É recebido com saudades por Ismael Silva e Aracy de Almeida.
Ceci está irada com o poeta. Detestou ser chama da de fingida no samba “Só com
você”.
As palavras de Noel eram demovedoras: Ceci termina na cama,
com Noel, vestindo máscara cirúrgica para se proteger da tuberculose.
Como se estivesse numa avalanche, Noel descobre que Lindaura
está grávida. Porém sua mulher sofre um aborto.
Aos 26 anos, Noel está com a saúde péssima. Ceci, certa vez
bebendo com o poeta, toca sua testa e percebe que ele ardia em febre. Repreendido
por estar tomando cerveja gelada, logo se volta para o garçom e pede uma
cerveja quente.
Foge para um hotel com sua musa. Ao acordar, compõe “Último
desejo”. Percebia a morte em seu calcanhar.
Ainda acha tempo para dois retiros na serra, ao lado de
Lindaura.
Suas últimas dores encontram-se descritas no samba “Eu sei
sofrer”.
O Poeta da Vila deixou mais de 250 canções para a
posteridade.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A vida louca da
MPB”
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