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terça-feira, 11 de outubro de 2016

HUGO GROTIUS E O DIREITO INTERNACIONAL DO MAR ABERTO


Desde a chegada de Vasco da Gama a Calicute, na Índia, e por pouco mais de uma geração, Portugal teve a supremacia no comércio global de especiarias. Por meio de embarcações tecnologicamente superiores, uma marinha poderosa e bases fortificadas espalhadas por África, América e Ásia, até a Indonésia. Somando-se a isso, estava o Tratado de Tordesilhas e o monopólio que este lhe rendia.

Contudo, Portugal era, e ainda é, uma nação pequena e pouco povoada. Estima-se que sua população àquela época girava em torno de 2 milhões de pessoas. Como comparação, a população da Espanha deveria girar em torno de 8 milhões de pessoas. Não contava, portanto, com recursos, especialmente humanos, para manter uma caríssima rede comercial global: militares, frotas de navios, armas e munições etc.

Seguidas guerras, disputas com nativos, naufrágios e doenças dizimaram a população masculina. Como conseqüência, na segunda metade do séc. XVI a máquina naval portuguesa passou a empregar estrangeiros. Por sua tradição de povo do mar, os holandeses foram os mais numerosos.

Em 1581 o monopólio consolidado das rotas ultramar passava às mãos dos reis espanhóis, porém, simultaneamente, ocorria a Reforma Protestante, pela qual a própria existência desse monopólio era combatida em terras europeias.

Carlos I da Espanha, ao tornar-se Imperador do Sacro Império, e assumir o título de Carlos V, herdou também o Ducado de Borgonha e as províncias dos Países Baixos – correspondente às atuais Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Em 1549, essas províncias tornaram-se independentes: o Estado das Dezessete Províncias da União dos Países Baixos. Contudo permaneciam sob o governo de Carlos V.

A quantidade inimaginável de riquezas que fluíam das Américas, somadas Às rotas portuguesas, agora em suas mãos, criaram um império tão extenso que o próprio imperador duvidava de que pudesse governá-las. Em 1555, Carlos V abdica do trono e resolve passar seus últimos dias em plena contemplação espiritual, em preces.

Simultaneamente, dividiu seu império entre seu filho e seu irmão: Fernando I, seu irmão, herdou o Sacro Império Romano; Filipe II, seu filho, herdou a Espanha e a União dos Países Baixos.

Após o início das guerras religiosas e em função da adoção do calvinismo, no âmbito da Reforma, a Inquisição espanhola declarou a população dos Países Baixos, algo em torno de 3 milhões de pessoas, herege, portanto condenada à morte. A Espanha enviou portanto seu exército liderado pelo nefasto Duque de Alva. Revoltas locais foram combatidas e impostos, criados.

Conforme as palavras de um panfleto da época, que circulava entre os holandeses, os espanhóis estavam empenhados em violar todas as leis e costumes locais e “pilhar, roubar, assolar, despejar, desolar, apreender, intimidar, banir, expulsar e confiscar bens, queimar e arrasar, enforcar, picar, cortar, quebrar na roda, torturar e assassinar com tormentos pavorosos e nunca antes vistos os súditos holandeses”. Alva estava injuriado como se estivesse tomado por “fúria insana e loucura”.

Embora atingisse proporções alarmantes, não se tratou de uma guerra, mas de dezenas de revoltas. A cidade de Antuérpia, até então uma espécie de hub comercial português especializado em distribuir especiarias trazidas de territórios pertencentes a este último, foi fechada. Exércitos marchavam ao redor do território. Uma série de batalhas eram travadas.

Durante o conflito, ficou evidente que a população das províncias mais ao sul costumava apoiar a Espanha e seus exércitos. Portanto as pessoas mais rebeldes (e normalmente protestantes) tenderam a fugir para as províncias mais ao norte, como Amsterdam. A população de refugiados econômicos e religiosos nessa cidade crescia.

Comerciantes de Amsterdam, contando com mais recursos humanos e monetários, passaram a equipar navios e navegar a Lisboa para trazer mercadorias, portuguesas e orientais. Em 1595, Filipe II, como uma forma de retaliação, fechou o porto de Lisboa para navios holandeses. Com essa última medida, comerciantes holandeses tiveram o motivo de que necessitavam para atacar as rotas comerciais e os portos de seus inimigos políticos e religiosos. Ironicamente, foram os navegadores holandeses que, tempos antes, prestaram serviço para o governo português que tornaram possíveis tais ataques, haja vista o conhecimento que detinham acerca das rotas comerciais marítimas controladas por Portugal.

Foi esse o ambiente vigente na Holanda quando o jovem Hugo Grotius entrou na faculdade de direito da Universidade de Leiden.

Navegadores como Jan Huygen van Linschoten forneceram informações sobre melhores rotas, fortificações, melhores mercadorias disponíveis, onde a resistência contra Portugal era maior, onde os comerciantes holandeses seriam melhor recebidos etc. Informou também que o Império português estava em plena decadência.

As expedições holandesas em direção às Molucas eram empreendimentos privados, ao contrário dos correspondentes portugueses. Os primeiros nove patrocinaram uma companhia: a Companhia dos Lugares Longínquos. Comandada por Cornelis de Houtman, foi considerada um fracasso. Por sua inabilidade mais da metade da tripulação de seus navios morreu. Apesar disso, essa expedição mostrou o entusiasmo com que comerciantes malaios recebiam estrangeiros não portugueses. A insatisfação deles com relação ao monopólio português era patente. Além disso, a intolerância de católicos espanhóis e portugueses em relação aos costumes e religiões locais estava criando feridas difíceis de sarar.

Embora a viagem de Houtman não tenha conseguido alcançar seu potencial comercial ou diplomático, os lucros com os pequenos carregamentos de especiarias que ele trouxe de volta a Amsterdã pagaram a expedição e saciaram o apetite dos investidores, que se decidiram por novas aventuras.

Os investidores - em geral, pequeno comerciantes - formaram depressa uma nova companhia e escolheram um novo comandante, Jacob Corneliszoon van Neck, pondo-o na direção de uma frota de sete navios. Agora, bem armados contra navios militares portugueses e contando com um comandante bastante habilidoso comercial e militarmente, os holandeses ganharam fama de confiabilidade e honestidade. Na volta, as naus estavam recheadas de especiarias valiosas, especialmente pimenta-do-reino, que, quando posta no mercado, rendia aos investidores estonteantes 400% de retorno de capital. Com alegria e cobiça patrióticas, os holandeses organizaram outras viagens e, em poucos anos, pelo menos cinco companhias comerciais lançaram 22 navios às ilhas Molucas. Já de posse das informações concernentes à população local, os holandeses apresentavam-se como inimigos dos portugueses.

Em 1601, saíram mais 56 navios holandeses em direção às Índias. Em pouco tempo, os artigos holandeses do norte da Europa estavam bastante depreciados, enquanto os artigos orientais viam seu preço subir incessantemente. O sucesso holandês já tinha ido além do limite da prudência.

Em função da concorrência acirrada entre firmas mercadoras holandesas, o Parlamento do país votou, em 1602, a constituição da Companhia Holandesa das Índias Orientais– a famosa VOC. Entre seus objetivos estavam o comércio e a guerra, com igual importância – talvez até com um pequeno destaque para as guerras. Atacavam navios espanhóis e portugueses por prever o domínio das rotas monopolizadas por essas nações. Era praticamente um sindicato de piratas, lado a lado com interesses governamentais. Apesar da participação estatal, era financiado por investidores, não por impostos.

Os holandeses sabiam que teriam de pegar em armas para derrubar o monopólio Espanhol, que agora incluía Portugal, mas também sabiam que precisariam de justificativa legal para os ataques que empreendia. Somando-se a isso, houve o episódio em que o capitão holandês van Heemskerck entrou em conflito com um navio de guerra português, o Santa Catarina. Essa foi uma retaliação contra a morte de soldados holandeses em Macau, por ordem de funcionários espanhóis.

Após horas de combate, o navio holandês venceu e transportou o navio e sua carga para Amsterdam. Tal carregamento foi avaliado em astronômicos 3 milhões de florins. Portugal exigiu indenização ou devolução da carga imediatamente.

Criou-se um impasse:  a marinha holandesa não tinha condições de continuar financiando sua guerra de independência da Espanha sem a VOC; a VOC precisava ajudar no esforço de guerra por meio de seus navios. Porém esses navios eram mercantes, o que tornava suas ações contra navios espanhóis e portugueses ilegais – exceto se para defesa própria.

A VOC abordou Hugo Grotius, que na época tinha apenas 21 anos, para elaborar uma breve justificativa para o ataque passado e para qualquer futuro ataque a seus inimigos. A VOC julgava que havia chegado a hora de assegurar maior apoio público para suas ações e maior aceitação internacional da França e da Inglaterra.
Embora usando documentos bastante parciais para redigir seus argumentos – como o “Livro sobre os procedimentos cruéis, traiçoeiros e hostis dos portugueses nas Índias Orientais” -, Grotius escreveu um tratado equilibrado, técnico e não polêmico. Sua obra só tenha vindo a público séculos depois, um capítulo, denominado Mare Liberum, foi publicado em 1609, ano em que a República da Holanda obeteve uma trégua de doze anos com a Espanha.

Nesse documento, Grotius argumenta que a liberdade internacional de navegação nos mares se equipara aos direitos naturais – ou lei natural: Um conjunto de princípios de bom senso que deveriam governar os relacionamentos entre indivíduos e Estados, com base nos fundamentos de que autonomia e direitos não podem ser arbitrariamente tomados de pessoas ou Estados. Em razão de seu tamanho e dos seus limites, não caberia o monopólio. E se uma coisa não pode ser ocupada ou transferida, não pode ser possuída. Segundo sua pena, “navegar pelo mar não deixa atrás de si mais direitos legais que caminhar por uma trilha.”
Grotius expôs seus argumentos em três categorias: o direito de posse de territórios, o direito de navegação de novas vias marítimos fora da Europa e o direito de comércio sem interferência em terras fora da Europa. Seu objetivo era provar que os holandeses e, por extensão lógica, qualquer outra nação tinham o direito de viajar em torno do mundo, em especial às Índias, e então “navegar até os índios, como fazem, e envolver-se em comércio com eles. Assentaremos essa regra certa da lei das nações como o fundamento, a razão da qual é clara e imutável: que é legal para qualquer nação ir para qualquer outra e comerciar com ela”. Essas idéias, tão naturalmente aceitas no presente, eram, todavia, revolucionárias para a época.
Grotius também buscava derrubar a autoridade do Papa Alexandre VI quando da promulgação do Tratado de Tordesilhas. O papa:
a não ser que seja senhor temporal do mundo inteiro (o que homens sensatos negam), não pode dizer que o direito universal de negociação também está sob sua autoridade. […] E mais, caso o papa dê esse direito apenas aos portugueses e tire o mesmo de outros homens, ele cometeria dupla ofensa. Primeiro, aos índios, que, como foram postos fora [ou seja, não fazem parte] da Igreja, não estariam de modo algum submetidos ao papa […]. Segundo, a todos os outros homens cristãos e infiéis, dos quais ele não poderia tirar esse direito sem causa.

Quanto ao ataque holandês ao Santa Catarina: “Aquele que impedir a passagem e tolher o carregamento de mercadorias pode ser obstado por vias de fato, como dizem, mesmo sem esperar qualquer autoridade pública”.

No capítulo 3, expõe sobre as disputas entre Portugal e Espanha: “se eles forem usar a divisão do papa Alexandre vi, acima de tudo isso deve-se considerar em particular se o papa apenas deveria decidir as controvérsias entre portugueses e espanhóis, que certamente ele pode fazer como árbitro escolhido entre eles, os próprios reis, e fazer determinados pactos entre eles em relação ao assunto, e, se for assim, quando a coisa for feita entre outros, não pertence ao resto das nações”. Trata-se apenas de arbitragem com efeitos inter partes.

Já no capítulo 6, dispõe:
a doação do papa Alexandre, que pode ser alegada em segundo lugar pelos portugueses que desafiam o mar ou o direito de navegar apenas para eles próprios, […] não tem força nas coisas que estão fora do alcance das mercadorias, portanto o direito de navegar no mar não pode ser propriedade de ninguém; e daí se segue que tampouco pode ser dado pelo papa ou recebido pelos portugueses. […] Portanto, devemos dizer que esse pronunciamento não tem força, ou, o que não é menos crível, que o significado do papa era tal que ele queria que a briga entre os castelhanos e os portugueses fosse mediada, mas em nada dos direitos dos outros diminuído.

Importante notar que o conceito de Mare Clausum (mar fechado), combatido por Grotius, era a ordem natural das coisas, pois se coadunava até mesmo com a forma como os romanos tratavam os direitos de navegação no Mediterrâneo, o qual proibiam ou para o qual exigiam pagamento de tributos.

Como poderia-se imaginar, essa obra foi incluída no Codex de livros proibidos pela Igreja Católica.
Contudo, essa nova visão trazida por Grotius era extremada: nenhuma água, não importa quão perto do litoral de uma nação, devia estar, sob qualquer aspecto, sob a direção ou controle nacional.

O primeiro argumento contrário ao de Grotius partiu do português Serafim de Freitas, professor de direito português na Universidade de Valladolid, que escreveu Imperio Lusitanorum Asiatico. Ele alegava que os portugueses de fato tinham descoberto o caminho pelo cabo africano para alcançar a Índia. Será que essa descoberta pioneira não valeria alguma coisa, considerando a grande despesa, a incerteza de sucesso e o tempo envolvidos? Além disso, se as pessoas quisessem um monopólio exclusivo com os portugueses, por que não lhes seria permitido entrar num acordo exclusivo?

O espanhol Juan Solorzano Pereira continuou nessa linha de defesa em seu tratado De Indiarum Jure, publicado em 1629.

Em 1613, William Welwood, professor de direito civil e matemática na Universidade de St. Andrews, publicou Abridgement of all sea-lawes. Este concordava com Grotius no que se referia a mar oceano, grande mar. Mas as vias adjacentes deveriam ficar sob jurisdição nacional.

Em 1618, John Selden, escreveu sua clássica refutação a Grotius em Mare Clausum. Escreveu ele: “Que o mar, pela lei da natureza ou das nações, não é comum a todos os homens, mas capaz de domínio privado ou propriedades, do mesmo modo que as terras. […] Que o rei da Grã-Bretanha é senhor do mar que corre em torno, como um apêndice inseparável e perpétuo do Império britânico.” Necessário fazer notar que à época havia uma disputa entre barcos de ésca holandeses que frequentemente invadiam o litoral da Inglaterra. Porém a refutação não poderia ser forte o suficiente para invalidar a oposição de Grotius em face das nações ibéricas. “É incrível”, afirmava Selden, “a vasta soma de dinheiro que os holandeses ganham pescando em nossa costa.”

A crescente disputa entre a Inglaterra e a República da Holanda — especialmente entre o monopólio de suas duas empresas comerciais, a holandesa voc e a inglesa Companhia das Índias Orientais — levaria a três guerras, depois, no século xvii; e estava refletida na retórica do Mare liberum e seus contestadores.

Durante essas disputas, que envolviam a Cia das Índias Orientais inglesa e a contraparte holandesa, Grotius foi contratado para defender esta última. Evidentemente Grotius destilou todo o seu talento jurídico para defender seu cliente, ainda que isso significasse atacar parcialmente os seus próprios argumentos. Defendeu as ações da companhia para impor seu próprio monopólio sobre o comércio de especiarias, argumentando que os produtores nativos tinham assinado “contratos” com a voc para a entrega de seu produto, e que, em seu agora mais refinado entendimento e interpretação da “lei natural”, um contrato deve ser obedecido mesmo quando solapado pela soberania de um povo (ainda que soubesse que esses contratos eram assinados, muitas vezes, sob coação e ameaças). Justificava-se assim até ataques contra navios ingleses.

Conforme se observou Martine Julia: “a parceria política e intelectual entre Grotius e os diretores da voc explicita o lado escuro do liberalismo moderno. As teorias de direitos e contratos de Grotius não eram apenas circunjacentes com o aumento de impérios comerciais globais nos séculos xvii e xviii, mas, para começar, os tornou possíveis”.

Vale notar que nesses anos, Mare Liberum não havia sido publicado e Grotius ouvia seus próprios argumentos, de pessoas que não sabiam a autoria, e era obrigado a refutá-los, mesmo consciente de que ele próprio os escrevera.

Em resumo, os novos argumentos de Grotius se coadunavam aos de Serafim de Freitas. Em De Jure Belli ac Pacis (Sobre a lei da guerra e da paz), escrito enquanto esteve preso, Grotius passou a aceitar o controle nacional sobre águas territoriais.

Por fim, em 1702, o jurista holandês e escritor Cornelius Bynkershoek publicou um tratado com o título de De Domino Maris, em que argumentava: que as nações deveriam ter controle sobre parte de suas águas costeiras; que a liberdade dos mares defendida por Grotius deveria ficar restrita ao alto-mar; e que esse controle nacional deveria se estender para fora do território soberano até o alcance de um tiro de canhão - conceito original do limite de três milhas. Além desse limite, as vias marítimas do mundo estariam abertas a qualquer navio, como Grotius argumentou, em Mare liberum. Hoje, esse limite pode chegar a 200 milhas.

Esses conceitos aqui trabalhados por Grotius e outros são as bases da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.


Rubem L. de F. Auto 









  



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