Desde a chegada de Vasco da Gama
a Calicute, na Índia, e por pouco mais de uma geração, Portugal teve a
supremacia no comércio global de especiarias. Por meio de embarcações
tecnologicamente superiores, uma marinha poderosa e bases fortificadas espalhadas
por África, América e Ásia, até a Indonésia. Somando-se a isso, estava o
Tratado de Tordesilhas e o monopólio que este lhe rendia.
Contudo, Portugal era, e ainda é,
uma nação pequena e pouco povoada. Estima-se que sua população àquela época
girava em torno de 2 milhões de pessoas. Como comparação, a população da
Espanha deveria girar em torno de 8 milhões de pessoas. Não contava, portanto,
com recursos, especialmente humanos, para manter uma caríssima rede comercial
global: militares, frotas de navios, armas e munições etc.
Seguidas guerras, disputas com
nativos, naufrágios e doenças dizimaram a população masculina. Como conseqüência,
na segunda metade do séc. XVI a máquina naval portuguesa passou a empregar
estrangeiros. Por sua tradição de povo do mar, os holandeses foram os mais
numerosos.
Em 1581 o monopólio consolidado
das rotas ultramar passava às mãos dos reis espanhóis, porém, simultaneamente,
ocorria a Reforma Protestante, pela qual a própria existência desse monopólio
era combatida em terras europeias.
Carlos I da Espanha, ao tornar-se
Imperador do Sacro Império, e assumir o título de Carlos V, herdou também o
Ducado de Borgonha e as províncias dos Países Baixos – correspondente às atuais
Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Em 1549, essas províncias tornaram-se
independentes: o Estado das Dezessete Províncias da União dos Países Baixos.
Contudo permaneciam sob o governo de Carlos V.
A quantidade inimaginável de
riquezas que fluíam das Américas, somadas Às rotas portuguesas, agora em suas
mãos, criaram um império tão extenso que o próprio imperador duvidava de que
pudesse governá-las. Em 1555, Carlos V abdica do trono e resolve passar seus
últimos dias em plena contemplação espiritual, em preces.
Simultaneamente, dividiu seu
império entre seu filho e seu irmão: Fernando I, seu irmão, herdou o Sacro
Império Romano; Filipe II, seu filho, herdou a Espanha e a União dos Países
Baixos.
Após o início das guerras
religiosas e em função da adoção do calvinismo, no âmbito da Reforma, a
Inquisição espanhola declarou a população dos Países Baixos, algo em torno de 3
milhões de pessoas, herege, portanto condenada à morte. A Espanha enviou
portanto seu exército liderado pelo nefasto Duque de Alva. Revoltas locais
foram combatidas e impostos, criados.
Conforme as palavras de um
panfleto da época, que circulava entre os holandeses, os espanhóis estavam
empenhados em violar todas as leis e costumes locais e “pilhar, roubar,
assolar, despejar, desolar, apreender, intimidar, banir, expulsar e confiscar
bens, queimar e arrasar, enforcar, picar, cortar, quebrar na roda, torturar e
assassinar com tormentos pavorosos e nunca antes vistos os súditos holandeses”.
Alva estava injuriado como se estivesse tomado por “fúria insana e loucura”.
Embora atingisse proporções
alarmantes, não se tratou de uma guerra, mas de dezenas de revoltas. A cidade
de Antuérpia, até então uma espécie de hub comercial português especializado em
distribuir especiarias trazidas de territórios pertencentes a este último, foi
fechada. Exércitos marchavam ao redor do território. Uma série de batalhas eram
travadas.
Durante o conflito, ficou
evidente que a população das províncias mais ao sul costumava apoiar a Espanha
e seus exércitos. Portanto as pessoas mais rebeldes (e normalmente
protestantes) tenderam a fugir para as províncias mais ao norte, como
Amsterdam. A população de refugiados econômicos e religiosos nessa cidade
crescia.
Comerciantes de Amsterdam,
contando com mais recursos humanos e monetários, passaram a equipar navios e navegar
a Lisboa para trazer mercadorias, portuguesas e orientais. Em 1595, Filipe II,
como uma forma de retaliação, fechou o porto de Lisboa para navios holandeses. Com
essa última medida, comerciantes holandeses tiveram o motivo de que
necessitavam para atacar as rotas comerciais e os portos de seus inimigos políticos
e religiosos. Ironicamente, foram os navegadores holandeses que, tempos antes,
prestaram serviço para o governo português que tornaram possíveis tais ataques,
haja vista o conhecimento que detinham acerca das rotas comerciais marítimas
controladas por Portugal.
Foi esse o ambiente vigente na
Holanda quando o jovem Hugo Grotius entrou na faculdade de direito da Universidade
de Leiden.
Navegadores como Jan Huygen van Linschoten
forneceram informações sobre melhores rotas, fortificações, melhores mercadorias
disponíveis, onde a resistência contra Portugal era maior, onde os comerciantes
holandeses seriam melhor recebidos etc. Informou também que o Império português
estava em plena decadência.
As expedições holandesas em
direção às Molucas eram empreendimentos privados, ao contrário dos correspondentes
portugueses. Os primeiros nove patrocinaram uma companhia: a Companhia dos
Lugares Longínquos. Comandada por Cornelis de Houtman, foi considerada um
fracasso. Por sua inabilidade mais da metade da tripulação de seus navios
morreu. Apesar disso, essa expedição mostrou o entusiasmo com que comerciantes
malaios recebiam estrangeiros não portugueses. A insatisfação deles com relação
ao monopólio português era patente. Além disso, a intolerância de católicos
espanhóis e portugueses em relação aos costumes e religiões locais estava
criando feridas difíceis de sarar.
Embora a viagem de Houtman não
tenha conseguido alcançar seu potencial comercial ou diplomático, os lucros com
os pequenos carregamentos de especiarias que ele trouxe de volta a Amsterdã
pagaram a expedição e saciaram o apetite dos investidores, que se decidiram por
novas aventuras.
Os investidores - em geral,
pequeno comerciantes - formaram depressa uma nova companhia e escolheram um
novo comandante, Jacob Corneliszoon van Neck, pondo-o na direção de uma frota
de sete navios. Agora, bem armados contra navios militares portugueses e
contando com um comandante bastante habilidoso comercial e militarmente, os
holandeses ganharam fama de confiabilidade e honestidade. Na volta, as naus
estavam recheadas de especiarias valiosas, especialmente pimenta-do-reino, que,
quando posta no mercado, rendia aos investidores estonteantes 400% de retorno
de capital. Com alegria e cobiça patrióticas, os holandeses organizaram outras
viagens e, em poucos anos, pelo menos cinco companhias comerciais lançaram 22
navios às ilhas Molucas. Já de posse das informações concernentes à população
local, os holandeses apresentavam-se como inimigos dos portugueses.
Em 1601, saíram mais 56 navios
holandeses em direção às Índias. Em pouco tempo, os artigos holandeses do norte
da Europa estavam bastante depreciados, enquanto os artigos orientais viam seu
preço subir incessantemente. O sucesso holandês já tinha ido além do limite da
prudência.
Em função da concorrência acirrada
entre firmas mercadoras holandesas, o Parlamento do país votou, em 1602, a constituição
da Companhia Holandesa das Índias Orientais– a famosa VOC. Entre seus objetivos
estavam o comércio e a guerra, com igual importância – talvez até com um
pequeno destaque para as guerras. Atacavam navios espanhóis e portugueses por
prever o domínio das rotas monopolizadas por essas nações. Era praticamente um
sindicato de piratas, lado a lado com interesses governamentais. Apesar da
participação estatal, era financiado por investidores, não por impostos.
Os holandeses sabiam que teriam
de pegar em armas para derrubar o monopólio Espanhol, que agora incluía Portugal,
mas também sabiam que precisariam de justificativa legal para os ataques que
empreendia. Somando-se a isso, houve o episódio em que o capitão holandês van
Heemskerck entrou em conflito com um navio de guerra português, o Santa
Catarina. Essa foi uma retaliação contra a morte de soldados holandeses em
Macau, por ordem de funcionários espanhóis.
Após horas de combate, o navio
holandês venceu e transportou o navio e sua carga para Amsterdam. Tal
carregamento foi avaliado em astronômicos 3 milhões de florins. Portugal exigiu
indenização ou devolução da carga imediatamente.
Criou-se um impasse: a marinha holandesa não tinha condições de
continuar financiando sua guerra de independência da Espanha sem a VOC; a VOC
precisava ajudar no esforço de guerra por meio de seus navios. Porém esses
navios eram mercantes, o que tornava suas ações contra navios espanhóis e
portugueses ilegais – exceto se para defesa própria.
A VOC abordou Hugo Grotius, que
na época tinha apenas 21 anos, para elaborar uma breve justificativa para o
ataque passado e para qualquer futuro ataque a seus inimigos. A VOC julgava que
havia chegado a hora de assegurar maior apoio público para suas ações e maior
aceitação internacional da França e da Inglaterra.
Embora usando documentos bastante
parciais para redigir seus argumentos – como o “Livro sobre os procedimentos
cruéis, traiçoeiros e hostis dos portugueses nas Índias Orientais” -, Grotius escreveu
um tratado equilibrado, técnico e não polêmico. Sua obra só tenha vindo a
público séculos depois, um capítulo, denominado Mare Liberum, foi publicado em
1609, ano em que a República da Holanda obeteve uma trégua de doze anos com a
Espanha.
Nesse documento, Grotius
argumenta que a liberdade internacional de navegação nos mares se equipara aos
direitos naturais – ou lei natural: Um conjunto de princípios de bom senso que
deveriam governar os relacionamentos entre indivíduos e Estados, com base nos
fundamentos de que autonomia e direitos não podem ser arbitrariamente tomados
de pessoas ou Estados. Em razão de seu tamanho e dos seus limites, não caberia o
monopólio. E se uma coisa não pode ser ocupada ou transferida, não pode ser
possuída. Segundo sua pena, “navegar pelo mar não deixa atrás de si mais direitos
legais que caminhar por uma trilha.”
Grotius expôs seus argumentos em
três categorias: o direito de posse de territórios, o direito de navegação de
novas vias marítimos fora da Europa e o direito de comércio sem interferência
em terras fora da Europa. Seu objetivo era provar que os holandeses e, por
extensão lógica, qualquer outra nação tinham o direito de viajar em torno do
mundo, em especial às Índias, e então “navegar até os índios, como fazem, e
envolver-se em comércio com eles. Assentaremos essa regra certa da lei das
nações como o fundamento, a razão da qual é clara e imutável: que é legal para
qualquer nação ir para qualquer outra e comerciar com ela”. Essas idéias, tão
naturalmente aceitas no presente, eram, todavia, revolucionárias para a época.
Grotius também buscava derrubar a
autoridade do Papa Alexandre VI quando da promulgação do Tratado de
Tordesilhas. O papa:
a não ser que
seja senhor temporal do mundo inteiro (o que homens sensatos negam), não pode
dizer que o direito universal de negociação também está sob sua autoridade. […]
E mais, caso o papa dê esse direito apenas aos portugueses e tire o mesmo de
outros homens, ele cometeria dupla ofensa. Primeiro, aos índios, que, como
foram postos fora [ou seja, não fazem parte] da Igreja, não estariam de modo
algum submetidos ao papa […]. Segundo, a todos os outros homens cristãos e
infiéis, dos quais ele não poderia tirar esse direito sem causa.
Quanto ao ataque holandês ao Santa
Catarina: “Aquele que impedir a passagem e tolher o carregamento de mercadorias
pode ser obstado por vias de fato, como dizem, mesmo sem esperar qualquer
autoridade pública”.
No capítulo 3, expõe sobre as
disputas entre Portugal e Espanha: “se eles forem usar a divisão do papa
Alexandre vi, acima de tudo isso deve-se considerar em particular se o papa
apenas deveria decidir as controvérsias entre portugueses e espanhóis, que
certamente ele pode fazer como árbitro escolhido entre eles, os próprios reis,
e fazer determinados pactos entre eles em relação ao assunto, e, se for assim,
quando a coisa for feita entre outros, não pertence ao resto das nações”.
Trata-se apenas de arbitragem com efeitos inter partes.
Já no capítulo 6, dispõe:
a doação do
papa Alexandre, que pode ser alegada em segundo lugar pelos portugueses que
desafiam o mar ou o direito de navegar apenas para eles próprios, […] não tem
força nas coisas que estão fora do alcance das mercadorias, portanto o direito
de navegar no mar não pode ser propriedade de ninguém; e daí se segue que
tampouco pode ser dado pelo papa ou recebido pelos portugueses. […] Portanto,
devemos dizer que esse pronunciamento não tem força, ou, o que não é menos
crível, que o significado do papa era tal que ele queria que a briga entre os
castelhanos e os portugueses fosse mediada, mas em nada dos direitos dos outros
diminuído.
Importante notar que o conceito
de Mare Clausum (mar fechado), combatido por Grotius, era a ordem natural das
coisas, pois se coadunava até mesmo com a forma como os romanos tratavam os
direitos de navegação no Mediterrâneo, o qual proibiam ou para o qual exigiam
pagamento de tributos.
Como poderia-se imaginar, essa
obra foi incluída no Codex de livros proibidos pela Igreja Católica.
Contudo, essa nova visão trazida
por Grotius era extremada: nenhuma água, não importa quão perto do litoral de
uma nação, devia estar, sob qualquer aspecto, sob a direção ou controle
nacional.
O primeiro argumento contrário ao
de Grotius partiu do português Serafim de Freitas, professor de direito
português na Universidade de Valladolid, que escreveu Imperio Lusitanorum
Asiatico. Ele alegava que os portugueses de fato tinham descoberto o caminho
pelo cabo africano para alcançar a Índia. Será que essa descoberta pioneira não
valeria alguma coisa, considerando a grande despesa, a incerteza de sucesso e o
tempo envolvidos? Além disso, se as pessoas quisessem um monopólio exclusivo
com os portugueses, por que não lhes seria permitido entrar num acordo
exclusivo?
O espanhol Juan Solorzano Pereira
continuou nessa linha de defesa em seu tratado De Indiarum Jure, publicado em
1629.
Em 1613, William Welwood,
professor de direito civil e matemática na Universidade de St. Andrews,
publicou Abridgement of all sea-lawes. Este concordava com Grotius no que se
referia a mar oceano, grande mar. Mas as vias adjacentes deveriam ficar sob
jurisdição nacional.
Em 1618, John Selden, escreveu
sua clássica refutação a Grotius em Mare Clausum. Escreveu ele: “Que o mar,
pela lei da natureza ou das nações, não é comum a todos os homens, mas capaz de
domínio privado ou propriedades, do mesmo modo que as terras. […] Que o rei da
Grã-Bretanha é senhor do mar que corre em torno, como um apêndice inseparável e
perpétuo do Império britânico.” Necessário fazer notar que à época havia uma
disputa entre barcos de ésca holandeses que frequentemente invadiam o litoral
da Inglaterra. Porém a refutação não poderia ser forte o suficiente para
invalidar a oposição de Grotius em face das nações ibéricas. “É incrível”,
afirmava Selden, “a vasta soma de dinheiro que os holandeses ganham pescando em
nossa costa.”
A crescente disputa entre a
Inglaterra e a República da Holanda — especialmente entre o monopólio de suas
duas empresas comerciais, a holandesa voc e a inglesa Companhia das Índias
Orientais — levaria a três guerras, depois, no século xvii; e estava refletida
na retórica do Mare liberum e seus contestadores.
Durante essas disputas, que
envolviam a Cia das Índias Orientais inglesa e a contraparte holandesa, Grotius
foi contratado para defender esta última. Evidentemente Grotius destilou todo o
seu talento jurídico para defender seu cliente, ainda que isso significasse
atacar parcialmente os seus próprios argumentos. Defendeu as ações da companhia
para impor seu próprio monopólio sobre o comércio de especiarias, argumentando
que os produtores nativos tinham assinado “contratos” com a voc para a entrega
de seu produto, e que, em seu agora mais refinado entendimento e interpretação
da “lei natural”, um contrato deve ser obedecido mesmo quando solapado pela
soberania de um povo (ainda que soubesse que esses contratos eram assinados,
muitas vezes, sob coação e ameaças). Justificava-se assim até ataques contra navios
ingleses.
Conforme se observou Martine
Julia: “a parceria política e intelectual entre Grotius e os diretores da voc
explicita o lado escuro do liberalismo moderno. As teorias de direitos e
contratos de Grotius não eram apenas circunjacentes com o aumento de impérios
comerciais globais nos séculos xvii e xviii, mas, para começar, os tornou
possíveis”.
Vale notar que nesses anos, Mare
Liberum não havia sido publicado e Grotius ouvia seus próprios argumentos, de
pessoas que não sabiam a autoria, e era obrigado a refutá-los, mesmo consciente
de que ele próprio os escrevera.
Em resumo, os novos argumentos de
Grotius se coadunavam aos de Serafim de Freitas. Em De Jure Belli ac Pacis (Sobre
a lei da guerra e da paz), escrito enquanto esteve preso, Grotius passou a
aceitar o controle nacional sobre águas territoriais.
Por fim, em 1702, o jurista
holandês e escritor Cornelius Bynkershoek publicou um tratado com o título de
De Domino Maris, em que argumentava: que as nações deveriam ter controle sobre parte
de suas águas costeiras; que a liberdade dos mares defendida por Grotius
deveria ficar restrita ao alto-mar; e que esse controle nacional deveria se
estender para fora do território soberano até o alcance de um tiro de canhão - conceito
original do limite de três milhas. Além desse limite, as vias marítimas do
mundo estariam abertas a qualquer navio, como Grotius argumentou, em Mare
liberum. Hoje, esse limite pode chegar a 200 milhas.
Esses conceitos aqui trabalhados
por Grotius e outros são as bases da Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar.
Rubem L. de F. Auto
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