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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

SEXO, DROGAS E MPB: NELSON CAVAQUINHO


Nascido em 28 de outubro de 1911, carioca, nascido pobre, tinha cinco irmãos, era filho de um tocador de bumbo na Polícia Militar e de uma lavadeira. Ganha de um português seu primeiro cavaquinho.
Aos sete anos, sobrevive a uma gripe espanhola.

Torna-se operário de uma fábrica de tecidos, ainda criança. Depois passa a auxiliar eletricista. Eram tempos anteriores às leis trabalhistas.

Foi na Rua da Conceição que assistiu às performances artísticas que o inspirariam. Após mudanças de bairros, a família aluga um imóvel na Gávea, à época um simples bairro de operários. Lá, adolescente, começa a se apresentar em bares e tabernas acompanhando conjuntos de chorões.

Seus amigos são sambista como Brancura, Camisa Preta, Edgar.

Também inventa uma nova maneira de tocar seu inseparável violão, usando apenas dois dedos – polegar e indicador direitos – que passará a ser conhecida como “galope”.

Aos 20 anos, após envolvimento com uma garota chamada Alice, é obrigado a se casar. O casal tem três filhos, mesmo não tendo Nelson emprego fixo.

Sabendo das dificuldades, amigos do pai conseguem um emprego para Nelson na Força Pública. Sua função era patrulhar os bares nos morros. Apaixonado pela boemia, Nelson freqüenta todos esses bares, bebe e canta e conhece muito sambista: Cartola, Zé da Silva, Carlos Cachaça.

Aliás, no dia que conhece Cartola, fica tão impressionado com o colega que esquece o cavalo que usava desamarrado. Acostumado à rotina, o animal volta para o Quartel na hora certa, diferente de Nelson, que volta correndo, embora atrasado. Vai preso administrativamente, o que, aliás, fazia-se rotina na sua vida.
Enquanto preso, Nelson compunha. Em cana, compôs “Entre a cruz e a espada”.

Percebendo que estava bem próximo de ser demitido da PM, Nelson pede uma licença e se interna definitivamente na boemia. Em casa, sua esposa, cansada de quebrar seus instrumentos musicais, pede separação. Nelson é agora exclusivamente da boemia.

Suas composições chamam a atenção de alguns sambistas. “Devia ser condenada” é elogiado por Noel Rosa. Aos 21 anos, a pedido de Noel, Cartola e Carlos Cachaça o levam para conhecer o poeta da Vila, que não poupa elogios ao garoto iniciante.  

Apesar de nunca ter feito parte da ala de compositores da Mangueira, Nelson consegue emplacar um samba no carnaval de 1935.

Aos 28 anos, torna-se viúvo, após a morte de Alice. Talvez abatido pela perda, desliga-se definitivamente da Polícia Militar.

Suas composições lhe rendem a alcunha de sambista da morte da melancolia, temas sempre presentes em seus sambas. Sua primeira obra gravada foi “Não faça vontade a ela”, cantada por Alcides Gerardi.

Embora talentoso e prolífico compositor, Nelson se recusa veementemente a seguir o caminho profissional, buscando contatos e criando relacionamentos, de modo a chegar ao coração da indústria musical. Não. Nelson quer apenas compor, cantar e deixar a vida seguir em frente.

Não procura as rádios; espera que elas o procurem. Não elogia músicas e cantores por quem não nutre admiração, ainda que seja uma estrela famosa do rádio. Por outro lado, não poupa elogios a quem lhe toca a alma, ainda que seja um bêbado com quem tromba numa mesa de botequim. Não busca o sucesso; espera que este o premie por seu talento, naturalmente.

Seu parceiro musical e amigo de longa data, Guilherme de Brito, mecânico de máquinas de calcular, aproximou-se de Nelson no café São Jorge, depois de ter sua curiosidade atraída pelo jovem que estava sempre cantando, rodeado de gente.

Guilherme se aproxima, inicialmente, levando uma composição parcial em que trabalhava. Sabendo do talento do rapazola, pede-lhe auxílio para terminá-lo. O nome da música era “Garça”. Nelson gosta e rapidamente finaliza a obra. Tornam-se parceiros até o fim.

Outro parceiro que Nelson agrega à sua volta é Alcides caminha, funcionário público e quadrinista pornográfico famoso pelo pseudônimo de Carlos Zéfiro. Os três compõem o clássico “A flor e o espinho”.
Essa composição se inicia após uma das bebedeiras de Guilherme de Brito, que se senta num bar da Praça XV, de madrugada. Dedilha e canta:
(...)
“Tire esse sorriso do caminho,
Que eu quero passar com minha dor”
 (...)

Apresenta a letra a Nelson, que cria a melodia, e assim nasce mais um samba imortal.

Temas repugnantes, como necrofilia, chegam a ser explorados em suas letras, sempre acompanhadas de dor e melancolia, como em “Depois da vida”:
(...)
É pena que uns lábio gelados como os teus
Não sintam o calor que eu guardei nos lábio meus
No teu funeral estás tão fria assim
(...)
Eu te esperei minha querida
Mas só te beijei depois da vida.
(...)

Nos anos 1950, o cavaquinho sai de cena, e entra o violão. Sua técnica com este último também é avassaladora. Torna-se inspiração viva para Paulinho da Viola e Egberto Gismonti.   

Nelson nunca compôs nada por encomenda. Não gostava de samba-enredo, embora autor de alguns. Uma vez ele declarou: “Acho horrível você ter de fazer aqueles lá-lá-lá e oba-oba obrigatórios na linha melódica das escolas de samba. Faço músicas para tirar as coisas de dentro do coração. E foi assim desde o dia em que fiz meu primeiro samba.”

Outra marca característica intrínseca a sua personalidade eram suas bebedeiras homéricas. De saúde invejável, chagava a passar uma semana na rua, sem pisar em casa, dormindo nas ruas ou em mesas de bares e sem comer quase nada. Só levava o inseparável violão.

Nelson também era consciente da qualidade de seus trabalhos: jamais cantava músicas de terceiros; só autorias próprias.

Após a viuvez precoce, Nelson se casa com Durvalina: trinta anos mais jovem e indiferente aos sumiços do marido.

Mas os amores do bamba era muitos. Um dos mais marcantes atendia pelo nome de Lígia. Mendiga, dorme na Praça Tiradentes, aos pés de D. Pedro I. Este é um dos espaços prediletos de Nelson na cidade. Bebem até cair, e então dormem abraçadinhos, ao relento. Segundo amigos, esse era Nelson. Ele não mudava.

Para Lígia, Nelson tatua seu nome no ombro direito e compõe “Tatuagem”:
“O meu único fracasso
Está na tatuagem do meu braço
É feliz quem já viveu aflito
E hoje tem a vida sossegada
Muita gente tem o corpo tão bonito
Mas tem a alma toda tatuada”

Nos anos 1950, Nelson se torna fashion. É moda cantá-lo. A toda hora alguém grava uma composição sua. Deixa os anos de marginal para trás.

Dalva de Oliveira grava “Palhaço”. Elizeth Cardoso grava “Amor que morreu”. Ruth Amaral grava “Garça”. Raul Moreno grava “A flor e o espinho”. Roberto Silva grava “Notícia” e “Degraus da vida”.

Na década de 1960, Nara Leão grava “Pranto de poeta”.

Com a inauguração do inesquecível Zicartola – restaurante de Cartola e sua esposa, Dona Zica -, no centro do Rio, Nelson Cavaquinho se apresenta em público pela primeira vez na vida. Canta ao lado de Cartola, Zé Kéti, Elton Medeiros e Jorge Santana.

Não parou par aí. Nos anos 1960, Nelson é grava por Elizeth Cardoso: “Vou partir” e “A flor e o espinho”. Isso, para o disco “Elizeth sobe o morro”. No disco seguinte, “Quatrocentos anos de samba”, registra “O meu pecado”. O jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, produz um disco inteiro em homenagem ao sambista-eterno-boêmio, cantado por Thelma Soares e com arranjos de Radamés Gnatalli. Nesse disco, Nelson toma participação em “Cuidado com a outra”, “História de um valente” e “Rei sem trono”.

Apresenta-se em palco ao lado de Moreira da Silva e João do Vale no show “A voz do povo”.

Aos 56 anos, é convidado para registrar um depoimento próprio para o Museu da Imagem e do Som. Nelson é respeitado e exibe status de imortal. Aponta Chico Buarque, Baden Powell, Pelado e Padeirinho – esses dois últimos da Mangueira - como os melhores compositores da nova geração. Suas intérpretes favoritas são Nara Leão e Maria Bethânia. A que melhor entende suas letras? Elizeth Cardoso.

Ao ser perguntado sobre quais bares estava freqüentando, respondeu que preferia agora os da Zona Sul; os da Lapa estavam muito lotados...

Grava o LP “Fala Mangueira”, ao lado de Cartola, Clementina de Jesus e Carlos Cachaça. Paulinho da Viola grava “Não te dói a consciência”. Leon Hirszman produz um curta-metragem sobre a vida do sambista. Nelson Gonçalves, então um dos maiores cantores do país, grava “Eu não sei por quê”. Elizeth ainda grava “Vou partir”.

No entanto, um disco apenas seu, somente foi gravado em 1970, quando ele contava 59 anos de idade. Chamava-se “Depoimento do poeta” e saiu do forno com ares de clássico. O tal depoimento são conversas em estúdio que travou com Elizeth Cardoso, Oswaldo Sargentelli e outros. Nelson reproduziu o ambiente em que melhor se sentia à vontade: mesas de bares e conversas de botequim.

Sua voz rouca é conseqüência de anos de boemia e sereno. Mas não é a voz que o distingue, senão as histórias que conta - e canta. Aliás, sobre sua rouquidão declarou: “A minha voz, você sabe, é rouca mesmo. Mas o... como é mesmo o nome daquele homem lá, da América do Norte? Ah! O Armstrong. Ele também era rouco. Há pessoas que gostam muito mais da minha voz do que o de muitos cantores por aí. Não sei por quê. Acho que é porque eu sinto. Eu tenho sentimento quando canto.”

Em 1972, é convidado para mais um disco. Mais uma vez, converte o estúdio numa roda de samba: traz mesas de botequim, cachaça, cerveja. São registrados os improvisos, os papos.

Um ano depois, lança o terceiro disco: “Nelson Cavaquinho”. É nesse trabalho que Guilherme de Brito grava pela primeira vez. Canta com o poeta “A flor e o espinho”, “Se eu sorrir”, “Quando eu me chamar saudade” e “Pranto de poeta”.

Fernando Faro, diretor do programa Ensaio, da TV Cultura, convida Nelson para mais um registro de suas obras.

Em 1974, seu primeiro LP é relançado pela Continental. O original havia sido lançado por um selo pequeno, que faliu logo após o lançamento, fazendo com que os discos fossem raros no mercado.

Mais intérpretes se lançam às suas obras: Paulo César Pinheiro, Beth Carvalho e Clara Nunes.
Cartola, então com 66 anos, convida Nelson para uma participação em seu disco “Verde que te quero rosa”. O dueto ocorre com “Pranto de poeta”.

Nelson grava o disco “Quatro grandes do samba”, ao lado de Guilherme, Candeia e Élton Medeiros. Em 1985, toma parte no disco-tributo à sua obra “As flores em vida”. Canta quatro faixas. As demais são registradas nas vozes de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, João Bosco e Toquinho. O lançamento ocorre com grande festa na quadra da Mangueira.

Parou de beber e de fumar, por preocupação com a saúde. Não mais dormia tarde, procurava se alimentar bem. O tempo passa, a idade chega...

O carnaval de 1986 é vencido pela Mangueira. Semana se torna saudade uma semana depois – como dizia em suas composições...

Em 2011, a Mangueira dedica seu desfile a homenagear um de seus maiores fãs. O nome do enredo é “O filho fiel, sempre Mangueira”. Era o ano em que Nelson completaria 100 anos de vida. Também são homenageados amigos próximos, como Cartola e Carlos Cachaça. As baianas vestiam folhas secas.     

Talvez o poeta tivesse assistido a tudo, de onde estivesse, aos prantos...


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A vida louca da MPB”

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